30 de março de 2015

ENREDO


Não quero ser enredo de escola de samba,
daqui a cinquenta/cem anos.

É comum aos que escrevem versos à revelia
serem incensados algum dia,
depois que tiverem os ossos carcomidos pelos vermes.

Eu não vou querer virar enredo de escola de samba,
se tal me acontecer.

Vamos supor que meus tetranetos,
descendentes diretos desta minha utopia humana,
aceitem que eu saia em forma de alegoria
nas peças da bateria como saiu Che Guevara.
Não vou querer tal homenagem.

Nunca gostei de carnaval
e acho um desperdício
gastarem adereços e carros alegóricos,
fantasias e sambas de enredo
com cadáver mais que morto.

Se reproduzirem minha cara
no carro abre-alas,
estarei disposto,
diretamente do meu túmulo,
curtindo o meu luto,
a rebaixar a escola de grupo.



Imagem em la-razon.com.

 

14 de março de 2015

UM DIA...


Um dia, você acorda com dores pelo corpo. Hoje dói o cotovelo esquerdo, ao rotacionar o braço. Outro dia, se esquece de pingar o colírio que controla a pressão ocular. Outro dia, é a vez de deixar de tomar o remédio para manter o colesterol baixo. Ou aquele da glicose. Um dia, deixa de pagar a conta, porque ficou o tempo inteiro à mercê do nada e simplesmente se esqueceu. Outro dia, pega seu neto no colo, ajuda-o a comer, dá-lhe banho, sai com ele a passear no calçadão da praia. Um dia, amanhece torto, porque o travesseiro antigo está deformado e lhe produziu um torcicolo, ou é a dor ciática que relampeia da popa à batata da perna. Uma tarde, você vai ao cinema, na hora em que a maioria da população está no trampo. E, ainda por cima, paga meia entrada. E fica no ar condicionado gelado, enquanto lá fora um bando sua em bicas, à cata dos afazeres. Na outra tarde, embora não pague a passagem do ônibus, tem dificuldades de subir os degraus – os joelhos já assolados por artroses. Noutra tem de ouvir reclamação inconveniente do jovem na fila, só porque exerce seu direito à preferência. Mas tem todo o direito de olhar a mesma menina bonita que passa de roupa de praia diante do bar onde ambos – você e o jovem – bebem cerveja e falam de futebol descompromissadamente. Um dia, você acorda nostálgico e lembra da infância perdida pelos 50, do carro de boi de sabugo de milho, da siliprina com os outros moleques, dos banhos de chuva nos verões perdidos no tempo. Outro dia, enfrenta a fila para tirar o sangue e conferir os dados do organismo que já não funciona mais com a desenvoltura de menino. Uma noite perde o sono por nada, a troco de nada, despreocupado de tudo, os filhos e netos bem encaminhados na vida, e toma um sonífero, porque os carneirinhos não pulam mais sobre a cerca da madrugada. Numa manhã, acorda serelepe como há muito não fazia, como se o tempo ainda não tivesse sido debulhado em sua folhinha. Numa outra, pega o carro com a mulher e sai a passear numa terça-feira qualquer, atrás dos caminhos que levam a um lugar qualquer, não importa onde seja, basta apenas chegar. Noutra, tem de tomar um digestivo, porque aquele leitão à pururuca que sempre fizera muito bem à saúde desta vez não caiu bem. Noutra, vai encontrar os amigos para um, dois cafezinhos na galeria refrigerada, jogando conversa fora ou tentando consertar o mundo antes do final dos tempos. Um dia, olha com admiração a juventude que passa feliz à sua frente e sente que também já foi assim. Noutro, repara a falta de compromisso dos jovens com os destinos do país e imagina que tudo estará perdido daqui mais cem anos, quando nem mais será lembrança. Um dia, prepara aquela feijoada que só você sabe fazer e reparte com os amigos o paladar exclusivo da amizade, e bebe pinga, tira gosto com linguiça, torresmo e chouriço, e não sente nenhum incômodo no dia seguinte. Um dia, percebe que aquilo que hoje se estuda em história era notícia para você, que estava mesmo no meio dos acontecimentos. Um dia, enfim, fecha os olhos para dormir e não acorda em lugar nenhum, e seu nome passa a ser apenas uma referência efêmera entre os que permanecerem acordados por mais outros tantos dias e tardes e noites, e assim por diante.

Pôr do sol em Itaipu (foto do autor).

9 de março de 2015

FRAGMENTOS POÉTICOS


ida
orte
mor
dio
lor
or
xão
sejos
xo
nhos
entura
macerados no cadinho do poeta
até a amálgama fatal


Imagem em colegioweb.com.br.

4 de março de 2015

ÀS VEZES, DÁ GOSTO VIVER!

Dia desses, andando pela praça de Miracema, vi uma carrocinha de pipoca adormecendo pela manhã, abandonada.

Naturalmente deve ter tido muito trabalho na noite anterior e teria outro tanto mais tarde. Porém, naquele instante, ela estava melancolicamente encostada a uma árvore, com corrente de proteção fechada a cadeado. Até mesmo em Miracema, não se pode deixar um bem assim dando sopa.

E, ainda que ela não exalasse aquele típico cheiro de pipoca quentinha, minha memória tratou logo de reproduzi-lo e, num passe de mágica, voltei à infância e às coisas que me davam prazer.

De repente, descobri, como num filme projetado aceleradamente, que, durante toda a nossa vida, temos esses dados gustativos a nos marcar de uma forma indelével.

Por vezes é mais fácil lembrar-se de um prazer do paladar do que de outro sentido. A visão, tenho a impressão, é um pouco mais efêmera que o paladar. O olfato, ainda mais que esses dois; e deve estar ao par com a audição. E o tato, coitado, praticamente não tem memória.

E consegui construir um catálogo rápido, na memória, durante a travessia da praça, das coisas que me marcaram pela boca, desde a infância na vilazinha natal.

Então comecei pela mironga da dona Mocinha, da padaria do seu Chico Furtado, já referida por mim na crônica Vou comprar uma mironga na padaria do Chico Furtado. E emendei com o pé de moleque de açúcar batido que minha mãe fazia, para reforçar o faturamento da pequena venda de meu pai. Em seguida, veio-me certo bife acebolado com molho ferrugem, que minha tia Alda fez numa tarde, para lancharmos na Vala, antes de voltar a Carabuçu. Eu e Zé Fábio, filho dela. É só me concentrar um pouquinho, para sentir novamente aquele sabor.

E um prato das artes de minha outra tia, a Toninha, hoje conhecido como bolo de batata com carne moída, mas que, na época, ela chamou de cuscuz – não sei por quê. Era outra delícia, que sempre pedíamos repetir.

Um tempo depois, da dureza do primeiro ano ginasial em regime de internato, no Colégio Bittencourt, em Campos, ficou o ajantarado de domingo, refeição com certo gosto de pompa, oferecida pela escola como a única do dia. Havia um arroz de forno inesquecível. E nem devia ser tão bom assim. Afinal, era comida de escola! Mas vai explicar isso para o apetite de um menino de treze anos, com a voracidade dos nascidos logo após a Segunda Guerra.

Por essa época, também, houve o robalo recheado preparado na casa do primo Edalmo, que morava em Campos, em comemoração ao batizado de seu filho Carlos Augusto. Jamais comi um peixe assado, recheado, como aquele.

Já um pouco mais galalau, de volta a Bom Jesus, vez em quando filava a sopa pedaçuda que tia Colola fazia para o jantar, na época de frio. Era tão saborosa quanto quente, e tínhamos tanta pressa de ir para o curso noturno, que eu e Zé Fábio colocávamos duas pedras de gelo no meio do prato. Tal técnica garantia não chegarmos atrasados ao Colégio Coronel Antônio Honório.

Já morando em Niterói, numa viagem a Minas, paramos em Sete Lagoas para almoçar em restaurante localizado à beira de um lago – era 1974. Após feijão tropeiro, lombo e carré de porco, torresmo, linguiça assada, couve à mineira, tutu, arroz molhadinho, fomos até à cozinha dar um abraço na cozinheira, que ficou toda vaidosa por ter agradado aqueles “cariocas” com sua comida tradicional.

Já casado, na volta da viagem de lua de mel meio alternativa, pelos países do Cone Sul – denominação que ainda não existia –, em 1976, depois de trinta dias sem a culinária brasileira, adiamos a viagem de volta em Foz do Iguaçu só para comer arroz com feijão. E foi uma experiência restauradora das nossas raízes. Como o feijão nos fizera falta!


Em 2003, numa viagem com o casal de amigos Rogério Fernandes e Laura Dutra, restou inesquecível o prazer do polvo grelhado com batatas ao murro, durante o jantar no Restaurante Adega do Morgadito, em Torres Vedras, Portugal. Convocamos o cozinheiro ao salão, para agradecer-lhe pelo prato.

Restaurante Adega do Morgadito (em onossoutroprazer.blogspot.com).

Há poucos anos, a quitanda metida a besta Hortifruti andou promovendo degustações harmonizadas de comidas típicas e vinhos de países produtores. E não me esqueço jamais do gosto maravilhoso do toucinho do céu – doce português de nome esquisito – com vinho do Porto. Até hoje, foi o doce mais saboroso que já comi.

Mais recentemente – e com certa frequência –, reúno-me com os amigos Rogério Barbosa e Eduardo Campos para degustar o maravilhoso bacalhau à lagareiro do Restaurante Alentejano, na Rua São José, no Centro do Rio de Janeiro.

E ainda há a cabritada à napolitana de minha irmã Elizabeth; a inusitada salada quente com batatas cozidas, tomate, ovo cozido, alface e molho refogado de cebola de minha mãe; o refogado de jiló com quiabo de minha sogra; o arroz com frutos do mar de minha mulher e a poderosa feijoada que eu mesmo faço, sem a mínima falsa modéstia.

O mal não é o que entra na boca do homem. É aquele maldito dente que dói só à noite e nos fins de semana.

Até a próxima.
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Publicada originalmente em Gritos&Bochichos.