10 de fevereiro de 2023

LET DIE, por Pedro Neiva de Mello

 Hoje trago aqui este conto escrito por meu filho Pedro Neiva de Mello, publicitário de profissão e danado para escrever bonito.

Aí está!

----------

LET DIE

Pedro Neiva de Mello

- Parei com o rock, bicho! Saco! Não tem mais rock bom agora. Se é novo e é bom, é porque é de um disco novo de artista velho e, ainda assim, é difícil pra cacete de encontrar. Senão é rock ruim!

Esse é o Carlão. Um camarada que fiz estes dias aqui. Carlão faz aquele estilo coroa gatão. Grisalho, forte e falastrão. Deve ter aí seus 58, 59 anos.

- Quantos anos você tem, Carlão? – pergunto.

- Cinquentinha!

Porra!... Carlão tá meio acabado. Não é tão coroa e, logo, não é tão gatão. Mas tá lá ele com suas tatuagens no braço direito. Uma tribal e uma guitarra com uma flâmula escrita “Live and Let Die”. Tá lá ele revirando a memória pra lembrar do último rock novo e bom de que se lembra, enquanto reclama da vida.

Conheço o Carlão há seis dias. Quando cheguei aqui, ele já estava ali no mesmo lugar de agora. Reclamando. Acho que a falta de rock fez muito mal a ele. Parece ansioso e, à noite, grita umas palavras soltas assim do nada! Na primeira noite, eu tomei um susto e quase caí daqui. Ele gritou “Boa noite, Circo Voador!”. Eu estava meio dormindo e meio acordado. Daquele jeito que os remédios deixam a gente, sabe? Porra!... foi um susto danado. Olhei pra esquerda, e estava lá ele com seu braço direito tatuado socando o ar e dormindo. Depois parou e dormiu. No dia seguinte contei a ele o que tinha acontecido.

- Tá de sacanagem... Isso aí é coisa de maluco, bicho. – rebateu o Carlão, muito convicto e com um certo ar de deboche pra mim.

Achei até que era eu quem estava vendo coisas, até porque a gente não está aqui à toa. Ou ele ou eu podíamos ser o louco da conversa.

Na segunda noite, acordei novamente de supetão, porque o Carlão fazia muito barulho. Olhei pro lado esquerdo do quarto, em direção à sua maca. Só havia nós dois naquele quarto. Então toda a minha distração vinha dele. Não podíamos ver tevê, celular, ouvir música e nem nada naquela fase do tratamento.

- O que tá rolando, cara? – perguntei.

Ele se surpreendeu que eu estivesse acordado. Olhou pra mim com os olhos arregalados, se virou. Fez uma enorme força com os braços pra se sentar, mesmo sem permissão. Conseguiu e sentou-se do lado direito de sua maca. Ainda tinha o ar de surpresa intacto na sua cara. Nessa hora eu reparei que Carlão tinha uma secreção saindo da boca. Sem parar. Uma baba espessa.

- Que foi, cara? Quer que eu chame alguém? O que você precisa? – perguntei pra ele - O que você quer?

- Eu queria ter uma bomba. Um flit paralisante qualquer pra poder me livrar do prático efeito. - respondeu com os olhos dentro dos meus e com a voz áspera citando Cazuza e se debatendo sentado do lado da cama.

Foi quando o Gérson entrou correndo no quarto, sem seu uniforme, desesperado. Trazia com ele um segurança da clínica. Os dois seguraram aquele homem forte de volta na maca. O Carlão seguia gritando, quando Gérson aplicou algo no braço tatuado dele e o acalmou.

- Acho que desta vez o Carlos Roberto não sai mais daqui... - refletiu o Gérson, depois que o Carlão finalmente dormiu e o quarto se acalmou.

Carlão era um frequentador assíduo. Ia a voltava de tempos em tempos. Aquela era sua quinta passagem por ali nos últimos quatro anos. A cada retorno parecia mais fraco e solitário. Era filho de um casal de músicos setentões. Viveu a vida na estrada com os pais e se apaixonou pelo rock desde moleque. Uma paixão que virou patológica, com o passar do tempo e com o passar das fraquezas do corpo e da mente. Fraquezas iguais às minhas. Fraquezas que justificavam a nossa vizinhança naquele quarto.

Acostumado, na noite passada eu nem levei susto. Já esperava a resenha da madrugada acordado. Pedi ao Gérson para reduzir a minha dosagem naquela noite. Ele concordou. Disse que eu estava fazendo progresso, e que o Carlos, em todas as suas idas e vindas, nunca tinha interagido com outro parceiro como desta vez. E concluiu com um sorriso e com o sinal de metal na mão direita – Rock and roll!!

Carlão começou a falar lá pelas 3h20. Calmo e de olhos fechados, seguiu deitado. Parecia consciente desta vez. Não estava agitado como na segunda noite ou incompreensível como na primeira. Não estava raivoso como na quinta noite e nem grogue como na terceira e na quarta. Estava sereno.

- Quem é ele, esse tal de rock and roll? – ele disse.

- O rock errou. Errou comigo. – ele disse.

- O rock acabou, cara. – ele disse - Acabou!



Van Gogh. O quarto em Arles (1889; imagem colhida na Internet).