30 de maio de 2015

PEDRO ABRUNHOSA


Não temos hábito de ouvir música portuguesa. Às vezes, até sabemos alguma canção antiga, que entrou no cancioneiro nacional há muito. Sobretudo se fado. Das modernas, pouquíssimas. Salvo, apenas, aquelas que são veiculadas por novelas. Eu mesmo sou assim. Temos aqui a quase certeza de que o Brasil faz a melhor música popular do mundo e nos achamos os reis da cocada preta, exceção feita, tão-somente, à música norte-americana.
Mas temos passado por maus pedaços como ouvintes de rádio e tevê em termos musicais. Nossa mídia resolveu que ouviremos o pior que se faz no país, e tome lá uma enxurrada de canções fraquinhas, letras tatibitate, cantores e cantoras de duvidosa competência e por aí afora, quando não são ruins pra burro. Todos parecem dispostos a faturar a qualquer preço, sem se importar em oferecer qualidade. Aliás, boa parte desses que aí estão – tenho quase certeza – não é capaz de voos mais altos nesse aspecto. Assim ficamos sem a autêntica manifestação popular em termos musicais, nem temos a MPB de tão excelente qualidade, que nos fez conhecidos em todos os recantos do mundo.
Mas qualquer país, tenho a impressão, é mais ou menos assim. No Brasil é que tudo o que é ruim é muito mais cultuado, sempre em nome da diversão, do frege, do beijinho no ombro, da boquinha da garrafa, da abaixada até o chão na coreografia sexual de muitas dessas novas danças.
Portugal, por exemplo, tem um maravilhoso compositor, cantor e músico que muito pouco conhecemos e que nunca, em tempo algum, ouvimos em nossas rádios. É ele Pedro Abrunhosa. De sólida formação musical, gravou em 1994 seu primeiro disco, Viagens, com o grupo Bandemónio, que o acompanharia por alguns anos.
Tenho dele apenas o único cd que vi em terras brasileiras: Momento, de 2002, seu quarto álbum de músicas inéditas, todas de sua autoria – letra e música. O mais que dele conheço é via YouTube.
Basicamente as músicas são feitas a partir do piano, têm uma levada lenta, com letras extremamente bem feitas, melodias interessantes e inesperadas, cantadas com uma poderosa voz grave, a escandir os versos de forma marcante. Seu estilo lembra muito o de outro grande artista: o canadense Leonard Cohen, que fala/canta suas próprias criações.
É impossível ouvi-lo sem prestar atenção. Sua música não é feita para o consumo imediato, sôfrego, inconsequente, como os brasileiros estamos sendo levados a ouvir em nossas rádios e tevês. É preciso silêncio e reflexão. Nada do que Abrunhosa diz em suas letras é gratuito. E elas, as letras, muitas das vezes, atingem o valor de verdadeiros poemas.  
Gostaria que meu leitor atento fosse até a ligação abaixo e visse/ouvisse um exemplo da maravilhosa música de Pedro Abrunhosa.
Espero que goste como eu.

Capa do cd Momento (imagem em pt.wikipedia.org).

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Para ver/ouvir a música, clique na ligação: https://youtu.be/loCDq_Cbygs


26 de maio de 2015

ÚLTIMO DESEJO


Miracema faz mal ao coração. Tanto pelo lado do colesterol, que lá tem seu maior incentivo, quanto pelo daquele aperto sinistro de quando você encontra seu amor perfeito e dele não escapa pelo resto de seus dias. Se você não morrer de paixão, morre de enfarte.
Pois foi mais ou menos isso que ocorreu com Zamir. Casado com a mulher da sua vida há algumas décadas, tinha a tranquilidade de que o velho órgão pulsava compassadamente na certeza daquele amor verdadeiro e na modorra da pequena cidade do Noroeste Fluminense, parede-meia com Minas Gerais. E ia levando a vida entre baforadas de cigarro, torresmos e cervejas, linguiças e traçados, lombinho de porco e vinho tinto, afora a mulher, os filhos, os netos e até um bisneto – quem diria! – que dilatam o coração da gente até mais não poder no quesito amor e felicidade.
Até que numa tarde prazenteira cheia de calor, o ar abafado, a espera do jogo do seu time periclitando na tabela do campeonato, só em casa, sente que alguma coisa não lhe vai bem. De início, julgou que fosse alguma indisposição estomacal, contudo resolveu por bem ir até a casa de saúde, onde pudesse ter um diagnóstico melhor.
Beirando os setenta, não podia dar chance ao azar. E pegou o carro e foi dirigindo até o local, onde já chegou sem a memória do fato. Tudo o que ocorreu depois foi o que lhe contaram.
Ministraram-lhe um sublingual, levou algumas descargas elétricas que lhe chamuscaram a pele, pois seu caso era um tanto preocupante, e resolveram removê-lo para Itaperuna, cidade próxima com maiores recursos na área médica. O trajeto, embora não longo, demanda cerca de cinquenta minutos, uma hora, por conta da travessia da pequena cidade de Laje do Muriaé, estendida ao longo do rio que lhe dá o nome. Justamente aí, em Laje, ocorreu o fato inusitado a merecer este registro.
De repente, Zamir sentou-se na maca e disse ao enfermeiro que o acompanhava:
- Quero beber um guaraná Antártica geladinho!
Avisado pelo enfermeiro sobre o desejo do moribundo, o motorista parou a ambulância imediatamente próximo à pracinha da cidade e correu até um bar, onde comprou, de seu próprio bolso, uma latinha do famoso guaraná. Trouxe-a, sobressaltado, na esperança de atender ao último desejo do enfartado, seu conhecido de longos anos.
Zamir sorveu o líquido com a sede dos que vão morrer, liberou um arroto caprichado e deitou-se novamente sobre a maca. O olhar do enfermeiro para o motorista indicou que o caso era de morte certa e que ele deveria, assim que saísse da cidadezinha, apertar o pé, porque a situação requeria urgência urgentíssima, como nos casos mais agudos.

O motorista não economizou acelerador e chegou rápido ao Hospital São José do Avaí com o projeto de defunto de Zamir, que foi quem me contou esta história, às gargalhadas, o coração infestado de stents e safenas e mais uma dorzinha incomodativa bem lá no fundo, porque seu time está em vias de ser rebaixado à segunda divisão do campeonato de futebol. Mas isso só quem pode resolver são os que calçam chuteiras e suam a camisa. Coisa muito mais complicada do que o que ele passara por conta de toda uma vida de colesterol e nicotina.

Imagem em pt.dreamstime.com.

19 de maio de 2015

OH, AMOR!


Oh! Amor
Quantas coisas tenho deixado pelo caminho
Na intenção de um dia voltar
E resgatar intactas.
Mas foram tantas léguas na estirada
De uma empreitada dura.
Talvez um dia volte
Coxeando
Adernado
Alquebrado
Para catar o que delas sobrar
Expostas às intempéries da vida como foram.

Oh! Amor
Quantas encruzilhadas me detiveram a marcha
E eu sem ti ficava tonto
Desorientado
Porém contigo durante tantos anos
Seguia sempre o caminho deste outono
Em que me encontro.
Por isso é que hoje volto lento
Os passos a caminhar incertos
Sobre aqueles outros passos
Que deixei quando parti à cata do que me prometia a vida.

Recolho cacos
Talvez restolhos
Pedaços das coisas todas que deixei no tempo
Mas sigo intenso
Porque contigo, Amor, enfrento os ventos
E os desatinos
E tenho a certeza de superar os medos.

Cupido encordoando seu arco, Museus Capitolinos, Roma (em pt.wikipedia.org)

14 de maio de 2015

DEPOIS DE MORTO

(Em memória do meu primo Batistinha.)

Depois de morto
Nada mais importa
Nem o que virá
Nem esta porta fechada sobre o agora
E aberta para o nada
As luzes apagadas
O tempo outrora
Reduzido a meras anotações sem hora
A memória rara das coisas simplórias
Uma ou outra tristeza que não chora
Um gesto trivial
As glórias transitórias
Registros indeléveis
Lapsos de memória
Previsíveis formas de ilusões cotidianas
As mesmas formas repetidas há anos

Diante do momento fatídico da morte
Nada mais importa
Nem o porto nem o cais nem a rota
Nem o barco perdido entre as vagas do oceano

Gustave Doré, Caronte - ilustração para a Divina Comédia, de Dante Alighieri (em pt.wikipedia.org)

9 de maio de 2015

UMA CARTA

(Ao amigo José Luiz Padilha, destinatário da carta, e aos primos Adriano e Bedu.)


Organizando as coisas que foram retiradas de seus cantos, por conta de uma obra em casa, recuperei a cópia de uma carta enviada, nos anos 80, ao meu velho e querido amigo José Luiz Padilha, então morador de Carabuçu, nossa terrinha natal.

À época, escreviam-se cartas. As comunicações ainda não estavam essa maravilha de hoje, com as mídias eletrônicas a facilitarem o contato entre os amigos. Assim, vez em quando, cometia cartas: à família, aos amigos, a uma ou outra menina que havia engatilhado na mira dos olhos e do coração, coisa esta última que não gerou nenhuma consequência – benéfica ou maléfica – na minha vida.

Para a curiosidade dos meus amigos leitores, reproduzo a dita carta aqui, o mais próximo possível de sua conformação gráfica. Ela foi datilografada.

Aí vai.

Olivetti Lettera 22, a máquina em que cometia minhas cartas (imagem em mercadolivre.com.br)

Prezado Padilha,

adriano, bedu e eu comíamos uma rabada com agrião
e batata,
ao som de duas antárticas estupidamente,
quando falamos de você e dessa sua cabeça grandi-
 loquente.
dizíamos, então, que os seus grilos e sonhos
são demais para minha cabeça pequena,
mais preocupada com o se safar dos problemas
                                    do mundo
que com as indagações de ordem metafísico-sentimental do estar-no-mundo e suas consequentes projeções na velhice, essa fatalidade a que estaremos sujeitos caso a bosta do coração que vocifera no peito
não fizer papel miserável antes do final do
                                 primeiro tempo.
nossos duplos filhos, de nós quatro, estão ainda
na preliminar dos dentes-de-leite
e nós, com o preparo físico comprometido,
por incursões erótico-etílico-profissionais
no jogo principal a que assistem impávidos
o leão do imposto de renda
a caderneta de poupança
os juros e a correção monetária
e aquela indefectível certeza de que ainda despertamos sentimentos escusos na mulher do vizinho
e a bunda da rita cadillac rodando na televisão.
não há como pensar.
foi aí que o bedu disse que você tem esse tal medo
de envelhecer.
foi aí que eu disse que o vovô chico albino morreu pobre, esquelético, esclerótico, um espectro de gente, em um bairro qualquer de caxias, que por obrigação
se chama 25 de agosto, já roçando a beira dos noventa anos de idade.
como se, quem vivesse tanto,
essa merda de vida deixasse viver em paz.
foi aí que eu disse que também o zé fábio tem
os grilos altíssimos do receio de ficar velho
e brocha, naturalmente. mas já há muitos anos.
talvez ele tenha mesmo como missão na vida
estar chamando nossa atenção descuidada
para o tobogã irreversível da queda de produção,
de cabelo, de tesão e de vitalidade. aí o inps
para nos reconfortar. que merda é o jair soares!*
o pior, no entanto, é morrer novo, devendo vida,
como quem sai de fininho, sem querer, querendo,
de uma festa em casa de gente pobre, para cujo
banquete se convidassem as iguarias ao invés dos comensais.
o vovô não saiu de fininho. saiu pela porta da
frente, todo quebrado, como que saísse de uma
luta a que sucumbira de modo incontestável.
e na aparência dormente dos mortos antigos que
levam um pouco da ciência de uma vida que ele
mesmo esqueceu de viver nesses últimos anos,
qual o mago da poção miraculosa cuja fórmula põe ao fogo para não cair em mãos de estranhos e criminosos. não direi que lá foi o meu avô, porque simplesmente não há o lá, o onde chegar. muito menos desencantou-se, como afirmou o flávio rangel pela morte do vinícius de morais. que essa vida não é encanto.
simplesmente acabou-se, como se acabam o doce, a bala azedinha, o gosto de pano de guarda-chuva encardido
na boca.
a diferença é que o bicho-homem tem memória, o que dele há de ficar.
a verdade é que temos de glorificar a vida. temos de valorizar a capacidade de resistir
e não a grandeza da batalha final.
os mortos são os desaparecidos.
os outros é que ficam, mesmo perdidos nesse planeta
de ódio e violência.
adriano, bedu e eu estraçalhávamos com a voracidade dos nossos trinta e tais anos aquela rabada de boi, assessorada por goles dourados de antártica, mas comíamos e bebíamos aos que nascem e nasceram ontem. nós vamos descansar para o segundo tempo,
caso não sejamos barrados pelo técnico
em virtude de nosso baixo rendimento.
os dentes-de-leite, fazendo a partida preliminar,
ainda tocam a bola de primeira,
batem corner sem a malícia dos anos
e, principalmente, ficam na barreira
sem a preocupação de proteger os culhões contra o chute do time contendor.
e nós, de barriga cheia, os olhos meio repuxados
pela claridade estonteante da luz no fim do túnel, rimos superiores à incapacidade, inconsequência
e imaturidade
dessas pobres crianças que pusemos no mundo
não por um desígnio dos céus
nem por um prazer egoístico de procriar
mas sobretudo pela certeza de que eles
serão melhores
              maiores
                     mais bonitas
                                 mais amantes
que nós.
pela estranha e compreensível esperança humana
de que o espetáculo dantesco que vivemos
não pode – não deve – não será passado a todas
essas crianças que por aí choram
                           sofrem
                           buscam
                           riem
e têm necessariamente de encontrar A PAZ.
ou não poderei morrer velho, esquelético e esclerótico, todo quebrado, pela porta da frente, sem a vergonha da derrota, ainda que derrotado, estampada no rosto.
que vivam os vivos!
                            um abração do
                               SClair
                                                                  3/6/82


*desculpe-me o palavrão!

4 de maio de 2015

BOA VIAGEM!


Toninho é uma lenda viva do carnaval bonjesuense. Pelo menos, por enquanto. Há um ano está com a próstata descomunal, aguardando cirurgia do SUS. Há pouco a secretaria de saúde do município o fez ir até Vitória para agendar a data de entrar na faca, expressão do seu tempo de juventude. Em vão! Não era naquele dia. Voltou, duzentos e vinte e cinco quilômetros, para a rotina de olhar o tempo passar sem maiores emoções, pelo menos até este dia, pois no ano não houve o desfile de sempre - a prefeitura não chegou junto, como ele disse - e seus tradicionais bonecos gigantes não abrilhantaram o carnaval da cidade.
Preocupado com a situação dele, seu filho Rondinelli - flamenguista roxo, Toninho deu a cada filho o nome de um jogador do time - procurou a Funerária Boa Viagem, para se prevenir de qualquer problema mais sério. Desses que chegam nos momentos inesperados e pegam os sobreviventes no contrapé.
Tal empresa, estabelecida do outro lado do Rio Itabapoana, oferece consórcio para aquisição de caixão e planos de sepultamento, em condições vantajosas, do tipo "pague agora, morra tranquilo depois e deixe tudo por nossa conta". Rondinelli, precavido, temendo possível dificuldade no momento doloroso, procurou a funerária, preencheu a ficha, escolheu o plano e deixou o barco correr.
Naquela tarde, Toninho, como sempre sentado em sua cadeira no beco ao lado da rodoviária, trocava dois depois de prosa com seus amigos Negrito e Cristina. De costas para a entrada da ruazinha, não percebeu a chegada do carro da empresa de encomendas definitivas.
Sua atenção foi despertada pela voz do homem da funerária, que procurava pelo Rondinelli.
- É meu filho. - respondeu, perguntando em seguida - Por quê?
- É que ele fez um plano de consórcio lá com a gente e preciso de uns dados a mais.
Toninho então virou a cabeça e pôde ler, na lateral da viatura, apenas parte do que estava escrito: Boa Viagem. Ficou eufórico e comentou com um sorriso:
- Que bom! Só assim vou poder conhecer Guarapari!
O homem da funerária, um tanto constrangido, lhe disse:
- Não vai dar, não, seu Toninho.
Negrito rasgou uma gargalhada estrepitosa e esclareceu:
- Toninho, essa viagem aí é a derradeira, aquela sem volta. Aquela em que você só vai comer capim pela raiz.
Se há uma coisa que mete medo a esse negro já dobrado em dezenas de carnavais, é a morte. Nem fale nessa palavra com ele. Desconjuro credo!
- Que isso, Negrito?! Deixa de brincadeira sem graça!
O homem da funerária resolveu esclarecer ao possível beneficiário do plano:
- É isso mesmo, seu Toninho. Nós somos da Funerária Boa Viagem.
Quase em pânico, um tanto descontrolado, tremendo muito, pega o celular e liga:
- Rondinelli, que merda é essa, Rondinelli, de fazer plano de funerária?! Porra, tá pensando o quê, Rondinelli? Tá me agourando, fidazunha?

Cristina, que me contou a história, não ouviu a justificativa do filho, porém sentiu que o tradicional e agradável papo de fim de tarde com o Toninho do Tupy, naquele dia, estava prejudicado pelo horror da morte a que seu amigo estava sendo apresentado pelo excesso de zelo do filho. Talvez, se tivesse antevisto essa traição filial, teria posto o nome no menino de Júnior Baiano, e não de Rondinelli, o famoso Deus da Raça para a torcida urubu.

Imagem em cledsonsoares.blogspot.com.