17 de setembro de 2022

GORGULHO

 Os dois moleques enchem a boca com uma boa chupada na laranja, engolem o caldo e mantêm os caroços na boca, para a disputa.

- Gorgulho!

- Eu entro!

- Com quantos?

- Com oito!

A voz não sai muito boa, porque as bocas estão com vários caroços, a atrapalhar a dicção.

E o desafiante começa a cuspir, um por um, os caroços que ficaram depois daquela primeira sucção na laranja, enquanto conta:

- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Acabou!

- Acabou nada! Você está escondendo um caroço no fundo da boca.

- Não estou! Acabou mesmo!

E abre a boca, põe a língua para fora, a mostrar que não trapaceava no jogo.

Agora era a vez do outro, que para provocar troca sua frase de entrada na brincadeira:

- Gorgulho!

- Te entro!

- Vai à merda! Com quantos?

- Com sete!

E o adversário, por sua vez, repete o procedimento:

- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito!

Os caroços de laranja voam longe, pela força com que o moleque os expele da boca.

Aquela primeira etapa estava empatada. Mas ainda sobravam duas ou três rodadas por cada fruto.

E continuavam o jogo, sem que nenhum dos dois acertasse a quantidade exata dos caroços que restavam na boca, após a sucção do caldo doce.

Para a disputa, só servem laranjas com caroços. A lima, por exemplo, é muito boa, pois vem normalmente com diversos deles. A seleta e a campista também se prestam à disputa. A laranja-Bahia, por sua vez, não serve, já que não os tem. Aliás, rarissimamente se encontra uma com um ou dois caroços.

E os dois moleques estavam sempre a se desafiar nesse jogo-brincadeira. Cada um tinha seu canivete amolado no bolso do calção para descascar os frutos maduros, sentados no chão sob os arbustos do pomar da casa da avó, que precisava autorizar que os netos periodicamente se fartassem com aqueles cítricos tão apreciados.

Eram vários os tipos de laranjas ali plantados: lima, Bahia, campista, coroa de rei, serra d’água e seleta. Os pés de laranja lima eram os mais numerosos. Dos outros tipos, eram dois ou três de cada.

Na hora de descascar a fruta era preciso cuidado, de modo a não afundar muito o corte na polpa e expor os gomos. E por aí já começava a disputa: ver quem conseguia tirar a casca mais comprida. Depois era fazer o tampo, que podia ser cacimbinha, caso o canivete tivesse a lâmina pontuda. Enfiava-se a ponta perpendicularmente ao topo da laranja e, com cuidado, se fazia o corte circular, de modo a deixar exposta em uma espécie de base de pequeno cilindro onde o caldo se acumulava a cada aperto suave. A outra técnica, mais fácil, era a tampinha, conseguida com um corte longitudinal da parte superior da laranja.

Para aqueles dois moleques tudo era motivo de disputa. Depois de totalmente esgotada de seu caldo, o resto, a que eles chamavam chupe-chupe, era arremessado longe. E então vencia quem conseguisse a maior distância.

No entanto, o cerne do desafio era o gorgulho, brincadeira vinda de tempos anteriores, de que eles mesmos não tinham conhecimento, e que consistia em reter na boca, após a ingestão do caldo, os caroços que saíam a cada sorvo.

E a disputa continuava até que estivessem empanturrados de caldo de laranja, ou que ouviam o comando da avó, suspendendo a concessão dada.

- Já vamos, Maína! Só mais uma!

E fechavam a disputa, como quem pede a saideira no bar.

- Gorgulho!

- Eu entro!

- Com quantos?

- Com cinco!


Imagem colhida na Internet.