17 de setembro de 2021

TIPO ASSIM (VIII) - SEU VALDEMAR

Atravesso a rua de paralelepípedos e vou até a oficina do Seu Valdemar. Tenho, por essa altura, uns nove/dez anos e sou muito curioso. Gosto de conversar. Seu Valdemar, embora seja uma pessoa um pouco estranha na comunidade, por seu caráter reservado e de poucas palavras, me trata com cortesia e, se não me engano, também gosta de que eu apareça por lá, para ficar ouvindo suas histórias. A maioria são histórias bíblicas.

Sento-me no banco de madeira colado à parede direita de quem entra pela única porta, que também dá acesso ao interior da moradia, e puxo algum assunto. Enquanto ele trabalha no conserto e recuperação de sapatos, vai dizendo para mim histórias exemplares que talvez me possam influenciar na vida. Algumas vezes, porém, discorre sobre sua arte com o couro e me mostra como faz para recuperar um sapato já com marcas do uso prolongado e deixá-lo como novo. Sua sapataria recende a couro e tintas e, como sonoplastia, às vezes apresenta um concerto de marteladas abafadas sobre o couro dos sapatos que repara. Se não estou ali para essa tipo de relacionamento, não se ouve a voz dele.

Seu Valdemar, na minha visão de menino, já era um senhorzinho. Hoje imagino que ele tivesse uns sessenta anos por aquela ocasião. Era casado com Dona Tana, que me parecia tão idosa quanto ele. Os dois eram extremamente reservados, sendo mais fácil vê-los na capela de Santo Antônio nas missas do mês, nas orações semanais, nos terços e ladainhas, que ele puxava com devoção, e nas festas de coroação da imagem de Nossa Senhora, que ocorriam todo mês de maio. Batendo perna pela rua, só se fosse numa procissão. De resto, eles faziam um casal doméstico por excelência.

 A sua casa, na rua principal da vila, não era grande. De vez em quando, durante o tempo em que lá ficava a conversar, eu pedia um copo d’água e adentrava sua casa. Havia uma pequena sala ao lado da oficina, com uma pequena mesa redonda, sempre coberta com uma toalha de crochê, a acanhada cozinha contígua, que dava para um quintal pequeno e se comunicava com o quarto do casal.

O quintal, todo verde de vegetação, com poucas árvores altas e o chão de grama, tinha bem no meio uma cacimba, com um muro de proteção redondo, alto para mim, com uma roldana e um balde de madeira sobre o vão. A água de se beber, na casa, vinha dessa cacimba e era fresca e leve, sem o gosto de cloro que sentíamos na água fornecida à vila pelo serviço público. Poucas vezes, no entanto, fui até a cacimba, porque Dona Tana, que me acompanhava nessas ocasiões, temia que pudesse ocorrer algum acidente, em virtude da curiosidade característica das crianças.

Assim que bebia a água, voltava rápido à oficina, para continuar o papo interrompido – Abraão ia sacrificar seu filho, para atender a uma ordem de Deus –, e ficar admirando a habilidade dele com a sovela, a faca de sapateiro, as linhas, as tintas e as graxas. Um trabalho muito comum por essa época, dadas as condições econômicas da vila, era a recuperação da sola do sapato.

Todos os sapatos eram então de couro. Ainda não havia outros materiais como vemos hoje. Assim o uso reiterado do sapato produzia desgaste no solado, de modo que sempre apareciam furos na altura da planta dos pés. Nesses casos, estando o cabedal ainda em bom estado, era possível fazer uma meia-sola, um dos serviços mais comuns a que se dedicava.

Ele cortava com a faca, cuja lâmina era afiadíssima, até próximo ao salto, e retirava o couro furado, imediatamente substituído por outro de espessura semelhante. Em seguida costurava a meia-sola de volta no cabedal, com pontos bem apertados, produzidos com a sovela de ponta fina, e dava o acabamento com limas e lixas apropriadas. Caso precisasse também substituir o salto, retirava o antigo com uma torquês ou um alicate e o substituía por um novo, pregado à alma original com pregos de ponta fina, rebatidos com cuidado sobre a bigorna de ferro, que acomodava sobre suas pernas. Todos os reparos prontos, limpava o cabedal, passava a tinta de cor semelhante, que escovava freneticamente antes que ela secasse, a fim de a espalhar por igual sobre o couro. Em seguida, aplicava duas ou três demãos de graxa conforme a necessidade, tornava a escovar, agora com precisão e cuidado, de modo a devolver ao couro o possível esplendor que outrora tivera, e arrematava com o brilho puxado pela flanela já apropriada a isso.

Por essa altura do trabalho, o anjo de Deus já havia aparecido para Abraão e suspendido o sacrifício de Isaque, história aliás que me deixava apavorado só em pensar que um pai pudesse matar o próprio filho, mesmo em honra a Deus. Ou, mais aceitável para mim, que Simão de Cirene tenha sido constrangido pelos soldados romanos a carregar a cruz de Cristo. Quem sabe algum dia eu pudesse ser tão temente a Deus ou aceitasse carregar a cruz que me coubesse vida afora, sem reclamações e imprecações!

Seu Valdemar dava os últimos retoques naquele velho sapato, agora recuperado para uma vida mais extensa, arrumava suas ferramentas com zelo, dobrava a toalha que tinha sobre as pernas a proteger a calça e me informava que estava na hora do almoço. Dona Tana já o chamara lá de dentro da cozinha. Eu me despedia dele, com um “até mais!” ou “até logo!”– por essa época ainda não havia “tchau” em nossa linguagem – e também ia para casa almoçar.

Voltaria lá outro dia, para continuar nosso papo e admirar seu minúsculo trabalho de sapateiro numa pequenina vila do interior.

 

Van Gogh, O par de sapatos, 1886; Museu Van Gogh (wikipedia.com).


10 de setembro de 2021

COMO QUALQUER BICHO

Creio fácil no impossível 
Desconfio daquilo que é plausível 
Descreio sempre do visível. 
Ando na contramão do precipício 
Me fio no impreciso. 
Com passos lentos corro aflito 
Dentro do denso nevoeiro em que habito 
Sem procurar saída. 
Não julgo isso ou aquilo. 
Insisto apenas um pouco tímido 
No corriqueiro jeito de andar ambíguo 
E disso tiro o proveito simples 
De viver como qualquer bicho.



Foto do autor.