31 de dezembro de 2010

FELIZ ANO NOVO!

Vem aí o Ano Novo
resfolegando sobre os trilhos d'antanho
abrindo brechas em nossos sonhos
anunciando o improvável o impossível

Tomara que não descarrilhando
o trem que vem cheio de planos
possa trazer como é nosso desejo
goiabada com queijo
abraços e beijos
alfenins de açúcar
paladares suaves
muita paz e justiça
se possível dinheiro
pelo ano inteiro.

PAZ, SAÚDE E FELICIDADE A TODOS!

29 de dezembro de 2010

PROMESSAS DE ANO NOVO


(Imagem obtida em copacabana.com)

Era tido e havido como um esbanjador. Mazinho, como era chamado por todos, gastava mais do que podia. E podia sempre mais. Aí vivia encalacrado em dívidas, tendo de trabalhar dobrado, fazer serão, biscate, apostar no bicho, tomar empréstimo com parentes, para poder levar os trinta dias até o fim do mês. Caso contrário, terminava na quinzena, o mais tardar no dia vinte, apenas tomando café com leite e pão com manteiga, no pendura da padaria de seu Romário, uma espécie de contraparente, com quem contava na hora do aperto.
Na verdade, nem ganhava bem, mas tinha nascido com o espírito de rico. Quem é o culpado? Eu, você? Ninguém! Muito menos ele. Apenas dava vazão ao seu instinto de perdulário, incapaz de ser contido por qualquer conselho, por qualquer dificuldade. Tinha sempre a confiança de que, um dia, por um milagre qualquer, ajudado talvez pela providência divina, que não falta ao devoto, acertaria na sorte grande de qualquer loteria, ou encontraria uma mulher mal amada e bem nascida, a quem pudesse consolar nas noites de frio, e, como consequência, arrumar sua vida.
E ia sonhando assim, sem procurar precaver-se para o futuro, alguma coisa incerta em sua vida. Um dia tudo se ajeitaria. Era o que esperava.
Numa passagem de ano – fecho de uma década e abertura de outra – cheia de bons presságios, um novo signo, ou um dos bichos esquisitos do imaginário chinês, a gerir a vida de todo o planeta, tratou de encomendar despacho bem urdido, em terreiro com letreiro de neon na entrada. Para não dar chance ao azar, também procurou todas as simpatias, rezou todas as rezas, comeu as uvas necessárias, deu os tais pulinhos em não sei quantas ondas, jogou flores para a rainha do mar e soltou o barco enfeitado, que adentrou a escuridão das águas na passagem da meia-noite. Em seguida, cruzou e descruzou os dedos, benzeu-se e beijou a primeira mulher feia que encontrou, com tanta paixão, que a pobre coitada desfaleceu, achando que seu príncipe encantado acabara de chegar. Cumpriu, assim, a última fase do ritual que um vidente lhe receitara, para ajeitar as finanças e poder usar as roupas bonitas que sempre desejara, entupir-se de perfumes caros e frequentar manicuras e pedicuras nas tardes de quinta-feira, sem compromissos a tratar.
Assim que se pôs a voltar em direção ao calçadão da praia, o barco já sumido no breu da noite, sentiu alguém puxar-lhe a camisa branca devocional. Era a mulher feia, que já havia recobrado o tino das coisas e entendeu que suas preces também tinham acabado de ser atendidas. Podia estar ali o homem da sua vida.
Apresentou-se, mas ele não a reconheceu, pois a beijara sem escolher, no impulso de cumprir o ritual recomendado. Foi a primeira que encontrou ao dar as costas para o mar. Ela insistiu e ele caiu em si. A mulher, do jeito que estava, merecia uma reforma geral de um competente cirurgião plástico e não o amor devotado de um homem pretensioso como ele. Mas, quando ela declinou seu nome, com sobrenome de coluna social e negócios de atacadista de secos e molhados na praça de Niterói, Mazinho viu que, talvez com algum sacrifício, pudesse sair da situação de arrocho em que vivera até então e estabelecer-se na função de marido sortudo. Já que não nascera rico, pelo menos poderia casar-se com mulher rica.
Contou a ela, então, o motivo do seu gesto, e ela viu naquilo a predestinação dos astros que se conjugavam nos desvãos do universo, a fim de unir suas vidas. Ele achou-lhe o discurso um pouco precipitado, mas ponderou, de si para consigo, no escondido do cérebro, não ser hora de chutar para escanteio uma bola que lhe era lançada na pequena área, com o gol vazio, goleiro já nocauteado. Não lhe custaria mais esse sacrifício, depois de tantos por que passara. E, sordidamente, pensou em todas as possibilidades que um homem enricado da noite para o dia teria com as mulheres desamparadas que circulavam pela cidade e adjacências. E vislumbrou suas inconsequências devastando Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Região dos Lagos.
Mas não contava ele que as mulheres, feias ou belas, têm as suas artimanhas, quando intencionam enredar em suas teias de Ariadne o mais esperto dos mortais.  Foi, depois de visitá-la pela primeira vez, atendendo a um convite promissor, que já acordou, no dia seguinte, de juízo virado, de interesse verdadeiro por aquela mulher já nem tão feia quanto lhe parecera na noite de réveillon. Tinha tomado o tal café coado na calcinha usada na noite do beijo, como também recomendara a ela espírita vidente de panfleto distribuído nas esquinas do centro da cidade e consultório montado em galeria comercial.
E aí se deu a sua desgraça. Passou a ser um cordeirinho servil, na rédea curta, tocado com vara de marmelo, a fazer tudo o que a rainha mandasse, a paixão tão avassaladora, que chegou a pensar em inscrevê-la no concurso da mais bela mulher casada do clube IPC, de saudosa memória. E, se não fosse o conselho dissuasório da cunhada sensata, tinha passado por esse vexame diante da comissão de inscrição do concurso.
O borogodó de Carminha, esse é o nome dela, era de abalar seminário menor e desvirtuar padres e coroinhas. E Mazinho não teve o discernimento suficiente para compreender a enrascada em que se metera. As mulheres desamparadas de Niterói e adjacências continuam até hoje aguardando pelo fogoso cavaleiro que virá preencher suas noites de concupiscência, conforme também indicavam a elas as cartas da espírita vidente com consultório montado em galeria comercial.

28 de dezembro de 2010

TIRO ASMA COM SEIS APLICAÇÕES

(Para a amiga Cleia Miranda, protagonista da história.)

Já cansada de mal respirar em sua vida, minha amiga Cleia procurou socorro numa médica indicada por vizinha que teve o filho curado de uma asma renitente, que se apossara de seus pulmões, tão logo metera a cara no mundo. Segundo sua versão, mal o menino botou a cabeça para fora, já reclamou falta de ar.
A vizinha gavou muito a competência da médica, com consultório montado lá para as bandas de Areia Branca, em terras do município de Nova Iguaçu.
Com o endereço anotado num pedacinho de papel, minha amiga partiu para o local, que, em hipótese alguma, fazia jus àquilo que se poderia chamar de clínica ou consultório. O imóvel era singelo demais para desbaratar asmas e bronquites, como a propaganda dizia. Mas, já que tinha andado tanto, resolveu entrar.
Faço aqui um parêntese, para que não julguem minha amiga ingênua. Não sei se sabem meus possíveis leitores, mas os asmáticos e os brônquicos, pela própria natureza de suas mazelas, são levados a acreditar em todo tipo de tratamento, por mais estranhos que sejam, pois têm a esperança imorredoura de que, um dia, seus pulmões funcionarão a toda carga.
A casa era simples, e da sala de recepção, onde já estavam algumas pessoas tentando capturar qualquer arzinho que pudessem, através de seus narizes praticamente inoperantes, ela observou uma cozinha bem acanhada, em que se instalavam um fogãozinho Jacaré de duas trempes, alguns utensílios de alumínio um tanto gastos pelo uso, uma pia de qualidade duvidosa e aspecto ainda mais duvidoso, vidros e apetrechos mais.
Ao sair o cliente que estava sendo atendido, ela teve o seu nome cantado pela figura de jaleco branco, em cujo bolso estava bordado Dra. Osvaldina, numa caligrafia errática. Desconfiada, minha amiga tentou vislumbrar o diploma que, costumeiramente, se coloca logo atrás da cadeira da doutora, o que não foi possível por inexistente.
A figura da esculápia – permitam-me o neologismo - era uma mistura de cozinheira de barraca de feira e vendedora de cocada baiana da Praça Quinze – sem demérito nenhum para essas profissionais. Eu mesmo já tive um excelente professor de Fonética e Fonologia que, com seu jaleco branco, dava aparência de dono de açougue. Em suas aulas, ficávamos aguardando quando ele tiraria de sua pasta uma chaira e uma faca de desossar. O que nunca aconteceu, é bom que se diga.
Pois então! Diante da situação que se apresentava, Cleia tentou saber da pressuposta doutora a eficiência de sua medicina, ao que ela afirmou que a cura se daria em pouco tempo, não necessitando de alongar tratamento, já que tinha desenvolvido um remédio definitivo, a ser administrado por injeção subcutânea, que era porreta para qualquer tipo de malefício advindo das partes respiratórias e adjacências. E o tratamento poderia começar naquele mesmo instante, era só a paciente oferecer o local onde ocorreria a agulhada. Com mais cinco ou seis, o mal estaria debelado para sempre, de nunca mais ser lembrando, nem mesmo por ocasião do espargimento de pólen pelas mimosas flores da natureza. Coisa garantida!
Cleia assustou-se com a segurança da médica e, para se garantir da ciência de que era portadora, fez a pergunta básica:
- Doutora, qual é a diferença entre asma e bronquite.
Imagem colhida em
riodejaneiro.muraldacidade.com.
Pelo início da resposta, minha amiga decidiu não se submeter a tal temeridade.
- O pobrema básico tá no diafragno, que não funciona nos conformes da anatomia humana.
E a afamada doutora Osvaldina perdeu, de imediato, uma paciente com mais de cem por cento de indicação para seu miraculoso medicamento, projetado, desenvolvido e alambicado na cozinha que ficava ao lado de seu consultório.
Para se safar, Cleia alegou ter bebido duas cervejinhas, enquanto aguardava a hora de sua consulta, e julgava que o tratamento deveria começar depois. Doutora Osvaldina ainda deu como certo que o álcool, inclusive, ajudaria na ação do remédio, mas minha amiga resolveu marcar para outro dia, outra hora, que, mais de vinte anos passados, ainda não aportaram no calendário. É o tal dia de São Nunca de tarde.
Trinta ou quarenta dias depois, Cleia vê estampada no jornal foto da sergipana presa por exercício ilegal da profissão.
E, por ter sido viva na ocasião, continua viva até hoje, a poder de bombinhas e nebulizações.

27 de dezembro de 2010

NEM COMO, NEM QUANDO

tenho perdidos dentro de mim
todos os amores
com seus risos escondidos
e suas dores escancaradas
com suas promessas ridículas
e seus sonhos irrealizáveis.
tenho perdido dentro de mim
sem que eu saiba onde
o projeto fundamental do ser humano.
nem como nem quando.

T. Géricault, A balsa da Medusa, 1919,
Museu do Louvre.

26 de dezembro de 2010

O TOM CERTO DO BATOM

Em errodito.blogspot.com
Quando Vanilce, fingidamente despretensiosa, resolveu retocar o batom em seus lábios no grande espelho da loja em que trabalhava no shopping, não imaginou que fosse provocar o agravamento da hipertensão das malbaratadas artérias de Figueiredo, proprietário da óptica Clin d’Oeil do outro lado do corredor. Aquilo não era propriamente uma boca: era a cratera de um vulcão em plena atividade, a despejar magma incandescente de suas entranhas.

Foi só, mais outra vez, nos últimos meses, observar a morena sacudida, de cabelos anelados, lábios de Angelina Jolie, jeito de Juliana Paes, para começar a sentir uma pinicação na parte interna do braço direito, acompanhada de uma dor lancinante na parte externa, e um bolo, em movimento de sobe e desce, pelo esôfago calcinado por um azedume infernal. Achou que iria sucumbir naquele mesmo instante. Mas antes que desfalecesse, amparado pelo empregado balconista, teve tempo de pensar: Ou eu morro, ou eu caso com essa diaba! Esse desespero há de ter um fim!

Angelina Jolie, em allmoda.com.
Acomodado na primeira cadeira que o empregado conseguiu, refazendo-se do escurecimento das vistas, como diz o povo, com um copo d’água gelado, pediu que lhe comprassem um café expresso bem forte e ligassem para seu médico imediatamente.

Mais uma vez foi atendido pelo esculápio, que reforçou todas as recomendações anteriores, renovou o estoque de remédios e sugeriu que ele deixasse de frouxidão e fosse falar com a dita morena Vanilce, de tão boas referências, ou sua caldeira cardíaca explodiria.

Protegido por um “dinitrato de isossorbida, quimicamente designado de 2,5-dinitrato de 1,4:3,6-dianidro-D-glucitol”*, que atende singelamente por Isordil, na tarde seguinte, Figueiredo convidou Vanilce para um lanche na praça de alimentação do shopping. Tinha um assunto sério a confabular com ela, que requeria urgência e solução definitiva, a fim de que pudesse sanar certas idiossincrasias de sua presença no mundo.
Juliana Paes, em adrianeboneck.com.br.

A morena estranhou o palavreado, mas como o conhecia desde que começara a trabalhar na loja de cosméticos Hot Lips, combinou que, na hora do lanche, faria um sinal para ele e os dois poderiam esclarecer tudo aquilo e outras possíveis pendências.

Mas posso afiançar-lhes, sem conhecer ainda o fim desta história, que a morena bem sabia de tudo o que acontecia, porque cada ação sua era de uma deliberação milimétrica e, sobretudo, maquinada por cérebro predisposto à razia, ao saque e à devastação. Não há aquela música: “Quem sabe de mim sou eu e aquele abraço”? Pois é, era mais ou menos por aí.

Figueiredo era uma agitação só, pelo que foi aconselhado pela moça do caixa e se proteger com mais uma dose do milagrento, a fim de não dar baixa do rol dos vivos, antes do encontro com a moça de frente.

Lá pelas quatro da tarde, um pouco antes de lhe dar o sinal, Vanilce foi, novamente, retocar os lábios criminosos, tendo Figueiredo preferido desviar os olhos de dono de óptica e não olhar a cena, senão seria capaz de virar defunto fresco.

Sentados a uma mesa, no canto do café, ele escandiu nos ouvidos da morena todo seu desejo, toda sua sofreguidão, todas as suas pretensões para com ela. Garantiu-lhe, inclusive, que isso vinha ocorrendo desde o primeiro dia em que a vira na loja em frente à sua. Daí em diante, sua vida sofrera o que os franceses chamam de bouleversement, coisa assim de virar de cabeça para baixo até a mais bem instalada pessoa na face da Terra. Prometeu-lhe, ainda, casa montada, apetrechos domésticos de última geração e sociedade no comércio de lentes e armações, tirante papel passado em cartório diante de juiz de paz, testemunhas e convidados, com direito a taças de champanha e fatias de bolo decorado e lua de mel boiando pela costa brasileira.

A morena assustou-se! Percebeu que seu poder de encantamento estava hipertrofiado. Virara um monstro sem governança. E não pretendia tanto. Queria apenas fazer figuração, caras e bocas, para quem quisesse olhar. E sabia que ele era um de seus admiradores. Tentou ainda ponderar com ele que não havia chegado a hora de tomar uma decisão tão séria, nem mesmo pensava em se casar, sua vida ainda no comecinho, praticamente havia saído da adolescência. Muitos sonhos a realizar. E, de mais a mais, estava mesmo era à procura de um tom apropriado para os batons que experimentava na loja, porque, aí sim, no dia em que o encontrasse, sairia em desfile triunfal pelos corredores do shopping a ouvir os corações dos incautos rolarem atrás de si atropeladamente. No entanto, agora, só queria isso: o tom certo e o brilho adequado para aqueles lábios de Angelina Jolie. E, em sendo apenas aquilo, deu, então, por encerradas todas as prováveis pendências com ele e sugeriu a Figueiredo levar suas idiossincrasias a uma pet-shop no final do corredor, para banho, secagem e tosa.

(*Obrigado, Wikipédia!)

23 de dezembro de 2010

BOM NATAL E FELIZ ANO NOVO!

Aos amigos
E aos parentes,
Aos crentes
E aos descrentes,
Aos que se bastam
E aos carentes,
Aos desestimulados
E aos renitentes,
A todos nós, enfim, gente,
Um NATAL cheio de alegrias
E um ANO NOVO
Com 365 dias!
E, se isso for pouco,
Que não haja sufoco,
Que não falte dinheiro,
Que tenhamos saúde,
Cada um a seu jeito,
E, se não for pedir muito,
Que a felicidade abunde!
Mas com todo o repeito.


Leo Maciel, Natal brasileiro, 2009,
em leomaciel.arteblog.com.br.

21 de dezembro de 2010

O PORCO DE NATAL*

Lembro-me, como se fosse ontem, de todas as peripécias que culminaram num Natal completamente diferente e cheio de fartura em nossa casa simples. Diferente de todos os outros. Por essa época, eu tinha quinze anos, quase completando dezesseis, e as imagens estão ainda bem nítidas em minha mente.
(imagensdahora.com.br)
A história começou, quando meu pai resolveu levar o vizinho às barras dos tribunais, só porque um porco do outro, escapado do chiqueiro, deu de fuçar seu canteiro de alfaces e cebolinhas verdes. A cerca do quintal tinha um buraco perto do pé de jamelão e, por ali, o suíno adentrou seus domínios. Era ainda manhãzinha, quando ele notou o bicho lá, revirando tudo e comendo algumas cabeças de alface, temperadas com cebolinha. Fez xô, cué-cué, pegou uma vara e espantou o dito invasor.
Como era um homem quase sem instrução, procurou ajuda de quem conhecia os enigmáticos meandros da justiça: o prático de farmácia Aristeu dos Anjos, cuja ciência provinha do famoso Almanaque Biotônico Fontoura, de muitos méritos e informações. Aliás, Aristeu dos Anjos era especialista em tudo o que o tal almanaque veiculava: das fases da lua e do movimento das marés, à época propícia para a pesca e às infusões eficazes para as mais diversas doenças.
Aristeu, que jamais se fez de rogado nessas ocasiões, deitou sabença:
- Negócio de fuçação de porco não está contemplado na jurisprudência dos tribunais, seu Daniel. É da natureza do porcino. O bicho nasceu com essa predestinação. É preciso que ele tenha gerado um prejuízo atestado e comprovado, seu Daniel. Só fuçação não dá processo. É perca de tempo. É futucar juiz togado por ninharia, o que pode despertar o veneno do cargo contra sua pessoa e ainda piorar a situação. Desaconselho veementemente, seu Daniel.
Mas meu pai, Daniel Prudêncio – esse era o nome completo dele –, garantiu ao encorpado Aristeu da farmácia que o tal suíno lhe tinha comido várias cabeças de alface, para mais de cinco, acompanhadas de algumas moitas de cebolinha da horta.
- Bem, nesse caso, a indenização possa ser que chegue a uns dez mil réis, no máximo, o que não dá para pagar nem as custas do processo, quanto mais os honorários do causídico. É melhor deixar do jeito que está, seu Daniel. Releve o prejuízo. Procure fechar o buraco da cerca. Faça uma vistoria em todo contorno do quintal e fale com o vizinho para botar atenção nos seus capados. O senhor vai gastar chumbo grosso para caça pequena, seu Daniel.
Bem, se Aristeu dos Anjos, montado em toda aquela ciência almanaquista, disse, é porque, por baixo, devia de ser verdade, pensou papai, na sua simplicidade. Dada a conversa por encerrada, voltou aos nossos pobres domínios no entorno da vila, lá para os lados do valão Liberdade. Ao chegar a casa, encontrou o resto do canteiro de alfaces e cebolinhas comido, a terra toda revirada e o buraco da cerca ainda mais alargado. Muito contrariado, mas para não fazer besteira de que se arrependesse posteriormente, procurou o vizinho. O homem fez que ouviu e lhe garantiu que iria tomar as providências cabíveis para o caso da invasão indesejada. E de nada adiantaram os consertos da cerca. Sempre havia algum porco invadindo nosso quintal.
Até que um dia, já farto dos prejuízos e do pouco caso do dono dos capados, papai pegou pelas patas traseiras um leitãozinho já bem fornido de carnes e torresmos, chispes e bacon, arrastou-o para o lado oposto da casa, onde, de caso pensado, havia providenciado um cercadinho tosco e lá o deixou até a noite. Entradas as horas mortas, foi com um machado novo, comprado para o serviço, e arriou com vontade o olho da ferramenta no cabelouro do pobre coitado suíno, que desencarnou sem um grunhido. Depois correu com ele para dentro de casa, onde, com a ajuda da mamãe, especialista no assunto, providenciou o descarne do cadáver e o preparo de tripas e redanhas, de sangue e miúdos, de lombos e pernis, costelas e carrés, para a ceia do Natal que se aproximava.
(In cozinhandopararelaxar.com)
Nossos natais eram sempre minguados. O que papai produzia em nossa pequena propriedade não dava para termos uma vida folgada. Vivíamos, mas sem maiores abastanças. Por isso é que todos ficamos felizes ao ver a faina dos dois, no preparo do leitãozinho sacrificado.
E foi assim que a família de seu Daniel Prudêncio, meu pai de muitos anos já nas costas, que nunca teve muita estima pela espécie abatida, passou seu Natal carnívoro: com o barulho dos dentes destroçando o pururucado da pele do bichinho, a gordura a escorrer por nossos queixos e dedos, todos nos fartando da infelicidade de um inocente leitão que, inadvertidamente, penetrou o microfúndio do meu estressado pai.
Deus haveria de ter complacência daquele espírito de porco, porque o corpo estava servido com farofa de ovo e arroz soltinho, tudo espalhado sobre a mesa, coberta com uma toalha quadriculada de vermelho e branco.
E nunca mais houve um Natal como aquele!
 (*Contraponto ao conto de Mário de Andrade, “O peru de Natal”, do livro Nós e o Natal.)

20 de dezembro de 2010

POR FAVOR

por favor
abram meu coração aos poucos
não estou habituado a choques violentos
digam apenas o que já sei por alto
o desconhecido deixem para depois de morto
evitem-me sofrer decepções
angústias
urticárias
eu vivo tão desamparado neste país

Geneviève Caplet, Abandon., 2007 (acrílico sobre papel).














(Mes remerciements à Geneviève Caplet, qui m'a autorisé l'usage de son dessin ci-dessus.)

19 de dezembro de 2010

PASSANDO AO LARGO

Sheila Machado, Blocos caindo do Breiðamerkurjökull, Islândia,
em comamochilanascostas.wordpress.com.

certas manhãs parecem tardes sombrias
certas tardes desperdícios
noites altas madrugadas frágua e dúvidas
o dia todo e nada
e o desvario da vida passando ao largo

(Agradecimentos a Sheila Machado pela cessão da foto a ilustrar este poema.)

17 de dezembro de 2010

CONCURSO NACIONAL DE CONTOS JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO


Mais uma vez este ano, a Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes, através da Fundação Cultural Jornalista Osvaldo Lima, promoveu nova edição do concurso nacional de contos, cuja denominação dá título a esta nota.
Vi, achei interessante e para lá enviei três contos, conforme permitido em seu regulamento. E qual não foi minha surpresa ao ver que um deles obteve o segundo lugar. Hoje estou publicando o conto no blog, para que os meus parcos e pacientes amigos-leitores também o conheçam.
Este conto, todos os que me leem perceberão muito bem, é uma homenagem que presto ao grande José Cândido de Carvalho, na minha opinião um dos maiores escritores de língua portuguesa.
Assim, para a consecução desse fim, tentei fazer a aproximação da linguagem do meu conto à de sua obra-prima O coronel e o lobisomem.
O conto vai aí abaixo.

O DIA EM ZÉ CÂNDIDO CHEGOU AO CÉU

José Cândido de Carvalho
Quando Zé Cândido embarcou na nuvem das dezessete e pouco de uma tarde sorumbática do primeiro dia do mês de agosto do fatídico ano de 1989, apeado do corpo físico com que transitava pelo mundo, não cogitou que fosse encontrar na outra margem do rio Aqueronte a figura familiar e fanfarrona do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, seu invento no livro O coronel e o lobisomem.

Trajado nos trajes costumeiros, chapelão enfiado na cabeça, as botas respingadas de barro – tinha havido uma tempestade naqueles páramos –, baforando um charutão que lhe deixava o barbadão vermelho todo perfumado, o fantasminha de Vermelhinho aboletado no ombro, com a crista em modelo de bandeira ventada, o Coronel foi efusivo com o eflúvio do escritor. Sem maiores continências, gritou seu nome, naquele molde normal de falar, no meio do magote de visagens que desciam da barca de Caronte, sem tempo para que Zé Cândido pegasse o troco da viagem, pelo que o barqueiro ficou deverasmente satisfeito.
- Zé Cândido! Zé Cândido! Aqui, na ponta da pedra. É seu velho conhecido, o Ponciano de muitas luas e reinações! Vim fazer as honras! Vim dar as boas-vindas!
Zé Cândido ficou embaralhado das ideias. Jamais poderia imaginar encontrar ali o aluado Coronel. Pensou ser recebido por Rabelais, Cervantes, mesmo Érico Veríssimo, seu compatriota e admirador, ou pelo bruxo do Cosme Velho, o casmurro Machado de Assis. Nunca pelo Coronel Ponciano. Por suas contas, ele ainda estaria assombrando os pastos de Campos dos Goytacazes, de Santo Amaro a Mussurepe, de Travessão a Morangaba, chegando às escumas do mar para os lados de Atafona, já em terras de São João da Barra: assombração eterna a encantar moças desavisadas, nos comecinhos das noites mornas de lua cheia da Baixada Campista.
Capa de O coronel e
o lobisomem, com
desenho de Appe.
Ed. J. Olympio.
O Coronel abraçou-o fortemente, quase avariando o pouco de costela que restara de sua pessoa física, ainda quentinha no espírito. E, do alto do seu porte de palmeira, continuou a discursama receptiva:
- Veio muito depressa, Zé Cândido! Não esperava sua pessoa em antes de mais de trinta anos. Tem muita gente que deveria embarcar e ficou remancheando à beira do rio, sem querer atravessar. Tive ciência até de que deixou serviço por fazer, sem dar os devidos finalmentes.
- Para você ver, Coronel. Nem tudo o que planejamos conseguimos executar.
- Se tivesse requerido minha serventia, bem que poderia dar um ajutório, assoprar umas ideias na cova do ouvido, para que você completasse a obra com mais ligeireza, amigo velho. Mas se fez de rogado, cheio de sobrançarias, aí deu no que deu: embarcou em hora imprópria. Foi uma pena, mas o que fazer?
- Mas não dizem que os planos da natureza são inescrutáveis, Coronel?
- É o que alardeiam por aí, é o que trombeteiam, Zé Cândido! Me chegou, inclusive, notícia de que você resolveu gastar tinta sobre um tal rei Baltazar, o visitador do menino Jesus na noite de Natal, não é mesmo?
- É verdade!
- Pois é. O zum-zum-zum que sobreveio aqui deste lado é de que ia ser um livro por demais importante, muito portentoso, de um rei muito famoso, cheio de nós pelas costas. Coisa nunca vista pratrasmente na literatura brasileira. De encher as burras do povinho das rotativas e das bancas de livros.
- Nem tanto, Coronel! Mas era uma história bem amarrada, bem urdida, de um personagem interessante.
- É... chegou aos meus ouvidos! As bocas do fuxico ainda invencionaram que esse tal personagem capazmente que fosse o maior que você já tivesse rabiscado em suas linhas. Cheio de ostentações e avultamentos, não é?
- Nem tanto, Coronel! Mas era um bom personagem, com uma história misteriosa, que eu ia procurar desvendar.
- E aí ia encaixotar no ostracismo o velho amigo aqui! De não ser lembrado depois desse tal rei bajulador do Menino Deus!
- Que é isso, Coronel? Nossa amizade está acima de qualquer coisa. Se não fosse por você, pode ser que ninguém se lembrasse de meu nome, nem mesmo me conhecesse.
- Sei não, Zé Cândido, sei não! Aí começaram a avultar umas caraminholas aqui no meu juízo, que diziam que eu ia acabar no fundo de um curral qualquer lá nas aguadas de Mata-Cavalo ou do Sobradinho, deslembrado de todo mundo. Até mesmo Machado de Assis, que encontrei, por acaso, montado numa nuvem ostentosa dia desses, me disse: “Cuidado, Ponciano, seu reinado vai acabar! É preciso fazer alguma coisa, para que sua memória não se extinga. Tome tino, Ponciano, tome tino!” Expeliu até uma frase em língua defunta : "Ab hoc momento pendet aeternitas".
- Estou achando essa história muito estranha, Coronel. Mas... e então?
- Pois, então! Procurei um tal de Ovídio, visagem vinda lá das Romas antigas, versado em priscas letras, para saber o sentido do dito, porque o meu latim é só arranhado lá do colégio dos padres – se lembra? –, e tomei um susto. “Deste momento depende a eternidade” é o que o dito versava, me falou ele. Em seguimento, deliberei que tinha de tomar umas urgências, fazer umas perquirições, antes que meu nome saísse do baú das reminiscências.
- Coronel, não acredito no que estou imaginando...
- Pois é, Zé Cândido, em nome da nossa velha amizade, preciso que você me releve isso, mas tive de requerer a São Pedro seu chamamento antecipado. Antes dos finalmentes que você tencionava pôr na obra do tal Rei Baltazar. Ou não me chamaria mais Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente da Guarda Nacional, do que tenho honra, e desbravador dos escondidos das moças de portas e tramelas abertas! E depois tem outra, amigo: você não ia precisar de mais um livro, para ser tão afamado quanto eu, sem falsa modéstia.
Com uma gargalhada estentórea que chegou a assustar Vermelhinho, de poleiro em seu ombro, o Coronel bateu o mãozão grande nas costas de Zé Cândido, em feitio de amizade selada, carimbada e assinada embaixo, e o encaminhou ao santo porteiro do céu, para o acerto final das contas, para o fechamento das pendências terráqueas daquele campista desvaidoso. Tudo dentro do planejado, nos conformes do espírito folgazão e invencioneiro de Ponciano de Azeredo Furtado, aprontando mais uma das suas já no coval do mundo dos espíritos.

16 de dezembro de 2010

NÃO SÓ DAS TUAS PROMESSAS É QUE SE VIVE

Não só das tuas promessas é que se vive
Guanabara
Nem me banhaste o corpo como outrora
Em tuas águas há manchas de um presente
Que me confunde os poros
Que me desvirtua a mente
Eu sou apenas um corpo sólido
Flutuando num barco em plena barra
Distante dos teus portos
Inseguro sobre as vagas
Maquinando no meu cérebro
Que futuro nos importa
E mais nada que se viva doravante
Guanabara
Será tão simples como fora

Foto de Eduardo Sengès, em highclick.com.br.
(Agraecimentos a Eduardo Sengès pela cessão da foto a ilustrar este poema.)

15 de dezembro de 2010

MEMÓRIA OU LOGRO


R. Magritte, La mémoire, 1948,
Museu de Ixelles, Bruxelas.

Lavei a alma na água dos teus olhos
Vesti-me todo com os trapos do teu corpo
Sorvi o gozo dos teus prazeres mortos
Vivi a vida malgrado teu desgosto

Hoje não sei ao certo o que me sobra
Se é memória ou logro

14 de dezembro de 2010

O HIPOCONDRÍACO

Não admitia que houvesse pessoa mais doente que ele. Tomava isso como uma ofensa pessoal, algo imperdoável. Já tivera – ou imaginara ter – todas as doenças, num raio de duzentos quilômetros de onde morava. Uma época, inclusive, resolveu atribuir-se o título de “Defensor dos Frascos e Comprimidos”, do qual muito se orgulhava, tal era a quantidade remédios que comprava para debelar todo tipo de incômodo, até vento virado. Quando supunha que em algum lugar, porventura, alguém pudesse desfilar com doença que desconhecesse, coisa quase impossível, para lá se dirigia, no intuito de incorporar todos os sintomas em seu organismo já imaginariamente bastante debilitado. Voltava para casa com a consciência tranquila, ou melhor, doída do dever cumprido.

(Em blogdocrato.blogspot.com)
Com frequência ia para filas – quaisquer que fossem elas –, com o objetivo de se atualizar nos mais diversos males que acometem o ser humano. Ficava assuntando, ouvindo atentamente as conversas, imiscuindo-se em conversa alheia, sempre que dali pudesse tirar enriquecimento para sua hipocondria. Quase sempre, voltava com algumas mazelas a mais.

Com o advento da internet, as coisas ficaram ainda mais fáceis, apesar de, vez ou outra, sentir-se humilhado com doença nova. Foi o que aconteceu, por exemplo, ao descobrir que, em numa ilha qualquer do arquipélago das Filipinas, uma rara doença estava transformando um homem em árvore. Quase teve uma síncope com a descoberta. Chegou mesmo a amaldiçoar aquele cidadão das terras do caixa-prego, sem eira nem beira, que teve a petulância de aparecer com aquilo. Sentiu-se desfeiteado, ofendido. Caso descobrisse o endereço eletrônico do coitado, iria dizer-lhe poucas e boas.

A família já nem dava atenção às suas reclamações. Os sobrinhos, então, de muxoxo, diziam:

- Lá vem aquele chato do tio doente.

Certo dia, por ocasião do seu aniversário de casamento, quando mulher e filhos resolveram fazer um churrasco no quintal da casa, teve um acometimento convulso, vindo do nada, só porque tomou um copo d’água gasosa. Resolveram, assim, levá-lo à emergência do hospital mais próximo. Chegou quase morto, ou o que quer que isso pudesse significar na cabeça dele.

O atendimento foi urgente e de primeira, coisa também rara em nossos hospitais. Vasculharam aquele organismo indigente em todos os seus setores e departamentos, com os mais diversos exames, nas mais modernas máquinas e não descobriram xongas nenhuma. Nadica de nada! Ele estava bom como um coco, mais certo que boca de bode.

No quarto onde ficou, a equipe médica foi dar o resultado da futucação empreendida em sua pessoa, na presença de toda a família.

- Seu Aldemiro, o senhor não tem nada. Aliás, o senhor nunca teve nada. Sua saúde é de ferro. Nem unha encravada e joanete descobrimos no senhor. O senhor está de alta, e passe muito bem!

Aldemiro saiu do hospital derrotado, acabado, mais humilhado que deputado pego em flagrante de corrupção, mas não se deu por vencido. Não iriam fazer aquele desaforo com ele, sem a devida reparação. E contratou advogado de fama duvidosa, para mover ação contra hospital, equipe médica e enfermeiros, por calúnia, injúria e difamação.

13 de dezembro de 2010

SE, PARA AMAR-TE

D. G. Rossetti, Romance
da Rosa, 1864, Tate Gallery.
Se, para amar-te, a morte põe-se à minha frente,
Que seja a vida tão breve, se num repente
Eu possa ter-te, possuir-te e converter-me
Num cadáver, num monturo ou mesmo um verme.

Se, para amar-te, ao contrário, não a morte,
Mas o fado de viver tristonho e só
For o que me restar – para amar-te
Por um minuto só – enfrentaria a sorte.

Se, para amar-te, no entanto, a vã ventura,
Que assopra como brisa entre o arvoredo
E consola nossa vida eternamente
Fosse a sina, eu morreria de prazer e de enlevo.

11 de dezembro de 2010

DESCONFIO DEMAIS

Foto por César do Canto, em flickr.com a partir de bycanto.com.
Desconfio que o fio da vida
Seja um pavio curto
Um rastilho de pólvora
Um curto-circuito
Piscadela de olhos
O zero absoluto
O calor que a friagem
Meterá num casulo
Fechado e escuro
Ataúde lacrado
Numa atroz sepultura
Capital sem usura
Cuja burra se esvaze
Assim que a luz se apague
E as contas na mesa

Desconfio demais
Mas não tenho certeza


Imagem em
comboiosweb.simplesnet.pt.

Desconfio mesmo muito
Mas sem muita certeza
Que esse trem sem comando
Maquinista inseguro
Ou ausente que seja
Pelos trilhos em apuros
Nos conduza inconteste
A paragens sem volta
A um porto obscuro
Não provido de cais
Que escoa incerteza
                                         Desconfio demais
Mas não tenho certeza

Movido então da presteza
Les très riches heures du Duc du Berry,
abril, séc. XV, em pt.wikipedia.org.
De que a vida é feita
Seja fio ou pavio
O que sobra de bem
Não é tanto esse trem
Com ou sem maquinista
É andar pelos trilhos
Caminhar confiante
Que um belo horizonte
Venha após cada túnel
Das agruras gerais
E nos faça herdeiros
Da colheita da paz
Carpe diem de hoje
É agora ou jamais

Só não tenho certeza
Mas confio demais




(Agradecimentos a César do Canto pela cessão de sua foto a ilustrar este poema.)

10 de dezembro de 2010

BATER EM PADRE É SACRILÉGIO

Nos primórdios da vila de Santo Antônio da Liberdade, hoje conhecida por Carabuçu, houve um padre que lá foi estabelecer seus rebanhos de fiéis, de gado e de mulheres.

Naquela época, as disputas de terra eram sangrentas. Terra nova, inexplorada, aberta à grilagem do mais esperto, do mais poderoso.

José Varzeano, Capela de Santo Antônio, em
memoriasdomeubairro.blogspot.com.
 Prestígio de padre pode ser discutido no céu, por anjos e santos, não em lugarejos perdidos do interior. Assim, montado em seu prestígio, o padre abocanhou alguns alqueires de terra, onde plantou café, criou gado, fixou colonos, construiu uma bela sede de fazenda. Ministrava os sacramentos e administrava seus domínios com competência canônica.

Mas padre é gente, é homem, por isso capaz de pecar tão desavergonhadamente como qualquer mortal. Ocorre, porém, que o padre decidiu pecar justamente com Lucinda, sertaneja prendada, bem apessoada, olhar de Capitu. Sua fiel, é verdade, embora mais fiel do coronel Napoleão, que a trazia alinhada como cavalo de charrete.

Foi o que bastou para que o coronel se destemperasse, perdesse a fé e o respeito pelas coisas sagradas e mandasse recado destabocado para o padre.

- Nicandro, diz lá pro padre Ambrósio que vou lhe dar uma sova, pra ele aprender a se meter com menina alheia.

O mulato foi e voltou com a resposta do padre:

- Diz lá pro seu coronel que em padre só se pode bater acima da cabeça, caso contrário é sacrilégio, punido com excomunhão.

Coronel Napoleão não gostou da resposta atravessada do homem de Deus e tomou as providências cabíveis: mandou pendurar o padre de cabeça para baixo no galho de uma figueira e desceu-lhe a gurumbumba, até sua reverendíssima resolver abrir mão de fazenda, de Lucinda e de paróquia.

De seu, a única coisa que o padre deixou por aqueles arredores foi uma meia dúzia de meninos, que, nas noites de sexta-feira de lua cheia, andavam virando lobisomem e mula sem cabeça.

(Agradecimentos a José Varzeano pela cessão de seu belo desenho a ilustrar este texto.)

9 de dezembro de 2010

SONETO ANTIGO (À MODA DOS BARROCOS)

                  O teu sossego é meu desassossego.
                  O meu delírio já se fez tormento.
                  A minha dor caminha para o medo.
                  Todo o meu choro é teu contentamento.

                        O meu lamento é frágua, sombra e vento,
                  Enquanto brincas com tudo o que sinto,
                  Como quem brinca com os seus bonecos,
                  Desconhecendo o mal que já pressinto.

                  E, quando vejo, estás tão distraída,
                  Sem te importares com esta vaga vida,
                  Em que levamos nosso amor de estio.

                  Não ligas nada, enquanto passa o tempo.
                  Inconformado, entretanto, tento
                  Ficar no cais sozinho a ver navio.

Tomasini, Barcos no Tejo perto da Torre de São
Julião da Barra, 1855, em museu.marinha.pt