24 de julho de 2018

ENQUANTO OUÇO AS NOTÍCIAS


Jane está lá dentro
Vasculhando o computador.
Na sala
Acompanho o noticiário na tevê
Enquanto bebo conhaque para espantar o frio.
Ou antes
Bebo conhaque
Enquanto assisto ao noticiário na tevê
Recheado de péssimas notícias.
Dedilho este texto
Ao mesmo tempo em que tudo acontece no mundo
- Apesar de nós
Malgrado nossas expectativas –
A uma velocidade estonteante
Como na canção do Caetano.
Não tenho planos para amanhã
Muito menos para o futuro.
Apenas espero que a estupidez humana
Produza tão boas notícias
Quanto o conhaque que bebo
E sóbrio
Eu possa ter a certeza de que no mais
Não destruiremos a vida em nome de bobagens ilusórias.

Samuel e Thales combinando brincadeiras (foto do autor).





5 de julho de 2018

PRERROGATIVAS DO UMBIGO AO BALCÃO


Não há nada tão democrático e interativo, quanto encostar o umbigo a um balcão de bar.
Ontem, por exemplo, fui encomendar sanduíches no Ponto Jovem e, enquanto aguardava sua feitura, resolvi beber um chope no Botequim Chalé, exatamente ao lado, já que a lanchonete não vende bebida alcoólica.
Ao entrar, entre pessoas e barris, o garçom que conversava com os outros clientes que já lá estavam abriu espaço no balcão, para que eu também ali encostasse meu umbigo. Era o justo instante em que ele perguntava ao português ao lado se havia bares desse tipo na Terrinha.
Já de posse da minha tulipa sob pressão, de farto colarinho cremoso, servida pelo João e espécie de alvará para me meter em conversas alheias, entrei no papo que se desenvolvia àquela altura.
Daquele lado do balcão do botequim, que fornece um dos melhores chopes de Niterói, tornamo-nos quatro com a minha chegada. Eu e o outro à direita passamos a explicar ao português, que desde 2008 vem uma vez ao ano a trabalho ao Brasil, como se dá o funcionamento das relações num balcão de bar aqui abaixo da linha do equador. Expliquei para ele, com a autoridade de várias décadas naquele ambiente, que é do estatuto dos bares e botequins nacionais, que não se pode beber sem puxar conversa com o vizinho. Garanti-lhe que em todos esses anos jamais bebi um chope ali, sem que puxasse conversa, ou me metesse em conversas já entabuladas. E ninguém jamais estranhou isso, ou fez cara feia em sinal de desaprovação. Ao contrário, todo conversador de balcão de bar é sempre muito bem-vindo a qualquer papo.
É que, em princípio, ninguém está ali debulhando problemas estritamente pessoais, coisas de foro íntimo, confissões inconfessáveis. Os assuntos são sempre de âmbito macro, como na economia que rege o país, e quase nunca chegam ao varejo das lamentações privadas. A não ser que se tenha teor alcoólico muito elevado, capaz de tirar o lacre da discrição e da língua. Por isso é que todos podem meter sua colher de pau nas conversas de balcão de botequim, sem causar constrangimentos, pois elas não têm dono, pertencem ao fundo coletivo das preocupações humanas presentes nesses ambientes. Aliás, bem ao contrário, são públicas e notórias.
Na segunda tulipa do líquido dourado, eu e o lusitano já éramos quase amigos de infância, embora ele seja bem mais novo do que eu. E contei-lhe da minha única visita ao seu país e da minha próxima viagem para lá agora em agosto. Ele disse morar em Alenquer, ao me ouvir dizer que conheci Torres Vedras, onde comemos – Jane e eu – o melhor polvo de grelha, expressão que ele me ensinou, com batatas ao murro que um vivente pode experimentar.
Daí a instantes o jovem que estava à minha esquerda, sumido por alguns minutos, voltou com churrasquinhos no espeto e farofa, que fez questão de compartilhar com todos, inclusive com os garçons que simpaticamente nos atendiam.
O português, ao pegar seu pedaço, que fez rolar generosamente na farofa, reclamou que na sua terra não existe essa iguaria tão brasileira, que minha mãe fazia questão de dizer, para nos incentivar a comê-la, em criança, ser um produto da incomparável cozinha francesa.
Resolvi fechar a conta e pegar os sanduíches na lanchonete. Contudo o lusitano, em prol da amizade lusófona, cavalheirescamente pagou outra rodada de chope para nós, que, antes de levantar o brinde, nos apresentamos, a fim de que ninguém saísse incógnito daquele prazeroso encontro: Mário, o português; eu, papa-goiaba do norte do estado; Fernando, niteroiense; e Marcos, o rapaz do churrasquinho, goiano da capital, com seus erres característicos e uma simpatia quase mineira.
Nó último instante, ao cumprimentar o Mário, assim que saía do bar, ainda recebi uma recomendação veemente:
- Não deixes de tomar um Cartuxa.  É de facto excecional! – com aquele jeito tão lusitano de tirar o P onde o mantemos e de colocar o C de onde o tiramos.

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Bartolomeo Manfredi (1582-1622), Cena de taberna com um tocador de alaúde (wikipedia.org.).