31 de janeiro de 2018

MORRA-SE COM UM BARULHO DESSES


Vou chamá-lo seu Gumercindo, para não criar melindres com seus familiares. E trocarei, também, os nomes de todos os demais. Só eu serei eu mesmo.
Pois seu Gumercindo, após o almoço de domingo, cercado pela família numerosa, sentiu uma pontada no peito e foi levado às carreiras para a emergência do Hospital do Andaraí, não muito distante de casa.
O médico de plantão percebeu que o quadro não era dos melhores e resolveu interná-lo imediatamente. Parte da família que o acompanhou ficou estacionada na sala de espera, aguardando por notícias vindas lá de dentro. Passado algum tempo, veio outro médico a procurar por familiares do senhor Gumercindo Nascimento, aos quais minuciou a gravidade do seu estado geral, motivo por que resolvera deixá-lo no centro de tratamento intensivo. A enfermeira que o acompanhava anotou os telefones do filho mais velho, para qualquer emergência, e disse que eles poderiam voltar para casa e só retornar no dia seguinte, pela manhã, para notícias atualizadas sobre as novidades do doente e uma possível visita a ele.
No dia seguinte, logo cedo, lá foram três de seus filhos. O mais velho, Roberto, foi autorizado a ver o pai. Ele se paramentou, higienizou as mãos e foi conduzido até o leito em que o pai estava. Chegou próximo a ele, que tinha os olhos fechados, e disse baixinho:
- Pai, é o Roberto. Está me ouvindo?
O velho abriu os olhos e respondeu que sim. Deu as informações ao filho de como passara a noite, pediu que rezassem por ele, sem desespero, e falou que precisava dizer-lhe algo importante, muito importante mesmo. Roberto dobrou-se um pouco sobre o leito, já um tanto apreensivo, a fim de ouvir o que o pai lhe tinha a dizer.
- Filho, quero que você vá até a agência do Banco do Brasil, na Rua Senador Dantas, e procure pelo gerente Ricardo. Acho que não escapo desta e preciso que você faça isso por mim.
- Sim, pai! Pode dizer.
- Procure por ele. Ele é seu irmão.
Roberto pensou não entender, pois a voz do pai não tinha a potência e a clareza costumeiras, e perguntou:
- Como é mesmo, pai?!
- Procure o Ricardo, gerente da agência. Ele é seu irmão, e é preciso acertar as coisas.
Seu Gumercindo e dona Sílvia já tinham ultrapassado as bodas de ouro como casados, tinham cinco filhos – três homens e duas mulheres – e vários netos. Desses, Roberta, filha do Roberto, era a mais velha e já cursava Arquitetura na PUC. Sua vida, a dele, sempre fora devotada à família, com quem gastava seu vasto salário de fiscal de rendas aposentado. Pudera, por isso mesmo, dar conforto material a todos, e sua presença era constante entre eles, apenas interrompida pelas viagens de fiscalização aos mais diversos pontos do estado, a que todo fiscal está sujeito.
Roberto como que não acreditou no que ouvira. E o pai moribundo teve de repetir o pedido:
- Procure o Ricardo, na agência da Rua Senador Dantas. Ele é seu irmão. Precisa acertar as coisas.
Pela cor com que Roberto saiu do centro de tratamento intensivo, seus outros dois irmãos, Regina e Ronaldo, sentiram que a situação devia ser de extrema gravidade.
- Falou com ele? Como ele está? O que você achou? Papai está bem, não está, Roberto? – uma sucessão de interrogações apreensivas.
Roberto não sabia como dizer o que ouvira, mas garantiu que o velho estava em recuperação, embora ainda um tanto debilitado e completamente ligado à parafernália hospitalar. Mas começou cuidadoso.
- Preciso dizer a vocês uma coisa grave. Não é quanto à saúde do papai, mas é capaz de causar um choque em vocês.
Os irmãos se entreolharam apreensivos com que estava por vir.
- Papai pediu que eu vá à agência do Banco do Brasil na Senador Dantas, para falar com um irmão nosso lá. Um tal de Ricardo.
- O quê?! – indagaram ambos com espanto.
E foi lá, no dia seguinte, o Roberto à procura do Ricardo.
De imediato, espantou-se com a fisionomia do irmão, que era da mesma forma de todos. Nem precisaria de teste de DNA. Estava na cara! E mais espantado ficou, ao saber que seu pai tinha outra família semelhante à sua, com outros três irmãos, sendo duas mulheres e o Ricardo, todos com a letra inicial R no nome: Roberta e Rosália. Todos mais ou menos com as mesmas idades, nascidos em anos subsequentes uns aos outros, e já com outros tantos filhos.
A filha mais velha do Ricardo, a Ricarda, era também estudante de Arquitetura da PUC, da mesma sala da Roberta, e sua melhor amiga.
Quando as duas jovens descobriram os laços que as unia, ficaram estremecidas uma com a outra, sem saber o que se dizerem, até que, à medida que os relacionamentos entre todos os familiares se foram estreitando, no período de recuperação do velho Gumercindo, voltaram ao mesmo convívio fraterno anterior.
Seu Gumercindo, ainda no leito do hospital - e antes que fizesse a passagem desta para a melhor -, foi perdoado por suas esposas, seus filhos e netos, motivo que o fez se recuperar por completo, ainda mais celeremente. Confortável com a situação, resolveu promover um almoço de congraçamento, com o beneplácito das mulheres, para que todo o estranhamento se dissipasse.
A festa rolou, todos se divertiram, se confraternizaram, com exceção das duas esposas, que apenas trocaram cumprimentos protocolares ao início da festa, restando cada uma no seu canto do salão, como a que demarcar ainda seus territórios.
Passados seis meses, o coração do velho deu-lhe novo tranco, agora com a potência redobrada, fazendo-o finado, num pequeno átimo de tempo, sem mais essa ou aquela.
O velório foi marcado para o Cemitério São Francisco de Paula, no Catumbi, num sábado à tarde, para onde acorreram todos os membros das duas famílias.
Tão logo o corpo de seu Gumercindo foi encaixado na gaveta que lhe cabia nesse epílogo da vida, dona Sílvia mandou chamar a segunda viúva, dona Otília, aqui nomeada apenas nos estertores do texto, para lhe dizer com todas as letras do alfabeto romano:
- Agora sumam da minha vida! Escafedam-se! Não quero mais saber de ninguém! Desatou-se o elo que nos atava. Está desfeito e acabado! Desapareçam!
Eu estava lá, mas não ouvi a fala desabrida de dona Sílvia. Um dos seus netos me contou depois.
E seu Gumercindo, com o corpo ainda nem de todo frio pelo bafo da morte, deve ter-se contorcido na gaveta apertada em que foi descansar em paz.

Cemitério, Carabuçu-RJ (foto do autor).


21 de janeiro de 2018

BOIADEIROS

Chovia forte, quando os boiadeiros entraram na vila em seus cavalos, após deixar o gado na fazenda do João Monteiro, um pouco antes do Morro do Marta. Vinham pela rua principal, depois de passar pela pracinha em frente à capela de Santo Antônio e se dirigiam à cocheira do Jair Passarelo.
Embora com os semblantes cansados, os cavalos já um tanto alquebrados pela lida, ainda assim, tinham um ar solene. Todos trajavam capa gaúcha e portavam chapéu de feltro de aba larga, barbicacho ajustado na altura do queixo. Eram seis, destacando-se à frente o líder do grupo, cujo cavalo parecia maior que os demais. A chuva forte compunha o quadro que o menino admirava. O líder à frente, e os demais distribuídos pelos lados, um pouco atrás. A água escorria de seus chapéus e de suas capas. As ferraduras produziam um som que se misturava ao tamborilar das gotas grossas a cair sobre o calçamento de paralelepípedo. A não ser por isso e mais um ou outro bufo dos animais, não havia outro som no ar. Eles não se falavam. Vinham em silêncio. Era como se uma procissão equestre, muda, acompanhasse algum falecido ilustre, a merecer quietude respeitosa, naquele fim de tarde escurecida pelo aguaceiro de verão que se precipitava do céu.
O menino estava extasiado diante da cena. Em sua fértil imaginação infantil, aqueles homens pareciam mensageiros de notícias graves. Talvez fossem os Cavaleiros do Apocalipse, de que tanto ouvia falar nas pregações do pároco nas missas mensais na capelinha. Ainda que um frio lhe corresse pela pele, não podia deixar de admirar a solenidade da cena. Alguns anos depois é que a viu reproduzida, de forma bem parecida, em um filme norte-americano sobre o velho oeste.
Aos poucos, a tropa em marcha passou lentamente diante da porta da venda em que ele se encontrava. Seus olhos acompanharam o movimento dos animais levando seus condutores até o pouso final. Um a um, deixaram a rua e entraram na cocheira.
As nuvens do temporal anteciparam a obscuridade da noite – lâmpadas ainda não acesas – e produziram o efeito cinematográfico de fade out em cada cavaleiro a entrar naquele espaço.
E o menino sonhou um dia ter uma capa gaúcha como aquelas, para assumir a solenidade da postura observada em cada um dos cavaleiros que desfilaram à sua frente.
Hoje o menino é um homem idoso. Vivenciou dezenas de anos de sucessivos fotogramas guardados em seu cérebro. Percorreu caminhos diversos, cheios de peripécias e sobressaltos. Andou por montanhas e planícies. Viu povos e costumes exóticos. Encantou-se com cada coisa que descobriu ao longo da caminhada. Mas aquela imagem ficou definitivamente gravada em sua memória, de onde, vez e outra, assoma à realidade do seu quotidiano e o leva de imediato àquele mesmo espaço da infância, àquela mesma cena mágica, cheia de mistérios e magia, diante da porta da venda de seu pai.
Aquele menino sou eu.

Resultado de imagem para capa gaúcha
Imagem em selariagauchauberaba.com.br.

11 de janeiro de 2018

ENQUANTO MINHA GUITARRA CHORA SUAVEMENTE

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em 4/2/2013.)
Uma das minhas frustrações na vida é não ser guitarrista. Mas não um guitarrista qualquer. Queria ser um senhor guitarrista, como David Gilmour, para mim o maior de todos (Não me venham com razões técnicas, porque isto é coisa de sentimento, inexplicável.)
Quando jovem, tentei aprender a tocar violão. Eu e meu irmão Gutenberg compramos um, à prestação, na loja que era sua xará, Gráfica Gutenberg, em Bom Jesus, nos áureos anos 60.
Quando cheguei a Niterói, em 67, dedilhava alguma coisa despretensiosa e alguns dos antigos companheiros de pensão imaginam até hoje, como já me disseram, que eu soubesse tocar.
Meu irmão hoje, além de compor, toca bem. O pouco que eu sabia acabou. A única música de que ainda me lembro é The house of the rising sun, canção folclórica norte-americana também gravada pelos ingleses The Animals, de Eric Burdon, coqueluche à época: There is a house in New Orleans / They call the rising sun...
E música, como qualquer outra arte, funciona mais ou menos assim: ou você é chamado por ela, e desenvolve um caso sério, ou é meramente um espectador. Pois, quanto à música, sou um mero espectador, ou melhor, ouvinte. Talvez até um pouco mais atento. Mas parei por aí. Se não podia ser um David Gilmour, melhor seria não tentar. Preferi permanecer na plateia, deixando que ele e todos os grandes guitarristas façam isso por mim. Por nós!
E, como sempre ocorre, às vezes uns fazem e outros executam. Uns compõem, outros interpretam. Felizes os que compõem e interpretam ao mesmo tempo. Na Itália, pela década de sessenta, com o surgimento de diversos compositores que também cantavam suas músicas, criou-se a palavra cantautore, para distingui-los dos que eram apenas intérpretes.
Porém, este papo quase furado com que preambulo este texto é apenas para dizer para vocês que a célebre e magistral canção dos Beatles While my guitar gently weeps, de autoria do meu beatle preferido, George Harrison (Também não me perguntem por quê!), com diversas gravações espetaculares, recebeu de Peter Frampton talvez aquela mais bela, mais sensível a que seu título alude. Sua guitarra chora suavemente na gravação feita para seu álbum Now, de 2003. Tanto o riff inicial, quanto o solo no meio da canção são das coisas mais belas que a guitarra pôde fazer. Parece que, ali, Frampton entrou em estado de graça. Fez um pacto com o Cramulhão para executar como o fez.
E reparem que, além dos Beatles e de Frampton, há outras interpretações sensacionais, como de Eric Clapton e o próprio Harrison; de Tom Petty, coadjuvado por Prince, Jeff Lynne, Dhani Harrison e Steve Winwood, dentre outros, no tributo a Harrison no Royal Albert Hall; de Santana, com o vocal fantástico de Indie Arie e o violoncelo clássico de Yo-Yo Ma; de Jeff Healey e sua surpreendente guitarra tocada sobre o colo; da versão explosiva de Toto com a guitarra incendiária de Steve Lukather; da versão impressionante de Jake Shimabukuro no ukelelê, dentre outras que não repassei ou não conheço.
Para mim, no entanto, se sobressai a interpretação dada por Peter Frampton, hoje um senhor calvo, mas com a sensibilidade para fazer chorar sua guitarra de tal forma, que me leva ainda a pensar, como nos anos 60/70, que um dia a música possa nos salvar da estupidez da guerra e da violência.
É o que sinto.
E também não me perguntem por quê!

Capa do cd Now, de Peter Frampton, de 2003.


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Se quiser ouvir a gravação de Frampton, clique aqui.