29 de junho de 2013

ANGU À BAIANA


Receita de angu à baiana para incrementar sua festa junina.

Pegue, com jeitinho, um baiano. Para fazer um angu de caroço, não precisa ser um da estirpe de João Ubaldo ou de Tom Zé. Pode ser tipo Toninho Malvadeza, mas deve estar vivo. Morto, só vai entrar no sarapatel.

Se o dito baiano for apressado, coisa, aliás, difícil de encontrar, pode descartar, que esse não serve: deixa o caldo ralo. O bom, aquele que vai engrossar o angu, deve ser vagaroso, deitador de rede, bebedor de água de coco em beira de mar manso, tocador de caxixi nos Filhos de Gandhy.

Aí você convida o dito baiano a ir a sua casa, levando um quilo de fubá de moinho d’água. Fubá industrializado periga dar muitos gases intestinais, o que torna a convivência entre os apreciadores deste típico prato da culinária nacional tão perigoso quanto fazer uma excursão pelo Afeganistão.

Ponha, numa panela de barro comprada na BR-101, nas proximidades de Guarapari, a quantidade de água que você julgar bastar para a quantidade de comensais. Mas não ponha sal nela. Nem na panela! Angu autêntico não leva sal, óleo, alho ou cebola. É água e fubá, apenas e tão-somente.

Assim que a água começar a levantar bolhas, peça ao baiano para ir jogando vagarosamente, como de praxe, o fubá na água, mexendo com uma colher de pau, em sentido horário, ininterruptamente, até que ele, o baiano, sinta o caldo começar a ficar consistente. Neste momento, suspenda o polvilhamento do fubá sobre a água, sob pena de encaroçar o caldo.

Se o baiano se cansar de mexer o angu, alguém deve assumir o controle do cozimento, até começarem a levantar as primeiras bolhas. Nesse instante, é melhor afastar-se da panela, porque você pode sair queimado. Baixe o fogo, tire a colher de pau e não a meta mais, nem se chamado a opinar sobre o que sabe.

Convide o baiano para a sala e deixe lá o angu cozinhando. Tome uma dose de cachaça com ele e pergunte sobre Dodô e Osmar, sobre o acarajé da Cida, a lambreta do Mercado Modelo e as ladeiras do Pelourinho. A conversa há de se estender por algum tempo, sobretudo se, entre uma e outra dose de pinga, você hidratar com goles de cerveja gelada.

Quando vocês já estiverem pra lá de Bagdá, como pontifica outro baiano famoso, cujo nome omito aqui para não pagar direitos autorais ou royalties, o angu estará no ponto. Se não estiver esturricado no fundo da panela de barro adquirida nas proximidades de Guarapari.

Nesse momento, você colocará sobre o caldo fumegante, já com o nome de angu, o cozido de miúdos de porco, carregado na pimenta de bode, cujo nome é sarapatel e deve ter sido feito de véspera por uma vizinha especializada no assunto, porque, se há um prato complicado de ser realizado, esse prato é o sarapatel. Só de matar o porco, limpar os bofes, cozinhar os pertences, de modo a que aquilo tudo se torne comível, pelo amor de Deus!

Verta o cozido sobre o angu e sirva. É preciso comer baianamente, isto é, bem devagar, se não quiser ter o couro do céu da boca arrancado a poder da quentura do troço.

Neste momento o baiano – caso seja baiano autêntico – vai dizer:

- Na Bahia, não há angu à baiana. Isso é invenção de carioca!

E se levantará tonto e irá embora de sua casa, quase ofendido. Apenas quase, porque, para ofender de verdade um baiano, só mesmo desligando o som do trio elétrico.
O angu já serviço (em recheiomania.blogspot.com).


27 de junho de 2013

FAZENDA DO JACÓ

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em  8/3/2010.)

Pastam bois nos pastos postos em relevo
e na planura das vargens crescem taboais selvagens
que fofam travesseiros tecem esteiras
Nas grotas escarpadas sobem capitães-do-mato
Há várzeas de arroz milharais nos morros
cafés pelas serras ribeirões de lírios
marrecos nas aguadas e nos brejos
patos nos açudes irerês nos mangues
rolinhas nos quintais papa-capins nos campos
galinhas e leitões em cevas e chiqueiros
Na vastidão do azul o sol a pino
a tropa na estrada
Na cozinha a mulher
no terreirão homens arruando café
nas grimpas das goiabeiras os moleques
No ar um cheiro doce de capim-gordura
e felicidade

Kora Dias, Fazenda Santa Clara (em ajurspvendedoredivulgadordaartenaif.blogspot.com.br).

23 de junho de 2013

MANIFESTOS


Havia em Bom Jesus o Zé Manifesto, que, na verdade, se chamava José Mangifesti e era pai do meu colega de escola Zé Nilo, um pouco mais velho do que eu. Assim o Zé Nilo também deveria ser Manifesto, embora não o chamássemos assim.

Eu mesmo nunca vi nem o pai, o seu Manifesto, dono de uma venda no Bairro Novo, e o Zé Nilo fazendo manifesto de espécie alguma.

Aliás, Zé Nilo, embora fosse um rapaz encorpado, avermelhado e grandão, era uma pessoa quase inocente. Naquela época ainda era possível encontrar moços quase inocentes no interior. Apesar de quererem se passar por muito espertos.

Certa vez – era o período de férias de verão da escola – eu o encontrei em frente à loja do Pedro Braga. Íamos de bicicleta em sentido contrário pela Rua Abreu Lima, e ele me parou para uma pergunta corriqueira, comum para um colega de escola caxias como eu.

- Saint-Clair, o que quer dizer kiss me, kiss me, my love?

Colega de turma, ele tinha certeza de que eu saberia.

- Significa “beija-me, beija-me, meu amor”. Por que, Zé Nilo?

Ele, então, soltou um puta que o pariu contrariado e lamentou não ser um aluno aplicado.

- Ontem, numa festa, uma garota falou isso pra mim e eu fiquei com cara de paspalho, sem saber o que fazer. Vou ter de prestar mais atenção às aulas de inglês.

Outro manifesto que conheci, por esse tempo, era um tipo de guia para transporte de mercadorias que cruzassem a fronteira entre o Estado do Rio e o Espírito Santo.

Bom Jesus do Itabapoana e Bom Jesus do Norte, uma em cada estado, tinham um posto fiscal do lado capixaba a controlar o fluxo de produtos. Então, junto com a nota fiscal, acompanhava o transporte uma grande nota que se chamava manifesto.

Eu mesmo, que trabalhava numa loja de material de construção, vez ou outra, tinha de preencher um manifesto para fazer passar pela fronteira algum tipo de carga.

Tanto o seu Zé Manifesto, quanto o manifesto fiscal nunca se manifestaram além do previsto. Nunca foram para as ruas protestar contra nada. Gritar palavras de ordem. Portar bandeiras. Muito menos depredar a coisa pública ou privada.

Eram manifestos tácitos.

Agora os manifestos são também virulentos, truculentos. Em sua parte pacífica e ordeira, pedem tudo, protestam contra muitas mazelas da vida nacional e, até mesmo, contra o preço da ração de cachorro.

O mundo mudou tanto, que tenho medo de não acompanhar. A não ser que esses manifestos atuais se comportem como aquele bloco carnavalesco carioca: Concentra Mas Não Sai.
Imagem em wordsinspace.net.

21 de junho de 2013

DE PRIMEIRA NECESSIDADE

o amor faz fronteira
com a dor
com a rima
com os desassossegos do coração

o amor está na prateleira dos supermercados
em temperos
e nos sonhos da mocinha do caixa

o amor está em promoção nas gôndolas
de frigoríficos
com preços de ocasião

vou comprar uns quilos a mais
e abastecer minha despensa
para quando o inverno chegar

Imagem em metalurgicagaviao.com.br. 

19 de junho de 2013

MEU BOTAFOGO PREFERIDO


Embora o Botafogo seja único e insubstituível como clube, o Botafogo como time são outros quinhentos. Se já tivemos motivos de sobra para nos orgulhar, também os tivemos para nos envergonhar e tentar esquecer.

Mas há um Botafogo que é o meu preferido, o que está indelevelmente marcado em minha memória em preto e branco. Era o time maravilhoso de 1960, com Garrincha, Nilton Santos, Didi, Quarentinha, Paulo Valentim, Amarildo, Manga, Zagalo, Pampolini, e companhia.

Embora não tenhamos sido campeões naquele ano, era o time que via jogar pela tevê na casa do Doutor José.

Nesse ano, estudava em Campos dos Goytacazes (Não concordo com tal grafia.), no Colégio Bittencourt, em regime de internato. O Doutor José era um dos filhos do fundador da escola e também um de seus vice-diretores. Os outros eram o Professor Clóvis e o Doutor Mariozinho, este o vice-diretor administrativo, já que o velho professor Mário Bittencourt se retirara para sua propriedade rural nas imediações da cidade.

O Doutor José, embora fosse um homem extremamente exigente conosco em questão de disciplina, tinha um gesto de cortesia conosco e nos permitia ver os jogos do campeonato do Rio de Janeiro, que começaram a ser transmitidos via televisão.

Deste modo, nos dias de jogos, íamos para a sala de sua casa, que ficava nos fundos do terreno do colégio, sentávamo-nos no chão e podíamos torcer à vontade, dentro das estritas regras de educação que, sabíamos, eram cobradas, apesar de o doutor ser torcedor do Fluminense.

Foi a primeira vez que vi transmissão de tevê e que vi o Botafogo jogar. Eu tinha lá meus treze anos e me encantava com aquele time repleto de craques que enchiam a pequena tela do aparelho de belas jogadas. Eu já era torcedor, desde meu avô Chico Albino, pai de meu pai, Argemiro, ambos botafoguenses.

O time do Botafogo era praticamente uma seleção, dada a profusão de craques e grandes jogadores que compunham seu elenco. E vendo-os na tevê preto-e-branco da época era como se não houvesse mais cores na vida: o mundo era preto e branco. A imagem desta época que mais me ficou foi a de uma partida contra o Flamengo, em que ganhamos de 4x1, com Didi fazendo uma partida magistral.

Por isso, fui ao Google para recuperar a escalação completa daquele jogo: Manga, Cacá, Zé Maria e Chicão; Pampolini e Nilton Santos (Jorge); Garrincha, Didi, Genivaldo, Quarentinha e Amarildo. Nosso técnico era o Paulo Amaral. Nossos gols foram feitos por Quarentinha (8min) e Garrincha (21min); Quarentinha (62min) e Didi (90min). O do Flamengo vi quem foi, mas não vou dizer aqui. Como bem faz o amigo Zatonio Lahud em seu blog, quando fala de futebol: aqui o time adversário não faz gol no Botafogo.

E, até hoje, passados mais de cinquenta anos, as imagens daquele jogo me vêm à memória de um jeito gostoso e gratificante.

Aquele era o meu Botafogo preferido.
Botafogo dos anos 60 (em portoroberto.blog.uol.com.br).
 
 

17 de junho de 2013

MILHARAIS DOURADOS

(Publicado originariamente em  Gritos&Bochichos, em  20/5/2010.)

onde os milharais aqui plantados?
de onde esse gado?
de onde a grama o capim?
para onde o arado?
onde o mingau aguado
mistura fraca de fubá e alho
conforto quente bem estomagado?
onde o angu molinho
o milho assado a papa a canjiquinha?
onde a pamonha
a broa o bolo solado?
de onde esse arame farpado?
cadê o arado?
pra que esse leite pasteurizado
embalado em saco plástico?
cadê o milho embonecado?
some daqui com esse gado
que está matando o roçado
levando o eito do arado!
onde o zé o mané o chicão
o quinca o fulgêncio o duardo
o pedro o tião?
cadê a enxada o facão?
pra onde foi o arado?
porra! some daqui com esse gado!

Henrique Pinto, Entre o milharal, 1907, Museu Carlos Costa Pinto, Salvador-BA (em pt.wikipedia.com).

13 de junho de 2013

LÍNGUA

(Para Alfredo Moreirinhas e José Varzeano, além-mar.)
 
Portugal calou seu fado profundo
Dentro do meu coração desgarrado
É como um Camões mudo
Um Pessoa apaixonado
Uma Florbela singela
Sem o estranhamento afogueado
Que o amor costuma como chama
Queimar o peito de quem ama

Portugal ferve a língua que me apanha
Em seu colo tépido de fonemas
E produz bem dentro algo incerto
Inusitado e quieto quando fala
E eloquente quando escuta

A língua portuguesa me acalenta
Em seus murmúrios e sussurros
Eu falo a língua que me inventa
Eu invento a língua que me usa
Como uma carga imprevisível de poema


José Malhoa, Os bêbados, 1907 (em vk.com).


11 de junho de 2013

TOMANDO UM TÁXI EM PARIS


Pedro e eu tínhamos ido à França para a Copa do Mundo de 1998, para a segunda fase, a partir das quartas de final.
Fomos numa excursão da extinta Grantur Turismo, que nos hospedou num hotel recém-inaugurado da rede Accor - o Etap - em Saint Ouen, na Rue du Docteur Babinski, juntinho da antiga muralha que circundava Paris.

Sempre que íamos circular pela cidade, tomávamos um ônibus em seu ponto inicial na Avenida de Saint Ouen, a uma pequena caminhada. A estação do metrô era um pouco mais distante.
O primeiro jogo que vimos foi aquele Brasil 4x1 Chile, no estádio Parc des Princes.

A Seleção deu um chocolate nos chilenos. Parte da torcida adversária também se hospedava no Etap e passou parte daquele dia, antes do jogo, cantando uma espécie de mantra:
- Brasil es un caramelo! Ô-oooô! Brasil es un caramelo! Ô-oooô!

Sem entender muito bem o sentido obscuro que pudesse estar por trás daquela frasezinha cantada à exaustão, de forma provocativa, depois do jogo indaguei a um chileno sobre o que, diabos, queriam eles dizer. Sem graça, pela coça que levaram, o chileno me explicou, então, o óbvio: caramelo era caramelo mesmo, doce, saboroso e fácil de ser comido.
Ri da ingenuidade de nossos hermanos e de seu jeito inocente e pré-histórico de torcer. Enquanto eles nos chamavam de caramelo, nós os mandávamos tomar naquele lugar e xingávamos a mãe deles, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ali vi que os chilenos ainda estavam na fase romântica como torcedores de futebol. Nós estávamos na pós-moderna.

Porém, o que interessa aqui, pelo título da crônica, é outra coisa.
Depois da partida, voltamos ao hotel, tomamos um banho rápido e partimos em direção à Avenida dos Campos Elíseos, a famosa Champs Elysées, que os franceses, com orgulho, dizem ser a mais bela avenida do mundo. Lá era o local de comemoração da torcida brasileira, como soubemos.

Devemos ter chegado à Avenida por volta das vinte horas e nos juntamos a vários torcedores patrícios, que agitavam bandeiras, vestiam camisas e portavam outros símbolos verde-amarelos. Cantávamos, gritávamos, comemorando a vitória. Tudo de forma bastante civilizada, como convinha ao local.
Após certo tempo, resolvemos jantar num dos restaurantes da Avenida, o Léon de Bruxelles, de uma cadeia que serve o prato nacional belga, que chamou nossa atenção: moules et frites, que traduzido em língua de gente significa mexilhões com batatas fritas. Aquela combinação estranha nos desafiou, e, desconfiados, pedimos uma das diversas fórmulas combinatórias para o serviço: uma panela média cheia de mexilhões ao vapor, com batatas fritas em refil, tipo coma o quanto quiser. Combinamos o prato com uma cerveja de que não me lembro mais. E foi excelente!

Ao final do jantar, já mais de uma hora da manhã, saímos do restaurante para retornar ao hotel. Metrô não havia mais. O serviço noturno de ônibus, com oferta muito mais restrita, também não chegava até onde estávamos hospedados. Restou-nos, então, o táxi.
Fiz sinal para dois. Os motoristas, assim que reconheciam meu sotaque estrangeiro, davam partida no carro. Não estavam ali, àquela hora da madrugada, para transportar turistas. Estes que se virassem.

O hotel ficava longe da Avenida, e não estava em cogitação andar até lá, embora todo o percurso fosse plano e não difícil. De dia, até andávamos mais do que a distância entre o hotel e a Champs Eliysées. À noite, porém...
Até que, logo após um dos táxis se recusar a nos levar, parou um automóvel americano antigo, bem conservado, com um rapaz ao volante. Ele se dirigiu a mim e perguntou se estávamos querendo um táxi. Eu disse que sim, e ele se prontificou a nos levar até o hotel. Achei aquilo estranho. Perguntei por quanto nos levaria até lá e ele deu o preço, alto, que foi negociado: oitenta francos (ainda não havia o euro). Falei com Pedro sobre o que estava acontecendo e combinei que eu iria no banco da frente, ao lado do motorista, e ele atrás, para, em caso de qualquer atitude suspeita, o meu filho providenciasse uma gravata de tecido muscular no cou (pescoço) do francês.

Fomos conversando até a Porta de Saint Ouen, juntinho ao hotel. Durante o trajeto, ele me disse ser universitário, vindo do interior para a capital, e que fazia esse tipo de “serviço” para conseguir um troco, pois sabia que os taxistas da madrugada, em Paris, têm uma má vontade histórica em transportar passageiros não franceses. E o dinheiro apurado ajudava na sua manutenção na cidade, uma das mais caras do mundo à época.
Acabei descobrindo que ele fazia Letras, como eu fizera entre 68/71 no Brasil, e percorremos todo o trajeto falando de língua, literatura e futebol, naturalmente, já que a Copa do Mundo estava fervendo na terra de Victor Hugo e do Corcunda de Notre Dame.

Melhor do que ter tomado um táxi com motorista mal-humorado e que, possivelmente, não trocaria um dedo de prosa com turistas chatos, vindo de países subdesenvolvidos. Arre! Malheur!
Edouard Cortès (1882-1969), O Arco do Triunfo e a Champs Elysées, crespúsculo (em worldpaintings.tumbir.com).

7 de junho de 2013

ANTIGA CANÇÃO GRAVADA EM DISCO DE VINIL, 78rpm

(Publicado orginalmente em Gritos&Bochichos, em 6/6/2010.)
 
LADO A
Despachou o marido para a cidade dos pés juntos e partiu para a esbórnia. Antes, porém, doou as roupas do falecido para a caridade. Nas suas, pôs fogo e enterrou as cinzas no quintal. Comprou guarda-roupa novo, cheio de balangandãs, cheio de penduricalhos. Fez corte picado no cabelo. Mulher que faz corte picado no cabelo é um perigo, causa mais devastação que vento encanado, pensou de si para consigo. Que me aguardem! – concluiu o pensamento libertário.
Teve de aguentar aquele traste por vinte anos. Mão-de-vaca escolado, deu uma vida de mesquinharias, de folhas de alface e carne-seca ponta-de-agulha. Quando comia melhor, era aquele frango de padaria, com a farofa de brinde, nas ocasiões em que o padeiro resolvia fazer promoção. O agora defunto chegava com bafo de cerveja, alegava estar sem fome e ia dormir até a hora do jogo na televisão. Quando muito, ele se agarrava a uns livros velhos, sebentos. Se tivesse posto vidro moído no feijão, pode ser que tivesse abreviado a sensaboria de sua vida.
Nos últimos dois anos, após um insulto cerebral que o deixou meio adernado para o lado direito, voz estropiada, olho zambeta, suportou sobremaneira as agruras do inferno matrimonial. Nem dinheiro tinha para contratar ajudante que amenizasse sua trabalheira. E como dar banho naquele monte de banha repulsivo?
Depois que o miserável morreu, descobriu uma poupança polpuda na Caixa Econômica, que lhe foi passada por ser única herdeira, e com ela saiu fazendo visões e aparências modernas. Então era um tal de saia curta, roupa colorida, batom carmim, chapéus de abas larguíssimas. Até o andar ela modificou. Andava como se estivesse em passarela de desfile da Casa Masson.
Ainda rondavam sua memória as palavras ofensivas que endereçara ao finado, ao lado do caixão, para dar fechamento àquela relação mixuruca, mas que morto nenhum gostaria de ouvir. E tudo na segunda pessoa, tal qual letra de samba-canção:
- Vai-te, sovina miserento! Infernizaste minha vida desde o fim da lua-de-mel. Contigo comi o pão que o diabo amassou e só não desencarnei porque me apeguei a São Jorge, que é muito mais forte que tu.
Na missa de sétimo dia, encomendada a fim de não fazerem desabonações dela, já chegou com rapaz alugado a peso de trufa branca de terras de Itália, com o qual foi posteriormente tomar vinho do Porto Adriano Ramos Pinto em restaurante da Zona Sul. Era a vida que pedira a Deus. Quem mandou morrer, papudo?
LADO B
Foi abotoar o paletó logo no momento em que estava com dinheiro bastante para mandar a megera embora e engatilhar possibilidades com menina nova, fornida em carnes, de perna roliça, anca inchada. Isso era o que queria. No entanto estava ali, estendido num caixãozinho muito mixuruca, que a viúva lhe comprara. Mas o que fazer? Escondera o dinheiro de tal maneira, que a mulher ficou sem caixa para lhe dar um pijama de madeira mais ostentoso.
Impotente, de canela espichada, ainda teve de aturar, sem retrucar, cada palavra que ela lhe dirigia, em tom de sussurro, como se recitasse letra de samba-canção. Mas pode esperar, isso não vai ficar assim, não é mesmo? Neste ínterim, ficou decepcionado, porque descobriu que não viraria fantasma, nem alma penada, para atazanar o juízo da desinfeliz. Seu invólucro carnal era totalmente desprovido de visagem. Que maçada! – ainda pensou em forma de texto machadiano, de que tanto gostava.  Era oco, totalmente oco!
E imaginar que juntara todo aquele dinheiro às escondidas, para que ela não virasse uma zinha qualquer, frequentadora de Casa Sloper. E a comida que ela fazia? Nem na pensão de dona Preciosa comia tão mal em seus tempos de solteiro. Deu sorte de que ela não tenha posto vidro moído no feijão, senão era capaz de já ter morrido há mais tempo. Também de que adiantou morrer mais tarde, já que morreu antes dela? De nada serviram os trabalhos de um pai-de-santo da Pavuna com o frango de padaria que, às vezes, levava para casa. Nesses dias, nunca almoçava. Dizia que tinha comido, no botequim, pão com salame acompanhado de filas de cerveja. E como cozinhava mal: nem carne-seca sabia fazer, a coisa mais fácil do mundo para ficar boa!
Ainda foi ter aquele maldito derrame que lhe deixou metade do corpo paralisado, a fala desnorteada e o olho embaciado. Então é que pôde sentir quem era ela. Mas também não tinha mais como reagir. Às vezes ficava uma semana sem um bom banho, só com pano molhado pelo corpo, como se fosse um velho assoalho de tábuas, onde não se joga água para lavar.
Agora, estirado ali naquele caixãozinho furreca, rodeado de flores tristes, pôde enfim ter o último desejo permitido a um morto: que ela arranjasse moço novo, cheio de espertezas, e lhe torrasse até o último centavo da caderneta da Caixa, para ficar só com a pensão do INSS. Bem feito, doidivanas!
 
 
 
Imagem em htforum.com.
 

 

5 de junho de 2013

O PEIXEIRO TATUADO


Há no Mercado São Pedro
Se não me engano de fato
Um peixeiro tatuado
Que parece um muro cheio
De desenhos desconexos
Tem no braço uma corvina
Do antebraço pra cima
Desenhou uma cavala
No ombro esquerdo uma arraia
No direito um robalo
O peixeiro tatuado
Parece o Mar dos Sargaços

Do lado direito do peito
Tatuou uma baleia
E lá do lado esquerdo
Um pargo e uma sardinha
E nas espáduas polpudas
Pôs dois chernes um peixe espada
Um bagre um cachalote
E um cascudo estranho
O peixeiro tatuado
Parece o Mediterrâneo

No pescoço pôs um osso
Da boca de um tubarão
Desenhou na mão esquerda
Uma garoupa gigante
Na direita um lambari
Que parecia um linguado
Ficou tão mal tatuado
Que até mesmo a cocoroca
Que tatuou no umbigo
Divide seu barrigão
Como fosse o hemisfério
Na entrada do Golfo do México

O peixeiro tatuado
Além de tais tatuagens
É gordo de frente e fundos
E tem piercings pelo corpo
Começando pela boca
Com ferros encastoados
E buracos na orelha
Por onde passam seus brincos
Que contei bem mais de cinco
Nos pavilhões pendurados
Mas vende os peixes expostos
E vários frutos do mar
Sem vergonha e sem medo
Para os fregueses de sempre
No velho Mercado São Pedro.


Imagem em artetatoo.com.br.



2 de junho de 2013

O JOGO SERÁ ENTISIOSPÉTICO

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 22/3/2010.)
Lá pelo início da década de 60, ocorreu esse fato verídico, que vou tentar contar com a maior fidelidade possível aos acontecimentos.
Havia em Bom Jesus do Itabapoana um órgão do governo federal denominado SAPS, que cuidava da venda de alimentos de primeira necessidade a preços mais baratos, porque isentos de impostos. Tinha a agência do SAPS como gerente uma figura bastante folclórica, ligada ao antigo Partido Trabalhista Brasileiro do então governador, Roberto Silveira, pai do ex-prefeito de Niterói, Jorge Roberto.
Todos sabiam que o cargo lhe tinha sido dado pelo fato de ser um dos quadros do partido, ainda que bem pequeno e lá no interior norte do Estado, já que não era portador de maiores condições intelectuais para a empreitada.
Certa vez, programou-se uma partida de futebol, de caráter amistoso, entre os funcionários do SAPS de Bom Jesus e do SAPS de Itaperuna, cidade vizinha.
Para divulgar a partida, o tal gerente (permitam-me omitir-lhe o nome em consideração a seus descendentes) dirigiu-se à Tipografia Almeida para solicitar a confecção do cartaz alusivo à contenda. Levou todo o texto pronto.
O sócio da tipografia reproduziu no cartaz exatamente o texto que o gerente do SAPS lhe entregou, talvez até por picardia, sabendo quem era o homem.
E saiu bem no meio do cartaz, do tamanho de meia folha de jornal, em caixa alta: O JOGO SERÁ ENTISIOSPÉTICO.
Pedrinho Teixeira, homem de muita cultura, dono de uma vasta biblioteca que herdara de seu pai e proprietário de uma farmácia na Praça Governador Portela, próxima à agência do SAPS, pesquisou em todos os seus dicionários e enciclopédias, sem conseguir encontrar o sentido da palavra entisiospético. Consultou, por carta, o programa da Rádio Nacional, de muito sucesso à época, “Seu Criado, Obrigado!”, que se dispunha a esclarecer as mais diversas dúvidas dos ouvintes espalhados por esse Brasilzão afora. Dias depois, “Seu Criado” foi obrigado a reconhecer que, apesar de todo esforço, não conseguira encontrar tal palavra na língua portuguesa.
Diante de todos esses fatos, Pedrinho Teixeira não teve dúvidas em procurar o gerente do SAPS para, enfim, descobrir que sentido tinha a palavra.
Sem titubear, o gerente lhe disse do alto de sua sapiência:
- Pedrinho, logo você, um homem culto, dono de uma biblioteca tão grande não sabe o que significa.
Pedrinho, humilde, teve de confessar:
- É... de fato, não sei! Nem eu, nem o “Seu Criado, Obrigado”.
- Ora, Pedrinho, entisiospético é uma coisa assim meio incrisocrônica!
E deu-se o diálogo por findo, o gerente soberano em sua sapiência. E todo o povo de Bom Jesus e adjacências continua, até a presente data, sem saber que diabos significam essas palavras.

Imagem em inglesonline.com.br.