30 de agosto de 2012

VAGA PRESENÇA

não é vaga tua presença
nem fluida tua pele
a hora simplesmente não soou em mim
e a noite veio dizer
que tu não existias:
apenas minha cabeça era alucinação pura.


Foto de Ana Geiser, em anageiser.com.br.

28 de agosto de 2012

NO BAR DO POLITICAMENTE CORRETO


No bar do politicamente correto
É tudo papo reto
Gole certo
Não se fala da mulher do prefeito
Nem se bebe de modo imperfeito
Não se crítica o padre o pastor o rabino
Não se mistura conhaque com quinino
Come-se rim ovo azul sardinha e tremoço
Não se discute futebol
Todos apoiam a seleção
Não se repara na moça que passa
No seu passo apressado em direção à calçada
Rodando a bolsa comprada à prestação
Só se bebe cerveja gelada
E a pinga não é batizada
E na parede o cartaz anuncia que não se vende fiado
Ao lado de outro em caligrafia tosca
Que adverte o freguês
: Em boca fechada não entra mosca
Tudo porque o patrão é um português enfezado
Que já tolera demais
Muito papo furado
E não quer nada incerto
Com esse tal pessoal
Do politicamente correto.

File:Lautrec at the moulin rouge 1892.jpg
H. de Toulouse-Lautrec, No Moulin Rouge, 1892/1895 (em commons.wikimedia.org).

26 de agosto de 2012

CAPIVARA DE ESTIMAÇÃO

Já estou um pouco velho para falar em bicho de estimação. Em minha cabeça, bichos de estimação são coisas de crianças. E de crianças citadinas. Não de um coroa interiorano como eu. Embora tenha em minha família vários adultos que amem seus animais de estimação, bem como alguns amigos.
Pois sou de um tempo e de um lugar em que tínhamos bichos, mas não tínhamos essa moderna estimação por eles. Quando muito, uma ligeira simpatia. Eles eram bichos, nós éramos gente - mais ou menos por aí. Eles viviam sua vida sem dar muita bola para nós; nós, por nosso lado, também não nos interessávamos tanto por eles. Não lhes fazíamos cafunés; eles não nos lambiam. O gato perseguia o rato; o cachorro acuava a paca, e por aí afora. Talvez os passarinhos fossem os animais mais estimados. Mas nem tanto, também. Com frequência eram objeto de permutas, vendas, empréstimos para acasalamento com a fêmea do amigo.
Na minha casa, havia uma gata preta, de pelo curto. De vez em quando, fazia saliências com algum gato da vizinhança, sob a luz da lua e uma balbúrdia infernal, e daí a pouco punha uma ninhada no mundo.
Ela jamais dormia dentro de casa. Nem nome tinha, ou minha memória falha. Era simplesmente a gata preta.
Certa vez, meu pai colocou-a dentro de um saco e me mandou, de bicicleta, soltá-la longe de casa. Pedalei em direção ao Jacó e a libertei num pasto à esquerda da estrada. Ela saiu desesperada de dentro do saco.
Quando cheguei a casa, algum tempo depois, lá estava ela, enroscada junto a um esteio que sustentava a máquina de moer café, como se jamais tivesse arredado as patas dali.
Como sempre, fiquei assustado com ela.
Gatos eram portadores de má fama, e, por várias vezes, experimentei bons medos, em companhia de meu irmão Guth, por conta de histórias felinas assombradas.
Uns meses depois, lá vou eu novamente levando a gata no saco, na direção da Fazenda da Liberdade, num caminho mais comprido. E ela nunca mais voltou!
Ninguém ficou triste.
Meu pai sempre teve passarinhos em gaiolas: coleiros, canários-da-terra, canários belgas, canários-do-reino, bicos-de-lacre, curiós, papa-capins, trinca-ferros, arapongas, galinhos-da-serra, cardeais, bicudos. E a gata sempre fora uma ameaça a eles.
Na época, não havia o sentimento de crueldade em ter pássaros cativos. Isto é coisa mais recente.
Tenho a impressão de que, quanto mais nos tornamos intelectualmente sofisticados, tanto mais criamos uma série de tabus e interdições que, para a concepção de algumas gerações anteriores, podem soar estranhas. Hoje ter pássaro preso é crime.
Minha avó materna, Maína, teve por um tempo um pequeno cão branco com manchas pretas, uma espécie de bassê, de nome Tupi. E também nunca a vi ficar de chamego com ele.
Hoje parece que os cães se tornaram membros da família.
Minha mãe, em cuja casa hoje há dois pequenos yorkshires, reclamou da neta que, tendo voltado de viagem a Niterói por esses dias, gastou bom tempo em confraternização com um deles, até que fosse falar com os membros humanos da família. Para ela, isto é uma total inversão de valores.

Imagem em baixaki.com.br.

Pois, com tudo isso, lá pela volta dos meus oito-nove anos, papai resolveu nos comprar uma capivara. Nunca atinei bem com a verdadeira intenção dele com isso, embora ele sempre tenha tido um espírito de cigano negociante.
Antes de a levar para casa, reforçou a cerca do quintal com bambus, a fim de que ela não fugisse.
De repente, eu e Guth - nossa irmã Elisa era ainda muito pequena - tínhamos uma capivara de estimação.
Ela ficou lá durante algum tempo - não me lembro de quanto - solta no quintal, e nossa relação com ela se limitava a esporádicas passadas de mão em seu pelo grosso, com todo o cuidado para que não nos mordesse. Segundo papai, os dentes dela eram poderosos e podiam arrancar nossos dedos.
Era possível sentir que a capivara desconfiava de tudo e se mostrava arisca, fugindo sempre de nós, com os olhos redondos alertas aos nossos movimentos.
Um dia qualquer, ao acordarmos, a capivara não se encontrava mais em nosso quintal. Papai nos disse que ela fugira por um buraco na cerca - e nos mostrou o local de escape do roedor gigante.
Ficamos tristes de forma comedida, sem desesperos.
Muitos anos após, já homens feitos, mamãe nos disse que papai a vendera para alguém, que provavelmente fez um bom churrasco com ela, que devia pesar uns quinze quilos.
Até hoje guardo certa estima por capivaras, que acho o bicho mais simpático da fauna brasileira, apesar de seu jeitinho meio abestado.
Quanto aos gatos, nada tenho a favor. Nem contra.
Já quanto aos cães, confesso que criei bastante estima, em especial, por um americano, um tal de Hot, adaptado ao gosto de Carabuçu: carne moída, linguiça em suculento molho de alho, cebola, azeitona, tomate, pimentão, colorau, extrato de tomate e pimenta do reino. O saborosíssimo cachorro-quente caipira.

24 de agosto de 2012

RUAS



esta rua deserta na madrugada
fede nos meus olhos de desgosto
fede nas ruínas dos meus narizes múltiplos
que captam fedores vários.
esta rua sombria na madrugada
urra no medo da solidão
berra nos motores da angústia
dos que passeiam noturnos
seus males de amor.
esta rua fétida na madrugada
espalha seus vazios nas almas dos desgarrados
dos perdidos
como quem brinca de tira e bota.
esta rua negrume na madrugada
de manhã estará rodando com pressa de ir para o trabalho.


Rua à noite, foto do autor (em flickr.com/photos/saint-clairmello.)


22 de agosto de 2012

ATÉ OS OSSOS

na conexão quente dos corpos
há tantos desejos
que alguns caem da cama
e fraturam o tronco
e derrubam copos
mas acabam se consumindo até os ossos

Lilian Zampol, Corpos entrelaçados, s/d (em artemaior.com.br).

20 de agosto de 2012

HOW TO BE A BOTAFOGO SUPPORTER

Dei o título desta crônica em inglês, chupada do livro How to be a carioca, da norte-americana Priscilla Ann Goslin, a fim de que vocês possam aquilatar as dificuldades que tive em fazer do meu filho, nascido em 1977, um sincero torcedor do Glorioso, ainda que passe por crises frequentes, quando nosso time faz suas trapalhadas.
Seu nascimento ocorreu, como se percebe, na fase negra do clube, período que compreendeu um jejum de títulos cariocas por 21 anos, e só encerrada no glorioso 21 de junho de 1989, aos 21 minutos do 2º tempo com o catártico gol de Maurício, contra o Flamengo. Deixei os números grafados em algarismos para a coisa ficar um tanto cabalística, como é de nossa folclórica estima.
Naquela noite em que nos sagramos campeões invictos, ele já com doze anos foi para a varanda do apartamento gritar alucinadamente em comemoração. Vários vizinhos também chegaram a suas varandas para lhe dar os parabéns, pois sabiam de sua paixão desenfreada pelo alvinegro e o sofrimento por que passávamos.
Mas, até que chegasse a isto, foi um percurso cheio de peripécias. E parte delas já narrei em outra crônica (Tua estrela solitária nos conduz).
Depois de providências normais - camisa do time, conselhos do pai, etc. -, levei-o ao Maracanã com frescos dois anos de idade. Meu amigo Chico Pereira, irmão do grande ator Tonico Pereira, foi comigo e garantiu a segurança do pequeno. Foi o próprio Chico que me incentivou a isso: “Leva o Pedro, que ajudo a tomar conta!”, já visando a aumentar nossa torcida.
Mas nem havia necessidade.
Não me lembro bem por que, mas o Maracanã estava meio às moscas, embora o jogo fosse contra o Vasco. E ficamos tranquilamente sentados do lado da sombra, com muito espaço à nossa volta. Talvez reflexo daquela fase medonha que vivíamos.
O primeiro tempo terminou em 1x1, e Pedro se manteve acordado. No início do segundo, ele quis dormir, e o estendemos sobre nossas pernas. Ainda tentei incentivá-lo, dizendo que logo, logo faríamos um gol. Mas antes mesmo de pegar no sono, o Botafogo fez o segundo gol e manteve o resultado até a final. E ele também se manteve acordado até o fim.
Voltamos, a partir de então, várias vezes ao Maracanã e, posteriormente, ao Caio Martins, onde, durante bom tempo, mandávamos nossos jogos.
E, com as idas e vindas do time, foi-se construindo nele o amor pelo time que, às vezes, se transformava em ódio, diante de derrotas quase inexplicáveis.
Já na final do Campeonato Brasileiro de 1995, no jogo em São Paulo contra o Santos, ele ficou de tal forma nervoso, que se retirou para a cozinha, para não sofrer com o término da partida.
E só foi à varanda gritar desesperadamente, após eu lhe garantir que tínhamos conquistado o título e ele ter tomado uma dose reforçada de Maracujina, que sua mãe preocupada lhe dera.
Ele sempre ia comigo, fazendo uma torcida decidida, apaixonada e, comumente, meio ensandecida. Como no jogo contra o Palmeiras pelo campeonato brasileiro de não sei quando.
Estávamos nas arquibancadas descobertas do Caio Martins. Estavam conosco os amigos Zé Antonio Lahud e Pedrinho Mello – que não é meu parente como possa parecer – com seus filhos ainda crianças, mais um amiguinho deles. Estes se sentavam no degrau inferior. Nós, no superior.
Veio até o canto esquerdo do ataque do Palmeiras, a fim de cobrar um escanteio, o meio-campista Darci, um jogador aloirado, tipo sulista.
Pedro, já rapazola, voz poderosa ressoando num peitoral de responsabilidade, troa em direção ao palmeirense:
- Darci, seu merda! Seu pai é corno, sua mãe tá na zona, sua irmã é puta!
Os meninos do degrau debaixo viraram a cabeça, espantados com a sequência de xingamentos. Eu, inclusive, chamei sua atenção, pois notei que os garotos ficaram chocados.
Darci chutou o escanteio para fora, longe de nossa meta.
Naquele domingo, ganhamos o jogo.
Acho que o Pedro teve uma participação decisiva no placar.
Hoje está um tanto mais equilibrado, se é que se possa dizer que um torcedor de futebol seja equilibrado, mas mantém alguns rompantes de euforia e ódio, conforme as trapaças que o time da Estrela Solitária nos arme.
Mas como poderia ser diferente?
Não há outro caminho: ou é este, ou este!
Imagem em letrasrelicario.blogspot.com.

19 de agosto de 2012

EU E TOM ZÉ; TOM ZÉ E EU.

Em setembro-outubro de 2003, fizemos uma viagem por Portugal, Espanha e França: Jane, eu e os amigos Laura e Rogério. Chegamos por Lisboa, de onde partimos num carro alugado em sistema de leasing até Paris.
Como gostamos muito de música – Rogério, inclusive, é baixista dos bons –, levamos alguns CDs de música brasileira, para ouvir durante o trajeto de cerca de dois mil quilômetros e aplacar possíveis saudades que nos perseguissem.
Quando estávamos próximos a Paris, Rogério teve a deferência de me passar a direção do furgão, a fim de que eu tivesse a honra de entrar dirigindo na Cidade Luz, que já havia visitado por outras vezes, porém sempre por via aérea.
Trocamos de lugar, e fiz questão de colocar no toca-cd do carro, já que eu estava no comando do possante, o disco de Tom Zé que selecionara para a viagem.
Na minha cabeça, a música de Tom Zé era o contraponto ideal para aquela cidade. Não um contraponto que opunha Terceiro a Primeiro Mundo; mas sim modernidade a tradição. Imaginava confrontar a música e a poesia em constante reboliço do músico baiano, com a arquitetura preservada da capital francesa e sua atmosfera clássica. Esta, com seu belo e sisudo aspecto; Tom Zé, com suas imagens inesperadas, seus versos ímpares, sua música surpreendente, ainda que calcada na mais profunda tradição nordestina.
Tenho em Tom Zé um dos nossos mais geniais artistas. Certamente, o mais desconcertante, inusitado e imprevisível. A não ser que a previsibilidade esteja justamente na sua constante invenção.
Meu primeiro contato com ele foi através da tevê da pensão de dona Dinorah, onde eu morava no final dos anos 60, princípio dos 70. O Tropicalismo estava iniciando e ele, com Gilberto Gil e Caetano Veloso, formava a Danadíssima Trindade do movimento.
Um pouco depois, no início de 1971, comprei meu primeiro long-play – o disco da época – de Tom Zé, que levei para casa. Era o homônimo Tom Zé, de 1970.
Por essa ocasião, ainda solteiro, morava com os primos Zé Fábio e Roberto Bedu e o amigo Zé Fernandes.
Como eu e Bedu gostássemos muito de música, compramos de sociedade uma boa aparelhagem de som, como se dizia, constituída de receiver, toca-discos, amplificador, equalizador e duas poderosas caixas Sonata Gradiente.
Cheguei ao apartamento, que estava vazio. Botei a bolacha para rodar, enquanto fui para o banheiro tomar as providências de praxe e, em seguida, tomar o banho.
Enquanto estava sentado placidamente no trono de todos os pobres, ouvindo atentamente o som que deixara a uma altura razoável para o pequeno apartamento, comecei a balançar a perna, automaticamente, acompanhando o ritmo de Guindaste a rigor, a segunda faixa do lado A da bolacha.
Propriamente a letra era à Tom Zé. Quer dizer, bem louca como sempre. E eu, ali, pelado, sentado no vaso, ouvindo e sacudindo a perna, compulsivamente arrebatado pelo balanço da música.
No final da canção, depois de desfilar dezenas de versos non-sense, porém seguro da força de seu ritmo, ele canta, como se profeticamente tivesse a certeza do comportamento do ouvinte:
Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou?
Senti ali uma sacanagem com a minha pessoa, desprevenida do jeito em que me encontrava: pelado, sentado no vaso sanitário, fazendo a coisa mais prosaica possível que o ser humano possa fazer, mas que não convém a ninguém ver e nem aqui vou dizer com as palavras próprias. E, por isso, fui conquistado por aquele artista iconoclasta, irônico, debochado, mas, sobretudo, genial.
Pouco tempo depois, após ter terminado meu curso de graduação em Letras, mantive minha matrícula aberta e me inscrevi em algumas matérias que me pareceram deficientes no meu currículo de Francês-Português, como Teoria Literária.
Lembro-me, perfeitamente, de que a então professora Diva Rocha dizia estar a boa e moderna poesia brasileira ligada à música popular. E destacava o valor de poetas não considerados pela intelligentsia acadêmica. Segundo sua opinião, os três maiores autores eram Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos.
Aluno já com o curso completo, tive a petulância de lhe dizer, na oportunidade, que concordava parcialmente com ela. Para mim, os três maiores eram Chico Buarque, Caetano Veloso e Tom Zé. Ela me respondeu, concordando, também em parte, reconhecendo o valor do compositor de Irará, mas que tinha preferência pelo texto romântico de Roberto.
Eu preferia (prefiro) o texto crítico, satírico, corrosivo, de Tom Zé.
Muitos anos depois, já no setor em que eu estava lotado, foi lá trabalhar um jovem interessado em música. Como reconheceu em mim um parceiro mais velho, mais experiente, estava sempre a puxar conversa. Até que eu lhe disse dessa minha preferência por Tom Zé. E ele ficou sem entender muito bem por que, raios, alguém que parecia ter certo juízo iria gostar assim daquele baiano maluco.
Certo dia, ele comentou com outros colegas, com algum estranhamento, através de uma frase que me ficou marcada na memória, esta minha preferência: “Saint-Clair gosta até de Tom Zé!”.
Quando a colega Josy veio contar-me o caso, dando boas risadas, fui até ele e lhe disse: Eu gosto, sobretudo, de Tom Zé.
Por isso tudo, é que quis fazer minha entrada triunfal na Cidade Luz, no comando de um carro, pela avenida que chega a Paris a partir de Blois, no Vale do Loire, com Tom Zé no carro. E não, qualquer música. Mas aquela que me tirou do sério no início dos anos setenta, Guindaste a rigor*:
 Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou?


Capa do elepê de 1970 (em hominiscanidae.org).

(*Se quiserem, podem ouvi-la em http://youtu.be/0eksDYn2Tmg.)

17 de agosto de 2012

DORMEM TANTO NOSSOS VELHOS

Dormem tanto nossos velhos
(Como bebês idosos):
Meu pai, aos noventa e cinco;
Aos noventa e seis, meu sogro.
Porque estiveram por muito tempo despertos
Cuidando da prole
Zelando por toda a família
Às vezes perdidos em vigílias
Noites adentro.
Hoje eles dormem
Esperando que velemos por eles
Até que os seus dias se consumam.
Por inteiro.


1631 Rembrandt Vieillard assis, Sitted old man Dessin Sanguine et pierre noire 226x157 mm Kupferstichkabinett, Benesch, 41
Rembrandt, Vieillard assis, 1631 (em paintings-art-picture.com).


15 de agosto de 2012

COTIDIANO




Na fábrica, pegava a porca, engraxava o parafuso, encaixava ele nela, enroscava os dois até grimpar e dizia com ar satisfeito: Eta parafusinho bem arroxado!
Na hora do almoço, esquentava a marmita atulhada, sentia seu peso, pegava o garfo, comia com a boca cheia e dizia feliz: Eh marmitinha bem comida!

Depois do almoço, palitava os dentes, bebia um bom gole d’água, tomava cafezinho, dava um arroto espaventoso e falava cheio de gases: Ê arrotinho bem puxado!
Ao final do trabalho, ia para o bar, tomava chopinho, comia tremoços, traçava uma cana firme, destrinchava sardinhas, ficava de pileque e balbuciava meio pastoso: Eia ferrinho bem tomado!

Pegava o trem sempre lotado, empurrava daqui, apertava dali, avançava sem querer, descontava do lado, tirava o pé de baixo, reclamava do parceiro e gemia contrariado: Que trenzinho mais desgraçado!
Chegava a casa cheirando a suado, nem queria saber da mulher, os filhos já dormindo, deitava como um porco, roncava feito um urso hibernando e sonhava: Mas que sonhinho arretado!

A mulher esperava apenas o terceiro ronco, abria a porta, chamava o vizinho, deitava no sofá, arreganhava as pernas, o sarro comia até lá pelas tantas e dizia no fim: Eh maridinho bem corneado!
Bem cedo, acordados, ela fazendo a marmita, a discussão já começava, sua vaca, seu viado, sua piranha, seu filho-da-puta, os filhos chorando, gritando, e os vizinhos pensando: Eta casalzinho mais safado!


Imagem em accorrea.com.br




(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em 7/3/2010.)

13 de agosto de 2012

AMORES DE ESTAÇÃO


Vão-se a cada ano as estações
e todos os amores vãos.
Outono, inverno, primavera, verão
se vão numa eterna sucessão
como se vão tais amores
embarcando no cais
- coalhado de ilusão -
de cada estação.



Imagem em comoviaja.com.br.



11 de agosto de 2012

PERNILONGO

Imagem em gartic.uol.com.br.


Perco o sono de madrugada
Vou para a sala
Sento-me na poltrona
Não quero nada
E nesse abandono
De quem espera se faça manhã clara
Vem um pernilongo atrapalhado
E me bate na cara




9 de agosto de 2012

LAVÍNIA E LAVOISIER



Lavínia lavava a roupa como se lavasse a vida. Levava o cesto limpo na cabeça, caminho de casa, cantando certas canções dolentes, que envolvem a gente, que revolvem trapos, que enganam as tristezas e por aí afora.

O mesmo caminho trilhava sempre, o capim gordura conhecia seus requebros, seus horários.

Lavoisier, seu marido de nome esquisito naqueles ermos, vivia de transformar pedra em pau, pau em pedra, grão em trigo, trigo em pão, fazendo das tripas coração, nos oito baixos da sanfona. Lavoisier era quase um mágico caipira. E trabalhava a madeira, e fazia pião, carrinho, bodoque, caminha, cadeirinha e brinquedos mais.

Na cama estreita, no quarto estreito, na estreita casa, enquanto Lavínia lavava a alma no corpo de Lavoisier, Lavoisier transformava a rudeza da vida, a aspereza da mão em mil formas distintas de brinquedos de corpo sem forma definida, mas de um prazer tão gostoso que parecia que Lavínia lavava o céu límpido e ele fazia brinquedos com os tufos de nuvens perdidas na imensidão.


Imagem em gartic.uol.com.br.


(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em  13/3/2010.)

7 de agosto de 2012

APÓS OS AMORES FRUSTRADOS

O que será que prevalece após os amores frustrados?
Os beijos trocados?
As carícias perdidas?
A respiração ofegante depois do sexo suado?
Os sonhos mortos em horizontes improváveis?
As madrugadas escuras dos dias claros
Com que se anda pelas ruas esburacadas
Ou nada?
Porque a um amor frustrado
Não há de prevalecer absolutamente nada!
A vida, essa coisa imponderável,
Nos reserva a cada curva,
A cada esquina,
Um sem-número de retomadas.
E uma multidão de fantasmas passados.




H. de Toulouse-Lautrec, Gueule de bois : la buveuse (c. 1887/1888), em toulouselautrec.free.fr.

5 de agosto de 2012

ASSIM OU ASSADO

Não sou o que pareço
Não pareço o que sou.
Se sou assim ou assado
É que estou do avesso
Como anverso de folha em branco
Sem fim nem começo
Com não com sim com talvez.
E ai de mim
Se a cada vez
Não for assim!



Jan Toorop, O grave, where is thy Victory, 1892 (em eurocles.com).

3 de agosto de 2012

DO TEMPO DO ONÇA

Há algum tempo (não muito, por certo!) publiquei no blog a postagem Lugares distantes, em que, de forma abreviada e superficial como é minha praxe, fiz um apanhado das expressões que denotam, nas frases, a noção de lugar. Aquilo que a gramática tradicional classifica como adjunto adverbial de lugar.

Como disse naquela oportunidade, pelo fato de ser interessado no fenômeno da linguagem, sempre vêm caraminholas linguísticas perturbar meu descanso remunerado de aposentadoria. Desta vez é a noção de tempo. E isto motivado por uma frase ouvida de pequeno falante de nossa mui bela língua.

Imagem em infoescola.com.

O tempo, do ponto de vista psicológico, pode ser bem diferente daquele que é medido pelo relógio e pelo calendário. As vinte e quatro horas do dia passam aceleradamente, caso você tenha muitos problemas a resolver, o que o leva a ansiar por um dia de vinte e cinco ou mais horas, por exemplo. Ao contrário, caso você esteja tranquilo, desfrutando de um ócio quase pernicioso – como se isso fosse possível –, é bem provável que aquelas mesmas horas lhe pareçam infinitas e maçantes. A este respeito, aliás, Millôr Fernandes tem uma frase excepcional, em que joga com a tensão entre essas duas percepções de tempo: “A cada mês, sobram mais dias no meu salário” (cito de memória).

No curso de Letras, aprendemos logo cedo a distinção entre o tal tempo psicológico – matéria básica da obra literária – e o tempo físico, astronômico, propriamente dito – aquele determinado para entrega dos trabalhos de literatura, por exemplo.

Mas a tradição da língua nos oferece algumas expressões interessantes, além dos óbvios hoje, ontem, amanhã, depois de amanhã, anteontem, trasantontem/ trasanteontem, agora, depois, logo, breve,, e por aí afora (Isto aqui não é aula de gramática!). Algumas dessas noções, lá em Carabuçu, dizíamos, por exemplo: onti, antonti ou antionti, tresantonti, istrudia (estoutro dia, há alguns dias) e dijaoje (hoje cedo, ainda há pouco).

As expressões que aqui me interessam estão impregnadas pelo caráter estilístico próprio de nossa língua. Vejam alguns exemplos e minhas impertinentes observações:

a) Tempo do onça – Época antiga e imprecisa, mas bem antiga, que nos remete a um país menos povoado por gente e mais por onças e outros bichos do mato. Ou será que a falta de concordância da expressão do onça é por que já é um aportuguesamento do inglês once upon a time?

b) Tempo do cagar de coque (de cócoras) – Tempo que precedeu à tecnologia do penico e, por consequência, à da casinha, à do vaso sanitário e, finalmente, à do water closet, com sua caixa de descarga ecológica, para xixi e cocô. Era também o tempo da frase “Vai cagar no mato!”, xingamento hoje muito brando, já que não inclui a progenitora do nosso adversário, como é próprio dos impropérios modernos. Às vezes, em determinadas situações e premido por certas circunstâncias intestinais que nem é bom lembrar, vamos da era da privada tecnológica ao tempo do cagar de coque num átimo. É só o intestino mandar!

c) Tempo em que se amarrava cachorro com linguiça – Tempo antiquíssimo que nos remete aos primeiros dias do Éden, antes de Adão e Eva fazerem a m*rda que fizeram. Naquela altura, até mesmo os animais carnívoros eram educados e se podia facilmente amarrar um cão com este tipo de corrente.

d) Tempo da Carochinha – Esse é um tempo em que até mesmo nossos avós, bisavós e tataravós eram criancinhas. Está lá perdido no meio daqueles livros de histórias infantis, na memória da gente. É tempo velho do tempo de nós meninos. Mais ou menos por aí. E talvez seja o que nos dá mais saudades.

e) Tempo do ‘derréis’ (dez réis) e do vintém – Tempo bom, em que “se vivia muito bem, sem haver reclamação”, como diz o samba famoso*. E não serei eu a contestar a afirmação do sambista. Contudo penso que este tempo caro à memória era concomitante ao que vem logo a seguir.

f)  Tempo de Dondom** – Também cheio de coisas boas, segundo o sambista, pois “nossa vida era mais simples de viver”, cheio de cortesias e de boas lembranças. Até de um jogador que ninguém conhece, de um time desconhecido, o Andaraí. O bairro é logo ali mesmo, e o tempo deve estar perdido em suas ruas e vielas. Pode ser que o tempo esteja a andar aí.

g) Naquele tempo – Expressão consagrada pela Bíblia, que dela faz muito uso, e é tradução do latim da Vulgata in illo tempore. Como os textos da Bíblia já são muito antigos, quando falam naquele tempo, deve ser coisa beirando o tempo da criação do mundo. Sei lá! Mas sempre soa como coisa antiquíssima.

h) Tempo do rei – Este é um tempo fácil de ser encontrado nos antigamentes: é de quando houve rei. Acabou-se o rei, findou-se o tempo. Ruy Castro o utilizou em um de seus livros: Era no tempo do rei***, em que fabula peripécias de um D. Pedro I na adolescência, reinando pelas ruas do antigo Rio de Janeiro, do tempo do rei.

i)  Tempo de D. João caroço – Já este tempo é indefinível, mas bem anterior ao do rei. Pelo menos é o que se sente da expressão. E do caroço de D. João.

j)  Tempo das vacas magras – Este é um tempo atemporal, individual ou coletivo. Pode ter sido ontem, há um mês, há um ano, há muito tempo. Há um borbotão de pessoas que ainda vivem no tempo das vacas magras e ainda não têm a perspectiva de escapar dele. Vejam, então, que é um tempo sem tempo definido. Como o do trabalhador brasileiro que, segundo a propaganda do governo, saiu dele, mas, conforme notícias atuais, para lá volta daqui a pouquinho.

k) Tempo do cinema mudo/do cinema preto e branco – Este é um tempo facilmente marcável. É só você ir à Wikipedia e ver lá. Não vou perder tempo com isso.

l) Tempo do rádio de rabo quente – Um pouco anterior ao tempo do cinema mudo. Os chamados rádios de rabo quente apareceram no princípio do século XX e eram a alegria das pessoas. O problema é que deviam ser ligados um pouco antes, para que esquentassem e começassem a espalhar seus encantos e maravilhas modernas no ar.

Finalmente volto ao motivo inicial que me despertou estas considerações.

Pois não é que ouvi, dia desses, um menino dizendo para o outro que o seu pai era velho “do tempo em que o papel higiênico não rasgava no picote”, como se tal grande avanço tecnológico tivesse sido conseguido há décadas. O colega se espantou, pensando tratar-se da coisa mais antiga do mundo. Onde é que já se viu o papel higiênico não rasgar no lugar picotado?! Aos dois parecia um despropósito. E o coleguinha ainda falou:

- Aê, mané! Seu pai é velho pra caraca!

Ou, como diria o grande José Cândido de Carvalho, “pratrasmente de muitos anos”.

Fico por aqui, pois meu tempo acabou!
———-

* Saco de feijão, de Chico Santana, gravado por Beth Carvalho no elepê Nos botequins da vida (RCA, 1977).
** Tempo do Dondom, de Nei Lopes, gravado pelo autor no cd De letras e música (Universal, 2000).
*** CASTRO, Ruy. Era no tempo do rei. 1. ed. Ed. Alfaguara Brasil, 2000.

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em 18/5/2012.)

1 de agosto de 2012

ENQUANTO OS CÃES CHEIRAM-SE OS RABOS

Não diga nada
Venha sentar-se aqui à sombra
E deixe que os cães se cheirem os rabos
Nós mesmos já nos cheiramos tanto e nos perdemos
E agora sobram esses cantos de pássaros pelas árvores
Que sinfonia é esta que desafina?
Que deleite é este que não sossega?
Venha sentar-se aqui à sombra
Porque de sol já nos fartou a vida
Um dia morreremos
E quase nada sobrará
Senão os ossos
E os remorsos daquilo que perdemos
De nada valerão a sombra o sol e o canto dos pássaros
Enquanto os cães seguirão rumo ao infinito
Indiferentemente
Cheirando-se os rabos


Cães tricolores franceses (em fond-ecran-images.com).