30 de abril de 2022

COMO ARRANJAR UM DESAFETO, SEM PROFERIR UM IMPROPÉRIO!

Eu morava na pensão da Dona Dinorah e tinha acabado de concluir o curso de Letras, na Universal Federal Fluminense. Iniciava-se o ano de 1972.

Meu colega de pensão e conterrâneo P (Omito-lhe o nome por respeito.) acabara de escrever uma peça de teatro e pediu que eu a lesse e fizesse as observações que achasse pertinentes, com as minhas recentes ferramentas críticas adquiridas no curso.

Até aquele instante eu desconhecia esta sua habilidade, na verdade sua primeira obra. Não sei se fez outras mais, nem se aquele texto foi encenado, pois pouco tempo depois perdi o contato com ele completamente.

Pedi-lhe um prazo para atender seu pedido, com o que concordou sem ressalvas, e iniciei a tarefa. Ao cabo desta, chamei-o para apresentar minhas observações.

A peça tratava basicamente de um diálogo filosófico entre uma prostituta e um bêbado, acerca das visões de vida de cada protagonista. Pelo contexto, ficava-se a par da origem humilde da prostituta e da decadência do bêbado, até chegar à condição que então vivenciava, por culpa de seu vício. A peça lembrava a estrutura de Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos.

P era jovem, um pouco mais novo que eu, interessado em arte e literatura, leitor assíduo, e portador de uma visão pessimista e amarga da vida. Ensimesmado, raramente ria e tinha raros amigos. Era mais comum vê-lo solitário, mergulhado em suas preocupações, saindo sozinho nos finais de semana para um cinema, um passeio, um programa assim fácil de se fazer a sós.

Durante a leitura do texto, estive atento às falas das personagens, ao nível vocabular, à formulação de frases, à logica do pensamento expresso por elas, e em dadas passagens mostrei-lhe que algumas vezes o discurso não se adequava, sobretudo à prostituta, por sua origem simples, que deixava transparecer falta de educação formal, já que havia “entrado naquela vida” ainda adolescente. Por seu turno, era possível pressupor que a personagem do alcoólatra poderia ter tido uma educação mais formal, o que, no entanto, não ficava claro no contexto da peça.

Fui então apontando o que me parecia sem adequação aos dois falantes, por seu passado e por sua história de vida, sobretudo no uso de vocabulário e em torneios frasais mais elaborados, a que normalmente só se alcança com uma educação mais elaborada.

Pois foi aí que arranjei um desafeto. Ao final das minhas ponderações, ele franziu ainda mais a cara, pegou seu texto de volta, reclamou que eu não tinha entendido a profundidade das colocações das personagens. E deixou de falar comigo. Um pouco depois a pensão se desfez – ia ser construído um prédio no lugar da casa antiga onde ela se instalara –, e cada hóspede procurou nova direção para suas vidas.

Algum tempo depois – nem tanto, nem tão pouco –, encontrei-o pela rua e fui até ele. Cumprimentei-o, reclamei que ele andava sumido e quis saber do seu paradeiro. Solenemente, com a mesma expressão com certa carranca, me disse:

- Você me encontra na Veja.

Como assim? Não havia entendido o sentido da frase. E ele me esclareceu:

- Agora estou escrevendo na Veja. Procure lá!

E saiu soberbo, como a me dizer:

- Tomou, papudo! Criticou meu texto, agora escrevo na Veja, e você é um reles professor.

Na semana seguinte, comprei a revista e vi lá um pequeno texto que ele assinava, cujo assunto realmente já não me lembra mais, e fiquei feliz por saber que ele tinha conseguido chegar àquele estágio profissional, embora eu nunca tenha sabido que cursos ele tinha feito na vida, a não ser o antigo Segundo Grau numa escola da nossa cidade.

Passaram-se outros tantos anos, e eu então estava em Bom Jesus do Itabapoana, em visita à minha família. Por problemas no carro durante a ida, precisei de ir a uma loja de autopeças para comprar determinada peça para o carro. Quem eu encontro atendendo ao balcão? O próprio! Sem soberba, sem orgulho, um tanto decepcionado em me ver, estando ele ali numa função mais simples. Perguntei-lhe o que aconteceu para que voltasse à nossa terra natal. Ele deu lá suas explicações, dizendo que viver numa cidade grande para ele se tornara complicado e, assim, resolveu fazer a viagem de volta, para que tivesse melhor qualidade de vida. Conversamos amigavelmente por um tempo, sem que eu lhe perguntasse sobre sua carreira como dramaturgo ou correspondente de Veja. Não queria avivar o que talvez pudesse ser deixado no limbo.

Nunca fiquei aborrecido com ele. Entendi-lhe a falta de humildade, quando fiz as observações sobre sua obra. Um texto é quase como um filho. Se alguém pode falar mal dele, é o autor. E ninguém mais! Sob pena de se tornar um desafeto.

E jamais o vi novamente! Guardo certa saudade. Assim bem à moda dele: silenciosa, um pouco pessimista e desalentada.

Talvez nossos caminhos e nossos textos não se cruzem mais. 



Imagem colhida na Internet.