18 de março de 2011

SEU ANACLETO


Lucas Cranach, A cortesã e o velho, 1530.
  
 Seu Anacleto soprou com dificuldade a vela sobre o bolo com que comemorava cento e cinco anos. Segurou com a mão a dentadura, para que não acabasse provocando constrangimentos aos convidados.

Entre eles não se encontrava nenhum dos seus sete filhos – quatro mulheres e três homens –, todos já com as almas vagando pelo éter há alguns anos, aporrinhando mesas espíritas, querendo psicografar mensagens que jamais seriam lidas pelos parentes, que tinham mais o que fazer. Nenhum deles sobreviveu àquele homem curtido pelas intempéries da vida.
De sua família, só de neto para baixo. Três mulheres ele já havia enterrado com as devidas pompas. A atual, objeto de seu bem-querer, de vestido encarnando, sessenta anos mais nova do que ele – mais nova até mesmo que alguns netos –, parecia uma pombagira escapada de terreiro, tal o assanhamento com que se comportava.
De presente, pediu que lhe dessem cartelas daquele comprimido azul, de muito boa fama atualmente, ou as garrafadas de treze ervas preparadas pelo João Gregório, herborista de também muito boa reputação. Nenhum dos dois haveria de falhar. Juntasse os dois, ia até derrubar muro de arrimo, que dirá os guardados da mulher.
Foi um escândalo!
Até na rádio, num programa de debates populares, saiu a notícia da comemoração dos seus incríveis verões e de sua saliência extemporânea.
Uns elogiavam sua gana de viver, sua disposição física, sua libido ajudada pela indústria farmacêutica e pela farmacopéia cabocla.
Mas houve uma voz destoante. Um dos debatedores, com visível má vontade, talvez inveja, dizia que já era o momento de seu Anacleto pôr um terço nas mãos, treinar algumas orações, fazer um exame de consciência da maior abrangência possível, pois sua hora estava chegando, seu livro de débito e crédito na iminência do balanço final. E, daquele jeito, ele teria péssimas referências do lado de lá, assim que cantasse para subir.
Como fosse do tempo do cagar de cócoras – na sua fala, “do cagá de coque” -, seu Anacleto usou expressão gasta de muitos anos, para refutar os argumentos do debatedor, rádio ligado no meio da festa:
- Eu quero é rosetar!
Seu Anacleto parecia briguela de teatro de fantoches: roupa larga colorida, a destacar a magreza, os movimentos corporais regidos por hipotético maestro possuído por desvario. Disse para os convivas – os netos e bisnetos constrangidos – que, à noite, haveria reinação. E, dirigindo-se à mulher, com sua voz de taquara rachada:
- Mulher, cuida das partes, que hoje tem!
Ao fim da festa, todos retirados, seu Anacleto foi cumprir o prometido, após ingerir alguns goles do preparado, que reforçou com duas pílulas milagrosas: rezou sobre o corpo da mulher, altar emoldurado por crispados pelos castanhos, a derradeira oração que aprendera em vida, sem medo do amanhã.

4 comentários:

  1. É...a esperança é a última que brocha. Abraço!

    ResponderExcluir
  2. Seu Anacleto até que é modesto. Certamente não ficou sabendo de um igual que, também no aniversário, ao ser indagado do que gostaria de ganhar em homenagem aos seus 106 anos, abriu um sorriso desdentado e tascou: umas três mulheres ia bem. Economizar pra que?!

    ResponderExcluir
  3. É, Paulo Laurindo, alguns extrapolam os limites que a natureza impõe!

    ResponderExcluir