17 de fevereiro de 2016

SE ME LIGAREM


Se me ligarem
Diga que não estou
Diga que sai sem rumo a procurar os descaminhos
Por onde não andei
Tenho certa nostalgia dos pecados que não cometi em moço
Porque temia demais o fogo do inferno
E as indulgências que me seriam negadas pelo padre
Já quis muito ser santo e me esforcei bastante
Mas isto deu em nada
E agora acho mesmo que a vida eterna seja um engodo
Embora sem muita certeza
Por isso é que
Se me ligarem
Diga que fui atrás de uns pecados tolos
Que deixei perdidos na juventude há anos
Em troca dos quais ofereço minha alma nula
E uma incerteza débil sobre o futuro

Ricardo Ferrari, Brincadeira de criança, s/d (em peregricultural.wordpress.com).

10 de fevereiro de 2016

CASO MÉDICO: HOMEM É MULHER!


Passeava há pouco com meu netinho e, na volta para casa, dei uma olhada rápida nos jornais expostos na banca em frente ao banco. Lá estava estampada uma tragédia pessoal: um homem de 66 anos – um só ano mais novo do que eu – pela primeira vez foi a um médico, o que em si não é propriamente uma tragédia, e descobriu que é mulher.
Ora, como pode ser uma coisa dessas? Confesso que não li a notícia, mas o direito inalienável ao pitaco não exige conhecimento prévio de qualquer natureza, para que se saia por aí falando sobre tudo e todos. Então vou exercê-lo soberanamente aqui.
Voltemos, então, à pergunta: como é que pode uma pessoa passar sessenta e seis anos da vida pensando que é homem, e um médico qualquer, despreparado, formado não se sabe onde, jogar na sua cara que ele é mulher?
- Seu Jeroboão, infelizmente tenho de lhe informar que o senhor não é homem, seu Jeroboão! O senhor é mulher, pelo que pude examinar.
- Mas, doutor, e esse troço pendurado aqui no meio das minhas pernas?
- Isso, seu Jeroboão, é o que a ciência chama de hipertrofia do clitóris. Isso não é um pênis, seu Jeroboão, é um clitóris. E só mulher tem clitóris. E pelo que vejo é uma hipertrofia e tanto. Valha-me Deus! Confesso ao senhor que nunca vi uma hipertrofia deste tamanho neste órgão.
- Mas, doutor, o senhor há de me desculpar a ignorância: e essas bolotas penduradas logo embaixo?
- Outra aberração da natureza, seu Jeroboão. Pelo que a ciência informa, elas não poderiam estar aí, já que tecnicamente o senhor é mulher.
- E o bigodão? E a barba que tenho de fazer sempre?
- Conheço muita mulher barbada, seu Jeroboão. O senhor nunca foi a circo que tem mulher barbada? Pois é! É a mesma coisa. Na minha família, seu Jeroboão, tinha uma tia por parte de pai, uma tia avó, que tinha barba e falava grosso como o senhor. Infelizmente já faleceu, que Deus a tenha!
- Sei não, doutor, acho que o senhor está enganado. Eu nunca fiquei incomodado. Mulher não fica incomodada todo mês?
- Também a ciência explica o seu caso: quando há hipertrofia do clitóris e essas bolotas se desenvolvem desembestadamente, as regras não vêm. Ficam inibidas pelo resto da vida. E de regras passam a exceção, seu Jeroboão!
- Tá na ciência isso, doutor?
- Claro que está, seu Jeroboão! Ou o senhor está achando que sou um charlatão? Passei anos da minha vida estudando o assunto e posso garantir, sem erro, que tudo isto está na ciência.
- E como é que vou explicar à Dulcina, minha mulher, com quem tenho sete filhas, mais os netos que vieram, que eu sou mulher nessa altura da vida, doutor?
- Aí, seu Jeroboão, o problema é seu! É bom o senhor mandar investigar, porque é muito esquisito. Nunca soube que mulher transando com mulher desse em procriação. O senhor, por acaso, não tem um vizinho muito chegado, muito amigo? É bom averiguar, seu Jeroboão, porque aí tem truta.
Jeroboão estava transtornado com a notícia do médico. Pensou que talvez tivesse sido melhor nunca procurar um doutor formado. Lá no seu sitiozinho perdido no alto da serra, vivia muito bem, tratando-se com ervas e plantas.
E agora o que faria? Como falar com Dulcina, mulher de sérios princípios religiosos, que ela esteve casada com outra mulher por mais de quarenta anos. E, pior, que a sua parceira – ele – nunca tinha negado fogo. E também ia tirar umas suspeitas com o compadre Tonhão Campista, vizinho de propriedade e muito chegado à família. Tanto que é padrinho das sete filhas dele. Miserável do compadre Tonhão Campista, pensou Jeroboão lá com seus botões.
Pagou a consulta ao médico, que lhe deu o receituário com reguladores de menopausa e a seguinte recomendação, assim que saía do consultório:
- Seu Jeroboão, e trate também de ir a um cartório trocar esse nome. Que não pega bem uma mulher como o senhor com esse nome de macho.


Imagem em letrasmusicadas.blogspot.com.
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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos.

4 de fevereiro de 2016

AMIZADE

(Aos meus amigos, particularmente a Romeu Pimentel.)

Tenho cultivado amizades, embora não saiba plantar nem um pé de couve. E nisto me sinto um latifundiário. Talvez meu campo seja extenso, porque não há resquício de inimigos a lhe oporem limites. A não ser quando criança, nunca entrei em confronto com o meu semelhante. Nunca cheguei às vias de fato, como os diários sensacionalistas costumam dizer, quando as pessoas saem no braço, dão-se sopapos. Ou, pelo menos, se ofendem verbalmente. Não nasci para isto.
Lembro-me de Ziraldo citando Otto Lara Resende, cujas palavras diziam mais ou menos o seguinte: A natureza não me proveu do sentimento do ódio. Por isso planto amigos a mancheias, para parafrasear o grande Castro Alves. Ainda que não sejam muitos, são intensos, são especiais, são daqueles de se guardarem debaixo de sete chaves, nas palavras de Fernando Brant musicadas por Milton Nascimento. Estou muito citador hoje!
E planto em todos os gêneros, sexos, cores e condições, embora perceba que amigos sãos os que mais próximos estão daquilo que sentimos. Não propriamente do que pensamos. O pensar é livre, cada um tem sua ideologia, sua filosofia. O sentir é mais ou menos semelhante entre os seres, pela própria condição física. Não há tanta diversidade no sentir, quanto no pensar. Por isso é que dou mais valor ao que é menor, para acabar por fazê-lo maior.
Por outro lado, a amizade que planto não é grama. Tem raízes profundas e dá sombras generosas, frutos saborosos, sucos capitosos. Meus amigos são meu orgulho. Quando falo de um amigo, fico até com receio de o outro sentir ciúmes. E aí tento falar sem ostentar as qualidades que vejo naquele, a fim de não melindrar esse. Mas todos estão em meu coração numa escala de entupir artérias.
Aliás a vida sem amigos deve ser – se existir! – uma coisa sem sabor. Ainda que, por momentos, possamos sofrer com o que sofre o amigo, ainda assim é tudo um grande prazer. Até mesmo nisso. Porque, se um amigo está em perigo, o perigo é meu também. Se ele chora, sou capaz de chorar junto. Mas, se ele resolve beber um vinho, aí me emborracho com ele. Um vinho com um amigo é de casta superior, só cultivada no campo da emoção.
Por vezes, fico sozinho em casa, diante do computador, ouvindo uma música, vendo um vídeo, lendo um livro, e sempre me vem à memória os amigos que tenho, alguns especificamente que talvez devessem também compartilhar daquele momento simples, mas cheio de prazer, que consigo tirar das coisas mais corriqueiras. E, nessas ocasiões, fico feliz em saber deles, que andam por esse mundão afora, levando suas vidas, curtindo os seus, fazendo valer sua presença na existência, e isto me dá um conforto muito grande. Às vezes, até um orgulho infantil.
Os meus amigos são soberbos! Não que sejam orgulhosos, cheios de vaidade. Não que se sintam melhores que os outros. Superiores aos demais. Mas são os amigos que trago no meu mais profundo sentimento. Aqueles que estão soberanos na minha estima. E disso não abro mão, nem faço economia no adubo.
Salve o amigo! Viva meus amigos!

Árvore em Itaocara-RJ; 1/12/2013 (foto do autor).