28 de junho de 2023

O TREM DO VAIVÉM

Lá está o trem nos trilhos, 
Minúsculo no além. 
É o trem que vai? 
É o trem que vem? 
Não importa a direção 
Que vai tomando tal trem. 
Um dia nele viemos 
E no outro dia iremos, 
Segundo a orientação 
Que tomam seus trilhos tortos, 
Imprecisos, ignotos, 
Cujo destino se encontra 
Na derradeira estação.

Imagem em Freepik.


16 de junho de 2023

A LUA

A lua é leve 
A lua boia no céu 
Sem nuvens 

Em céu nuvioso 
A lua afunda 
Como uma pedra 
Num rio fundo 

Mas quando a porta se abre 
Da nuvem com seu negrume 
A luz que brota da lua 
Inunda o vale cá embaixo 
Com seu fulgor de penumbra

Lua entre nuvens (foto do autor).

                                                 





7 de junho de 2023

MUDANÇA

Toleba acabou de ajeitar as cangas, atou as brochas sob o pescoço dos bois e os chamou à lida. Com o garruchão comprido, de chocalho de anéis na ponteira, atingia desde a primeira junta até a terceira, a mais forte, que se prendia ao cabeçalho, junto à mesa.

Todos os bois tinham seus próprios nomes, por que eram chamados e pelos quais atendiam ao comando do carreiro. Na primeira junta, Dengoso e Bendito; na segunda, Fumaça e Malhado; na terceira, Maciste e Noturno, estes chamados bois de coice, os que sustentam o carro no nível e dão o primeiro arranque no momento da partida.

Toleba nunca entendera direito, por que o dono pusera esse nome esquisito no Maciste. Mesmo o seu apelido, Toleba, que ganhou na adolescência, ele entendia, já que era um homem atarracado, forte, massudo. Mas depois descobriu que fora por causa de um filme a que o patrão assistira no cinema do Zezete, quando menino, sobre um homem muito forte, capaz de mover com a força dos braços coisas descomunais, que dera o nome ao boi. Maciste, na verdade, era um boi dobrado, desses que metem medo por seu tamanho e musculatura, não fosse ele um animal manso e dolente, que não parecia em nada, no seu proceder, com o nome que o patrão lhe dera. Todos os outros nomes estavam completamente adaptados a cada animal. Era só vê-los e com eles conviver, para perceber que eram nomes justos. Por exemplo, o Noturno, de porte semelhante ao Maciste, era mais escuro que o Fumaça, que tinha o pelo cinza escuro, enquanto ele era de um pelo preto brilhante e bonito. Até o do Maciste, depois da explicação do patrão, passou a fazer sentido.

Nesse dia, Toleba ia fazer o carreto dos teréns do Manuel Firmino, que estava de mudança da Fazenda da Forquilha para a Fazenda da Boa Esperança, um pouco mais acima na serra do mesmo nome. É que o patrão tinha acabado de comprar esta última e resolveu deslocar o empregado para lá, onde ele assumiria a função de capataz. Manuel Firmino ia se mudar, coisa que não apreciava por ser um homem apegado a suas rotinas, mas ia com alegria, porque fora promovido, como recompensa por tantos anos de trabalho.

O carreiro, cheio de disposição, chegou cedo à casa do companheiro e tratou logo de carregar o carro com os pertences da família do Manuel Firmino que levaria para a Boa Esperança. Antes de começar, porém, verificou se os fueiros estavam ajustados e firmes na mesa e se a esteira estava bem amarrada aos fueiros, para que nada caísse durante a viagem serra acima. Era preciso que tudo chegasse direitinho ao seu destino.

Manuel Firmino, a mulher e os filhos, ainda pequenos, ajudaram a transportar os trecos até o carro de boi estacionado no terreiro. Toleba, sobre a mesa do carro, recebia de Manuel Firmino cada peça, que ia acomodando da melhor maneira possível, para que tudo coubesse em uma só viagem. É que gente da roça nunca tem muitas coisas a carregar, quando muda de pouso. Fogão, por exemplo, não se carrega, já que é uma peça moldada em tijolo e barro, fixado num canto da cozinha. A casa nova certamente teria também o seu. As camas são desmontáveis. Só um e outro móvel segue inteiro, sem partes, alojados com maestria na mesa do carro, de modo a caber tudo o que nele se transporta. A mesa da cozinha, por exemplo, foi colocada de pernas para cima, com os dois bancos acomodados entre elas. Por fim, sobre os poucos móveis rígidos, as roupas da família e os colchões, enchidos com capim e bem leves de levar. Por riba de tudo já arrumado, Toleba joga uma lona cáqui, já com algum puído na trama, amarrada bem firme com uma corda de juta, a fim de proteger a carga de poeira e chuva. As criações de terreiro – galinhas e patos - iam em gaiolas feitas de bambu e dependuradas nos fueiros laterais. Os dois capados roliços, cevados para o Natal daquele ano, foram colocados, sob protestos veementes, como é costume desses bichos, num espaço na traseira do carro, numa espécie de cercado improvisado, com piso de folhas de bananeira, para que não sujassem por demais o restante da carga. Mas o coleirinho do brejo cantador, bichinho da mais alta estima, era o próprio Manuel Firmino quem levava na mão desocupada da rédea, com todo o cuidado possível.

- Tudo certo, compadre Firmino? – pergunta o carreiro.

Manuel Firmino confirma que tudo está nos conformes e se prepara para deixar a casinha humilde onde morou até então com a mulher e os quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Ainda ao sair, num gesto de agradecimento, como reverência, levantou o chapéu de palha em direção à casa que serviu de lar para eles durante tantos anos.

Um pouco mais cedo, ele já arriara os dois cavalos de que dispunha. Logo ajuda a mulher a montar no malhado e instala uma das filhas na garupa. Monta no piquira e puxa a outra filha para sua garupa, enquanto Toleba coloca os dois meninos menores sobre o assento frontal à mesa do carro. O carreiro mesmo vai a pé, candiando os bois morro acima. Os trechos planos são bem curtos. O mais que se faz é subir, e isso requer perícia e arte no conduzir os animais e a carga.

Atendendo seus aboios iniciais, os bois se põem em movimento, e começa a viagem.

- Vem, Dengoso! Vem, Bendito! Vamos, Maciste! Força, Noturno!

Ao mesmo tempo em que chama pelos bois, vibra o garruchão, que tine as argolas do chocalho. Era o sinal para começar a marcha.

Os dois meninos repetem os gritos do Toleba, no chamado dos bois, já transformando a mudança numa divertida aventura.

Aos primeiros metros percorridos, o carro começa a emitir o som choroso característico, produzido pelo atrito das peças de madeira com o eixo, que vai azeitado, de modo a produzir a melodia que o carreiro mais estima e que o identifica dentre os demais carros de boi que circulam pelas estradas de chão do interior. A dolência do canto estimula a marcha, abranda a dureza da lida, embala as pessoas que vão junto à comitiva em busca de novos desafios.

Daí a duas horas, a família já estará na outra casa, na outra fazenda, retomando a labuta de um ponto além do que deixara para trás. Tudo dentro dos planos da vida que se toca serenamente, feito marcha de carro de boi candiado com perícia e refinamento.

                                  Imagem colhida na Internet (coisasdaroca.com).

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos.