21 de dezembro de 2022

VEM CHEGANDO O VERÃO

Dizem que é verão. 
Não sei,
Nem desconfio,
Porque do mar
Aqui em frente
Chega um ar mais frio
Do que se costuma ter,
Além de uma chuva fina.
As estações estão subvertidas.
E por isso mesmo
Meus sentidos
Sentem aleatoriamente,
Cedo ou tarde,
Num único dia,
As quatro estações de Vivaldi. 

                          Icaraí (Foto do autor.) 

4 de novembro de 2022

Lá vem um Zé, pela estrada da Vala. O caminho é comprido para suas pernas miúdas. Faz frio, e a cerração toma conta da vargem, de não se enxergar nada além de vinte braças. Ainda assim é possível ver o calor da respiração do gado que segue, a passos contados, em direção ao curral, para a ordenha da manhã. O Zé nem repara mais no cenário, que se repete sempre nesta época do ano. Ele mesmo se insere no ambiente, como uma peça a mais. Tudo muito rotineiro! Com ele vêm mais dois ou três companheiros todos os dias. 

Ele vai para a escola na vila. Leva no seu embornal, além dos cadernos e do livro de leitura, a merenda do dia: uma espiga de milho cozido e uma fatia de broa de fubá. Nem sempre tem alguma coisa para comer e confia no leite que o grupo escolar fornece na hora do recreio. 

O Zé não tem mais de dez anos. É um menino franzino, cabelos claros de corte curto a lhe deixar um topetinho ralo sobre a testa. Tem a cara de moleque atrevido, ainda assim. 

Lá vem outro Zé. Este das bandas da Fazenda da Liberdade, com mais outros companheiros. Ainda que a paisagem se modifique um pouco, com alguns morros mais altos a circundar a estrada de chão batido que leva até a vila, no resto é quase a mesma coisa: o verde extenso do pasto a cobrir todo o relevo alcançado pela vista. Ele também é menino, pés descalços, a calça curta do uniforme azul rei e a camisa branca, com o bordado indicativo da escola: G. E. Marcílio Dias. Se o outro Zé tem por volta de dez anos, este Zé não passa de oito. E é mais sério e mal-humorado que o outro, embora ambos sejam bastante tímidos. 

O terceiro Zé vem dos lados do Jacó, percorrendo distância semelhante aos outros dois: também estrada de chão, com apenas um morro mais saliente a ser vencido, entre sua casa e a escola, a cerca de três quilômetros da vila. No entanto este Zé vem acompanhado de seu irmão mais velho e sua irmã mais nova. Este Zé já está na quinta série do antigo curso primário. É já um veterano com apenas doze anos. Este Zé não tem nada de tímido. Muito ao contrário: vive aprontando das suas, fazendo estripulias, arranjando jeito de implicar com outros meninos. Sempre foi assim. E tem uma vida menos penosa que seus outros dois xarás, filhos de humildes meeiros de proprietários rurais. Mas, na escola pública da vila perdida do interior, não há diferenças entre eles: são todos meninos atrás do beabá e das quatro operações matemáticas, para que possam, a partir daí, buscar novos caminhos na vida. 

E, se se encontram na escola, a vida os levará, com certeza, a trilhar caminhos distintos. Não aqueles de poeira e barro, conforme as estações, mas as famosas estradas da vida, que orientam, conduzem e, quase sempre, determinam o ponto de chegada. 

Lá vão os Zés. Cada um a seu modo, com o embornal cheio de sonhos, a construir seus destinos, com as ferramentas que a escola lhes deu.


Crianças a caminho da escola (imagem colhida na Internet).


17 de setembro de 2022

GORGULHO

 Os dois moleques enchem a boca com uma boa chupada na laranja, engolem o caldo e mantêm os caroços na boca, para a disputa.

- Gorgulho!

- Eu entro!

- Com quantos?

- Com oito!

A voz não sai muito boa, porque as bocas estão com vários caroços, a atrapalhar a dicção.

E o desafiante começa a cuspir, um por um, os caroços que ficaram depois daquela primeira sucção na laranja, enquanto conta:

- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Acabou!

- Acabou nada! Você está escondendo um caroço no fundo da boca.

- Não estou! Acabou mesmo!

E abre a boca, põe a língua para fora, a mostrar que não trapaceava no jogo.

Agora era a vez do outro, que para provocar troca sua frase de entrada na brincadeira:

- Gorgulho!

- Te entro!

- Vai à merda! Com quantos?

- Com sete!

E o adversário, por sua vez, repete o procedimento:

- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito!

Os caroços de laranja voam longe, pela força com que o moleque os expele da boca.

Aquela primeira etapa estava empatada. Mas ainda sobravam duas ou três rodadas por cada fruto.

E continuavam o jogo, sem que nenhum dos dois acertasse a quantidade exata dos caroços que restavam na boca, após a sucção do caldo doce.

Para a disputa, só servem laranjas com caroços. A lima, por exemplo, é muito boa, pois vem normalmente com diversos deles. A seleta e a campista também se prestam à disputa. A laranja-Bahia, por sua vez, não serve, já que não os tem. Aliás, rarissimamente se encontra uma com um ou dois caroços.

E os dois moleques estavam sempre a se desafiar nesse jogo-brincadeira. Cada um tinha seu canivete amolado no bolso do calção para descascar os frutos maduros, sentados no chão sob os arbustos do pomar da casa da avó, que precisava autorizar que os netos periodicamente se fartassem com aqueles cítricos tão apreciados.

Eram vários os tipos de laranjas ali plantados: lima, Bahia, campista, coroa de rei, serra d’água e seleta. Os pés de laranja lima eram os mais numerosos. Dos outros tipos, eram dois ou três de cada.

Na hora de descascar a fruta era preciso cuidado, de modo a não afundar muito o corte na polpa e expor os gomos. E por aí já começava a disputa: ver quem conseguia tirar a casca mais comprida. Depois era fazer o tampo, que podia ser cacimbinha, caso o canivete tivesse a lâmina pontuda. Enfiava-se a ponta perpendicularmente ao topo da laranja e, com cuidado, se fazia o corte circular, de modo a deixar exposta em uma espécie de base de pequeno cilindro onde o caldo se acumulava a cada aperto suave. A outra técnica, mais fácil, era a tampinha, conseguida com um corte longitudinal da parte superior da laranja.

Para aqueles dois moleques tudo era motivo de disputa. Depois de totalmente esgotada de seu caldo, o resto, a que eles chamavam chupe-chupe, era arremessado longe. E então vencia quem conseguisse a maior distância.

No entanto, o cerne do desafio era o gorgulho, brincadeira vinda de tempos anteriores, de que eles mesmos não tinham conhecimento, e que consistia em reter na boca, após a ingestão do caldo, os caroços que saíam a cada sorvo.

E a disputa continuava até que estivessem empanturrados de caldo de laranja, ou que ouviam o comando da avó, suspendendo a concessão dada.

- Já vamos, Maína! Só mais uma!

E fechavam a disputa, como quem pede a saideira no bar.

- Gorgulho!

- Eu entro!

- Com quantos?

- Com cinco!


Imagem colhida na Internet.

5 de agosto de 2022

TALVEZ MINHA MÃE FIQUE ORGULHOSA DE MIM

 

Cara, eu ando muito emotivo por esses dias. Está-se aproximando o aniversário de morte de minha mãe, e a saudade dela aperta gentilmente meu coração. Foram muitos anos partilhando a vida com ela – quase setenta e cinco -, para que tudo caia no esquecimento. É impossível isso se dar!

[Minha mãe me deixa ler, tão logo aprendi, Canção do exílio e outras poesias, de Casimiro de Abreu.]

Além de tudo, cara, resolvi, não sei por que motivos, rever vídeos – diversos deles – de Scott Mckenzie cantando seu sucesso, San Francisco (Be sure to wear flowers in your hair), de 1967, em que se sucedem imagens da linda geração hippie presente ao festival de Woodstock, em agosto de 1969. E isso só piorou a situação.

Ah! Você não conhece as imagens? Procure, então, o documentário sobre o festival, que compreenderá o que digo.

Julgo-me uma pessoa razoavelmente racional, quase nada saudosista, que imagina controlar suas emoções sem muitas dificuldades. Mas devo confessar, cara, que rever aquelas imagens de jovens que tinham como proposta maior um mundo de paz e amor aprofunda ainda mais minhas emoções. Juntaram-se as duas coisas, para que a emoção fervilhe dentro de mim.

[Sempre que me escrevia, no final de suas cartas, minha mãe destacava a frase: “Que Nossa Senhora de Fátima te proteja!”]

E veja bem: nunca fui hippie, no sentido pleno do termo, embora tenha cultivado barba e cabelos longos durante alguns anos, tenha sido abduzido pelo som revolucionário do rock and roll e tivesse acreditado que aquela música poderia mudar o mundo, por seu poder de reunir pessoas numa grande confraternização. Eu cria nisso de verdade, cara!

[Minha mãe redobra as orações, ao saber que eu perdera a fé.]

Mas jamais fui hippie realmente. Eu necessitava trabalhar para me manter. E não era fazendo artesanato. Nem tive pais ricos que sustentassem aquele comportamento desinteressado do sistema, a não ser para bombardeá-lo. Também nunca precisei de “fazer a cabeça”, como se dizia então, para curtir um som e viajar na pancada do rock. Eu era um careta esclarecido.

[Minha mãe sempre apoiou minhas escolhas, até quando resolvi vir para Niterói cursar Letras, em detrimento de um emprego estável no Banco do Brasil.]

Mas aquelas imagens, que são minhas contemporâneas, deixaram ainda mais vivo o sentimento de frustração pela derrota das propostas de paz e amor surgidas na cidade californiana, como se pode perceber pelo mundo em que vivemos até hoje.

[Minha mãe vivia orando pela paz no mundo.]

Embora o movimento hippie fosse extremamente positivo quanto a essa proposta, a prática de então se perdeu no consumo de drogas e numa prostração infrutífera em fazer valer aqueles postulados. Sobraram as imagens. Sobraram as tocantes, sensíveis, belas e bem-humoradas imagens de uma geração que alterou o comportamento das que vieram posteriormente.

Por isso, cara, estou aqui, agora, bastante emotivo, digitando essas bem-traçadas linhas, numa tentativa de alimentar um papo com você, ou pelo menos esperando que você me ouça, e lamentando que todo aquele sonho deu em nada. Não se conseguiu nem mais paz, nem mais amor. Aliás, muito ao contrário. É só olhar à nossa volta e ver o que acontece.

[Quando nasceu meu primeiro filho, minha mãe veio em meu apoio: eu deixava de ser apenas filho e me tornava pai.]

E, para agravar o que sinto, mais para o fim de agosto, fará um ano que minha mãe se foi. Então vou procurar me comportar como um menino grande, que já entende a vida, que sabe os desígnios da natureza, o jogo sujo dos interesses geopolíticos, para aceitar numa boa essa pequena tragédia pessoal: a perda da mãe e a ruína dos sonhos de um mundo melhor. Vou controlar minha emotividade, ser um pouco mais racional. Parar de chorar como um bebê abandonado.

Talvez minha mãe fique orgulhosa de mim, cara.



Árvore ao pôr do sol (foto do autor).

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Caso queira assistir ao vídeo da música citada, é só clicar sobre seu título no terceiro parágrafo.

21 de julho de 2022

A CASA DA MINHA AVÓ

A casa da minha avó
Tem as paredes caiadas,
Tem soleira, tem batente,
Janelas e portas pintadas
Com um azul de antigamente.
As telhas da casa dela
Têm a forma de canela
E, quando a chuva despenca,
Se transformam facilmente
Em muitas bicas de água.
Por dentro o forro é de palha,
Como o dos carros de boi,
E há florinhas mimosas,
Canteiros de tímidas rosas,
Assim como sempre foi.

A casa da minha avó
Recende a broa de milho,
Leite queimado e canela,
A biscoito de polvilho
E a bolinho de chuva,
A laranja descascada
E a refresco de uva.
E olhando da janela
Vêm-se bichos no terreiro:
Galinhas, patos, marrecos
E dois galos seresteiros.
Também há um bode velho,
Atormentado as cabritas.
A casa da minha avó
Sempre foi casa bonita. 

A casa da minha avó
Parecia uma quermesse,
Quando juntava a família;
Netos, bisnetos e filhas,
Filhos, noras e genros,
Parente de todo lado,
A comer macarronada,
Tutu e frango ensopado,
Arroz de forno e salada,
Farofa e lombinho assado,
Tudo feito com cuidado
No velho fogão a lenha.
Depois de tudo comido,
Água da talha de barro
Para matar nossa sede,
Um cafezinho coado,
Papa de milho verde,
Licores de jenipapo,
Laranja e jabuticaba,
Doce de leite talhado,
Que ela chamava ambrosia,
E grandes nacos de queijo
Que eram uma maravilha!
A casa da minha avó
Era uma casa animada. 

A casa da minha avó
Parecia um grande beijo
No fundo do coração,
Que não nos deixa esquecer
Dos dias que se ecoaram
Com as águas do ribeirão.
A casa da minha avó
Hoje chama solidão.



                                                Foto do autor.

6 de julho de 2022

PALAVRAS E COMICHÕES

Falamos hoje sem a percepção da história que há por trás das palavras. Na verdade, a palavra vale como a pule do jogo do bicho: pro dia. O que é passado é esquecido. Quando dizemos alguma coisa, não imaginamos, nem de longe, o quanto aquela palavra andou pelo tempo, tropeçou em línguas e bocas, cortou voltas por caravanas e caravelas, até chegar ao que hoje soa e significa. Parece que, por velha, parece saída requentada do forno. Nosso saber linguístico é contemporâneo. Só nos assustamos quando ouvimos uma pessoa de mais idade usando um termo desconhecido, ou quando nos deparamos com textos escritos de décadas ou séculos atrás. Mas a palavra é uma viajora. Vem de longe, tanto no tempo, quanto no espaço. E, por isto, às vezes perde pedaços pelos caminhos que percorre, troca de trilha, muda de sentido, altera a pronúncia, mas está sempre fervendo de nova em nossa boca, a comunicar nossos pensamentos, sentimentos, emoções. A servir para nos entendermos e, por vezes, nos desentendermos com o outro.

E isso em qualquer língua. Não só na nossa.

O mais interessante, contudo, é que sempre achamos que falamos inteligivelmente. Qualquer pessoa nascida no nosso meio entende com perfeição o que dizemos, sem estranheza. Porém é só sair do país, para perceber como os outros falam complicado. É cada língua esquisita, que fica difícil acreditar que eles se entendam. E se entendem perfeitamente como nós mesmos nos entendemos, por mais estranha que tal língua possa parecer.

É que a palavra, como disse uma velha amiga de magistério, é uma experiência gestáltica. Às vezes não é necessário que a pronunciemos por inteiro para que seja entendida, sacumé? Chega a ser um simples comichão sonoro, sem sua integralidade, e é compreendida facilmente, né? Tá bom pr’ocê?

A maioria esmagadora das palavras da língua percorreu um longo caminho no tempo. Outras entraram por esses dias e já estão fazendo sucesso na boca de uns e outros. As línguas se permitem isso. São os chamados empréstimos linguísticos. A ciência, a tecnologia, os esportes, o comércio exterior, as comunicações ajudam a entrada e a saída de palavras e expressões. O uso massivo pode fazer com que elas entrem em definitivo para o léxico. O mais normal é que, ao entrarem em contato com o português, por exemplo, passem a funcionar como uma palavra comum de nossa língua.

Há, porém, algumas palavras vernáculas, provenientes do latim, que têm uma história interessante. Vou-me permitir mostrar-lhe algumas delas, leitor amigo.

As formas pronominais comigo, contigo, consigo, conosco e convosco – algumas mais usadas, outras nem tanto – vieram do latim. Lá eram, respectivamente, mecum, tecum, secum, noscum e voscum, formadas pelos pronomes mais a preposição  cum (com, em português), que indica companhia. No português arcaico, é possível encontrar atestadas formas como migo, tigo, etc., com o mesmo sentido dos pronomes modernos. Entretanto o falante deixou de perceber que o –go era a forma que o cum latino tinha assumido na passagem ao português. O que é que se fez, então? Simplesmente se acrescentou novamente a preposição de companhia, agora no início da forma: com+migo, com+tigo, etc., e criamos os pronomes comigo, contigo, etc. Assim, historicamente, tais formas têm duas vezes empregada a forma que indica companhia, uma antes e outra depois do pronome propriamente: co-mi-go.

Outra forma interessante é a do verbo comer. Em latim, a língua mãe, a noção de comer era expressa pelo verbo edere, da terceira conjugação. O radical da palavra, aquilo que expressa o sentido, é ed- (cf. inglês eat). –ere é a terminação verbal, que indica a conjugação (-e-) e o infinitivo (-re). Como o romano que levou o latim para a Península Ibérica entendia o ato de comer como um ato social e não apenas a necessidade humana de se nutrir, juntou ao verbo a preposição de companhia cum. Assim a forma passou a ser cumedere, isto é “comer em companhia de alguém”. Na passagem ao português, ocorreram regularmente certos fenômenos fonéticos. Um deles fez com que as consoantes sonoras do latim que estavam entre vogais viessem a desaparecer na passagem. Cumedere passou a comeer. Houve também a perda do –e final da forma verbal. Tal forma vigorou no português arcaico, com o hiato entre as duas vogais /e/. Como duas vogais iguais sofrem o fenômeno da crase, o verbo atual passou a comer. Vejam que o que, historicamente, compõe o verbo moderno é o que era, de início, a preposição de companhia e a terminação verbal (-e-, segunda conjugação, -r, infinitivo). Desapareceu, portanto, a raiz originária –ed-, que representa o sentido do verbo. O que a língua tratou de fazer? Simplesmente transferiu o sentido da palavra para aquilo que era o prefixo, a preposição com. Hoje temos uma gama de palavras derivadas, que o falante entende perfeitamente como membros da mesma família semântica: comida, comestível, comedouro, comilança, comensal, etc., cujo radical é com-.

Em francês há um caso interessantíssimo. Hoje, na moderna língua, é aujourd’hui, que é formada por au/jour/d/hui, literalmente “no dia de hoje”. É que, em algum momento da evolução do latim ao francês, a forma hui, oriunda do latim hodie (hoje), perdeu seu sentido. Assim os falantes tiveram necessidade, para expressar o dia atual, em lançar mão de uma expressão - au jour de hui, ou melhor, aujourd’hui. O falante atual não tem a noção de que esse finzinho da palavra, um dia, já significou sozinho tudo o que a palavra comprida hoje significa.

Fico por aqui, por hoje. Ou por aujourd’hui.

 

Imagem em solucaoperfeita.com.

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em 28/12/2014.

18 de junho de 2022

UCRONIA: MAIS UM LIVRO NA PRAÇA





Caros leitores, acabo de lançar, pelo Clube de Autores, mais um livro com uma coletânea de poemas que escrevi ao longo do tempo. Os que me honrarem com a sua leitura, devem clicar no título abaixo, para serem direcionados à página da editora. Ele está em pré-venda com um preço especial.

Desde já, obrigado!


UCRONIA

8 de junho de 2022

MINHA TERRA II

Meu corpo 
Veste as terras do meu país 
Com seus cheiros 
Suas cores 
Seus descaminhos 
E suas dores. 
Nasci lambuzado 
Com a lama do meu país 
E tenho raízes profundas 
Que me prendem 
Em definitivo 
A tudo que essa terra produz:
Seja bicho ou gente 
Seja gozo ou cruz.


                                            Foto do autor.

30 de abril de 2022

COMO ARRANJAR UM DESAFETO, SEM PROFERIR UM IMPROPÉRIO!

Eu morava na pensão da Dona Dinorah e tinha acabado de concluir o curso de Letras, na Universal Federal Fluminense. Iniciava-se o ano de 1972.

Meu colega de pensão e conterrâneo P (Omito-lhe o nome por respeito.) acabara de escrever uma peça de teatro e pediu que eu a lesse e fizesse as observações que achasse pertinentes, com as minhas recentes ferramentas críticas adquiridas no curso.

Até aquele instante eu desconhecia esta sua habilidade, na verdade sua primeira obra. Não sei se fez outras mais, nem se aquele texto foi encenado, pois pouco tempo depois perdi o contato com ele completamente.

Pedi-lhe um prazo para atender seu pedido, com o que concordou sem ressalvas, e iniciei a tarefa. Ao cabo desta, chamei-o para apresentar minhas observações.

A peça tratava basicamente de um diálogo filosófico entre uma prostituta e um bêbado, acerca das visões de vida de cada protagonista. Pelo contexto, ficava-se a par da origem humilde da prostituta e da decadência do bêbado, até chegar à condição que então vivenciava, por culpa de seu vício. A peça lembrava a estrutura de Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos.

P era jovem, um pouco mais novo que eu, interessado em arte e literatura, leitor assíduo, e portador de uma visão pessimista e amarga da vida. Ensimesmado, raramente ria e tinha raros amigos. Era mais comum vê-lo solitário, mergulhado em suas preocupações, saindo sozinho nos finais de semana para um cinema, um passeio, um programa assim fácil de se fazer a sós.

Durante a leitura do texto, estive atento às falas das personagens, ao nível vocabular, à formulação de frases, à logica do pensamento expresso por elas, e em dadas passagens mostrei-lhe que algumas vezes o discurso não se adequava, sobretudo à prostituta, por sua origem simples, que deixava transparecer falta de educação formal, já que havia “entrado naquela vida” ainda adolescente. Por seu turno, era possível pressupor que a personagem do alcoólatra poderia ter tido uma educação mais formal, o que, no entanto, não ficava claro no contexto da peça.

Fui então apontando o que me parecia sem adequação aos dois falantes, por seu passado e por sua história de vida, sobretudo no uso de vocabulário e em torneios frasais mais elaborados, a que normalmente só se alcança com uma educação mais elaborada.

Pois foi aí que arranjei um desafeto. Ao final das minhas ponderações, ele franziu ainda mais a cara, pegou seu texto de volta, reclamou que eu não tinha entendido a profundidade das colocações das personagens. E deixou de falar comigo. Um pouco depois a pensão se desfez – ia ser construído um prédio no lugar da casa antiga onde ela se instalara –, e cada hóspede procurou nova direção para suas vidas.

Algum tempo depois – nem tanto, nem tão pouco –, encontrei-o pela rua e fui até ele. Cumprimentei-o, reclamei que ele andava sumido e quis saber do seu paradeiro. Solenemente, com a mesma expressão com certa carranca, me disse:

- Você me encontra na Veja.

Como assim? Não havia entendido o sentido da frase. E ele me esclareceu:

- Agora estou escrevendo na Veja. Procure lá!

E saiu soberbo, como a me dizer:

- Tomou, papudo! Criticou meu texto, agora escrevo na Veja, e você é um reles professor.

Na semana seguinte, comprei a revista e vi lá um pequeno texto que ele assinava, cujo assunto realmente já não me lembra mais, e fiquei feliz por saber que ele tinha conseguido chegar àquele estágio profissional, embora eu nunca tenha sabido que cursos ele tinha feito na vida, a não ser o antigo Segundo Grau numa escola da nossa cidade.

Passaram-se outros tantos anos, e eu então estava em Bom Jesus do Itabapoana, em visita à minha família. Por problemas no carro durante a ida, precisei de ir a uma loja de autopeças para comprar determinada peça para o carro. Quem eu encontro atendendo ao balcão? O próprio! Sem soberba, sem orgulho, um tanto decepcionado em me ver, estando ele ali numa função mais simples. Perguntei-lhe o que aconteceu para que voltasse à nossa terra natal. Ele deu lá suas explicações, dizendo que viver numa cidade grande para ele se tornara complicado e, assim, resolveu fazer a viagem de volta, para que tivesse melhor qualidade de vida. Conversamos amigavelmente por um tempo, sem que eu lhe perguntasse sobre sua carreira como dramaturgo ou correspondente de Veja. Não queria avivar o que talvez pudesse ser deixado no limbo.

Nunca fiquei aborrecido com ele. Entendi-lhe a falta de humildade, quando fiz as observações sobre sua obra. Um texto é quase como um filho. Se alguém pode falar mal dele, é o autor. E ninguém mais! Sob pena de se tornar um desafeto.

E jamais o vi novamente! Guardo certa saudade. Assim bem à moda dele: silenciosa, um pouco pessimista e desalentada.

Talvez nossos caminhos e nossos textos não se cruzem mais. 



Imagem colhida na Internet.

31 de março de 2022

ESTAÇÕES HUMANAS

Apontem-me verões 
que não exsudei
invernos que não tiritei 
outonos 
que não frutifiquei 
primaveras 
que não floresci 

Apontem-me estações do ano
que não vivi 
até chegar aqui 
onde estou agora 
a bagagem plena 
à espera da lua minguante 
no derradeiro pôr do sol 
da definitiva primavera.

Pôr do sol em Itaipu (foto do autor).


16 de março de 2022

CÉU DE ESTRELAS

A boca da noite 
Do Rio de Janeiro 
Não tem dentes 
Não tem língua 
Tem assalto e morte 
E a vida não é um palco iluminado 
Veste-se de desenredo 

As estrelas pipocam no céu 
Da meia-noite 
Em rajadas 
Traçantes 
Certeiras 
Até encontrarem um peito 
Desavisado 
Um coração sorrateiro 

A boca da noite 
Do Rio de Janeiro 
Tem o hálito pútrido 
Do medo 
Da violência 
Da bomba 
Do tiroteio 

“E hoje 
Quando do sol a claridade” 
Abrasa os olhos 
Tenho saudades 
Da pomba-rola que voou 
No imemorial céu 
Estrelado 
Do Rio de Janeiro. 

Pomba-rola (em mercadolivro.com.br).


 (Versos incidentais e citações de Chão de estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas.)

4 de março de 2022

PROMESSAS E DESPEDIDA

Vou estender a luz do sol
Até a borda do teu riso 
Juntar meu siso ao teu juízo 
E a esperança verde e o vaga-lume 
No mesmo projeto onírico 
Que nos une. 
Vou contornar com o luar brejeiro 
Dos céus de junho 
Estes teus olhos sertanejos 
Abrir nosso peito distraído 
Para o futuro feito de desejos 
De coisas tão banais 
E sucumbir após exíguo prazo 
Deixar de estreitar-te em abraços 
Ouvir-te o choro doloroso 
Dizer adeus para nunca mais.

                                                Pôr do sol no Gragoatá (foto do autor).

22 de fevereiro de 2022

DE PUERTO SUÁREZ A COCHABAMBA

Amigo leitor, transcrevo aqui, trecho do meu último livro, Viagem por nuestra América (p, 32/34), publicado pelo Clube de Autores, em que rememoro as peripécias da viagem empreendida pelo Cone Sul por mim e Jane,  mais os amigos Eduardo Campos, Rogério Barbosa e Mara. Mal começara o ano de 1976. Neste trecho da viagem, Rogério não foi conosco. Preferiu o Trem da Morte.


DE PUERTO SUÁREZ A COCHABAMBA [10/1/1976] 

        Com as quatro passagens em mãos, aguardávamos a chegada da máquina voadora a Puerto Suárez. À época, aquilo não era propriamente um aeroporto, mas um campo de aviação, como dizíamos na minha terrinha. Constituía um descampado, uma clareira no meio de uma pequena floresta ao redor. Percebia-se que a pista de pouso tinha sido aberta no meio da mata. Já o saguão do aeroporto era uma pequena casa à margem do campo, em que cabiam menos pessoas do que no avião. 

        E estamos lá fora com expectativa de novatos. Mara, Duda, Jane, eu e mais alguns bolivianos destemidos. De repente surge no ar, por detrás da florestazinha, uma aeronave que parecia bater asas. Duda expressou em língua pátria sua preocupação em viajar naquilo. Não que eu fosse destemido ao pé da letra – meu maior medo adulto sempre foi ficar sem o salário no fim do mês – e não desconfiasse da aeronave, mas fingi certa fleuma britânica que não tinha, porque a ocasião assim o exigia. O boliviano, afeito à língua da fronteira, entendeu a preocupação do meu amigo e se apressou em informar num portunhol bastante inteligível: 

- Es el avión que estadisticamente menos cai en el mundo.

        Era um DHC-5 Buffalo, de fabricação canadense, do Loyd Aereo Boliviano. E aquilo já foi um conforto e tanto. Ora, se foi! Tempos depois, já em terras brasileiras, pude constatar a veracidade da informação: o avião Buffalo gostava de não cair. 

        Entramos no pássaro de alumínio, de espaço bem acanhado, e procuramos por assentos vazios. Ele já vinha com alguns passageiros. Jane e eu nos sentamos mais à frente, à esquerda, Duda e Mara se sentaram nas penúltimas poltronas do lado direito. O comissário de bordo, um homem alto e corpulento, de bigode em forma de dormente de linha férrea, andava arqueado, por não caber em pé no minguado salão da aeronave, e distribuía entre os passageiros balas duras de fruta, após o que foi se acomodar na última poltrona atrás do Duda e da Mara. O gesto de nos oferecer balas parecia um consolo a se dar a crianças embirradas, mas achamos simpático. Se caíssemos, teríamos o paladar adocicado da bala na boca. 

        O avião taxiou no gramado da pista, bateu asas fortemente e subiu aos céus com uma habilidade impensável. Talvez melhor do que ele só um condor dos Andes. Em duas horas estávamos chegando a Santa Cruz de La Sierra e, pelo horário do pouso, ainda antes do Rogério, que embarcara no Trem da Morte no dia anterior. O boliviano que nos informara sobre a segurança da máquina ainda veio nos dizer algo como “não disse?”, depois de estarmos todos seguros em terra firme.


                                                                                O mal-encarado Buffalo DHC-5, em foto colhida na Internet.


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Para adquirir o livro, impresso ou virtual, é só ir à página da editora: https://clubedeautores.com.br/livro/viagem-por-nuestra-america


16 de fevereiro de 2022

O GOSTO DA FRASE

Gosto da frase longa 
Tão bem-estruturada 
Que não se desmorona 
A qualquer argumento. 

Gosto da frase lenta 
Que segue sonolenta 
E sobrevive incólume 
A todo contratempo. 

Gosto da frase clara 
De módicas metáforas 
Que diz diretamente 
Seu próprio pensamento. 

Gosto da frase antiga 
Ungida pelo tempo 
Em que se funda ainda 
A portuguesa língua.

Primeira página d'Os Lusíada, de Luís de Camões (em infoescola.com).

20 de janeiro de 2022

LÁ VAI MEU PAI

 Lá vai meu pai, caminhando sem pressa.

Todas as raras vezes em que o via caminhando pelas ruas, lá pelos idos da juventude, eu sentia uma estranha e gostosa sensação que até hoje me dá prazer.

Aquele era meu pai!

Não era nenhum super-herói a salvar o planeta; nenhum semideus a realizar um dos doze trabalhos ou a empurrar morro acima sua eterna pedra rolante, que voltava teimosa ao ponto de partida. Era simplesmente o meu pai, com seu passo cadenciado e firme, sua postura ereta, sua elegância simplória de homem comum do interior. Mas como eu o admirava, ao vê-lo caminhar anonimamente pelas ruas, sem a aura doméstica da função de meu pai, pai dos meus irmãos, companheiro cordial da minha mãe e de sustentáculo da família! Ele era tão comum para os demais transeuntes, a ponto de não lhes chamar a atenção. Quase invisível mesmo. Mas era o meu pai. E para mim a sua figura se sobressaía a todos os demais. Até mesmo ao ambiente por onde caminhava. Eu não conseguia ver mais ninguém. Só ele. E não chamava sua atenção para mim. Eu não tinha interesse de que ele me visse. O importante era a sensação que aquela visão me proporcionava. A visão do pai pelo filho. Do ídolo, pelo admirador.

E esse é um segredo que trago até este justo instante em que você, leitor, o compartilha comigo. Talvez seja até uma bobagem de juventude – pode julgar você –, mas foi parte importante na lapidação do meu sentimento por ele. Por aquela altura, as demonstrações de carinho eram incomuns, como se fossem um tipo de fraqueza. Era preciso fingir-se forte, decidido. Por isso a visão a certa distância me propiciava esse gosto, sem que eu parecesse piegas.

Hoje, caminhando pela quase vazia calçada da praia fronteira aos edifícios, imaginei a possibilidade de um dos meus filhos ter essa mesma sensação juvenil que me ocorria. É uma ilusão perdida: ambos estão adultos e com seus próprios filhos! Mas fiquei a matutar se eu seria digno desta mesma admiração e reverência. Não porque eu tenha realizado qualquer coisa em prol deles, mas pelo simples e singelo fato de ser a pessoa que, por um acidente existencial, se tornou seu pai.

Mas não provarei o desprazer da inveja, caso isso não se dê. O prazer que me ocorre agora, ao relembrar tal emoção, é que me faz feliz e me dá consolo pela sua falta.

Lá vai meu pai caminhando, sem pressa, pela minha memória. Como meu herói.



                                                                                    Imagem em pixabay.com.

6 de janeiro de 2022

NOTURNO EM DÓ MENOR

A lua no céu pingando luz 
Sobre os campos abandonados 
A escuridão dos matos 
Salpicada de pirilampos 
Tremeluzindo tal estrelas distraídas 
O canto soturno da coruja 
Na figueira de beira de estrada 
O vento assobiando lúgubre 
Na ponta das estacas do quintal 
Lençóis de linho branco a balançar 
Nos fios dos varais 
Como visões fantasmagóricas 
A mulher que pare o filho entre ais 
Os vultos que rondam a velha casa assobradada 
Os gatos negros nos telhados 
Cães a ganir no fundo da madrugada 
E tudo o mais


Lua cheia com árvore (foto do autor).