28 de fevereiro de 2013

AMAR O FILHO

(Para e por meu filho, Pedro, quando bebê.)
 
amar o filho
viver por ele
o filho
esse pedaço de carne essa ciência essa
arte
esse
desespero falante
esse monte de vida essa pessoa indolente
cujas vontades cujos desejos
oh esse filho

reter o filho
tentar apenas
absorvê-lo moldá-lo guiá-lo
absorver-se moldar-se guiar-se
o filho esse futuro andarilho
do quarto pra sala da sala pro mundo
do mundo pro filho
no mesmo trilho seguindo as pegadas do pai
ou não
tanto faz

oh esse filho
esse desespero indolente
esse farol esse nume
essa estrela cadente
esse monte de carne exigente

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NOTA: Encontrei, durante a arrumação de papéis e fotos aqui em casa, este texto escrito à mão, numa meia folha amarelada. Ele foi escrito um pouco depois do nascimento de meu primeiro filho, Pedro, no início de 1977.

Imagem em papeldeparede.etc.br.
 

26 de fevereiro de 2013

QUANDO EU ME CHAMAR PROCRASTINAÇÃO

Vá lá
Um dia morrerei como qualquer organismo vivo
Ainda que viva um tanto a mais do que o previsto
E me torne ao cabo de uma existência comprida
A procrastinação de toda uma vida
E enfim por fim será o fim
E eu com isto?!
Já terei vivido o prometido!


Bernard Frackowiak: Le Vieil Homme et le Pain (em artsquebec.net).

24 de fevereiro de 2013

O COLEIRO-DO-BREJO

(Ao meu irmão Guth, pelo seu aniversário, dia 25.)

Está ali na gaiola aquele coleiro-do-brejo que meu pai trocou por uma dúzia de pés de moleque. O garoto que o trouxe, quase da minha idade, é apaixonado pelo doce que minha mãe faz. E não lhe custava nada capturar o coleiro com seu alçapão de freixo, que nós dizíamos flecha.

Todo coleiro-do-brejo da minha infância tinha, quase que por fatalidade, de parar nas gaiolas de alguém como meu pai, que amava ver o bichinho cantando, com o dó de peito estreitinho, bem de acordo com o tamanho do peito minusclinho que os coleiros têm.
E nunca - ele, meu pai - se sentiu um monstro por tê-los engaiolados. Nem mesmo eu ou outra criança julgávamos os adultos como tal, só por terem pássaros nesta condição.
Os bichinhos eram muito bem tratados. Eram postos a tomar sol, aos primeiros raios da manhã; tinham sua residência - ou prisão - asseada todos os dias; suas provisões de água e alimento eram repostas com frequência; ganhavam brinquedinhos onde afiar os bicos e aparar as unhas; se ficassem doentes recebiam remédios e passes de rezadores famosos da vila; quando transportados, eram protegidos do sol abrasador e dos olhares de quebranto dos invejosos por uma capa de tecido branco ou cáqui sobre a gaiola, as duas cores que barravam mau-olhado.
Meu pai até mesmo conversava com eles, incentivando-os a cantarem cada vez mais e melhor, só para depois fazer inveja aos amigos.
E eram apresentados aos demais passarinheiros, com referências elogiosas às suas pessoas emplumadas, sempre com destaque para as qualidades de cantor, ainda que principiantes. E, quando estavam jururus, caidinhos, um tanto desconsolados na vida, havia constantemente uma palavra de consolo a lhes justificar o fraco desempenho canoro:
- É que agora estão na muda, mas já, já voltam a toda! E você vai ver como cantam bem!
Como os cães e os gatos, os papagaios e as tartarugas, as iguanas e os hamsters, as cobras e as calopsitas, que atualmente as pessoas mantêm prisioneiros em apartamentos, casas, quintais, canis, gatis, coleiras, mordaças, focinheiras, pequenas jaulas, caixas de areia, caixas ventiladas para transporte, e não se têm como cruéis. Ao contrário, hoje os donos desses bichos se consideram grandes amigos dos animais.
Eu mesmo nunca tive passarinho, de meu, aprisionado. Não porque achasse desumano - ou desanimal, quem saberá! Simplesmente porque não gostava. Meu irmão, sim. E tinha lá o seu, como meu pai, que lhe ensinava todas as regras de manejo, todos os cuidados a serem dispensados àquelas criaturinhas singelas, cuja presença deixava os lares modestos do interior com um ar de eterna felicidade por seu canto melodioso.
E era sempre um passarinho simples, silvestre, um tanto mocorongo como todos nós mesmos – humanos que vivíamos muito próximos da natureza: coleiro-do-brejo, coleirinho-laranjeira, papa-capim, canário-da-terra, papa-arroz, gaturama, trinca-ferro, bico-de-lacre, azulão, curió, pintassilgo, cardeal, galinho-da-serra, sabiá-laranjeira, araponga, avinhado e até mesmo sanhaço, que faz uma sujeira danada porque é comedor de mamão e tem o intestino solto.
E meu pai criou passarinho até um pouco antes de sua morte no início deste ano, o que me dava muita apreensão: ver meu velho e querido pai ser considerado pela legislação atual um criminoso da pior espécie, aquele a quem nem cabe o direito de pagar fiança. Tudo por seu amor aos bichinhos cantores de penas, que iluminaram sua longa vida de hábitos simples e sonhos corriqueiros.
Como agora ocorre com os donos de todos esses bichos que vivem em condições completamente anormais para a sua vida animal, em convívio com seres humanos urbanos, que os tratam como se fossem pessoas e os constrangem a se vestirem de gente, a desfilarem em blocos de carnaval animal, a comemorarem seus aniversários com festa, bolo e balões coloridos, a terem regras de comportamento humano, a padecerem de doenças típicas dos homens e terem de tomar Gardenal, por exemplo.
Está ali, logo ali, aquele coleiro-do-brejo...
E o meu pai já não está mais aqui para cuidar dele.

Imagem em passarosmi.blogspot.com.

22 de fevereiro de 2013

DEIXAR PARA DEPOIS


não me imponham ideias soluções
deixem-me errar sozinho                                                                     
quebrar a cara com as coisas mais simples
é nisso que consiste esta minha vida
tão cheia de senões.
não gosto que me deem conselhos
nem que me guiem
ou que me segurem pelo braço
não é, pessoa?
deixem-me andar a esmo perdido
sem destino
ninguém sabe se esse atalho vai dar
em algum lugar alguma ilha deserta
ou nada.
não acendam as luzes do fim do túnel
nem balizem os caminhos
de nada adianta.
eu sou assim mesmo
prefiro esta incerteza do agora
ao nada consta do vir a ser
do sabe-se lá o que será o futuro
o inferno e o paraíso.
só preciso é de um pouco de ar
alimento água
algum dinheiro que me sustente
e a vergonha na cara de todos os meus semelhantes.
o resto?!
ah! o resto podemos deixar para depois.

Henry Ossawa Tanner, La leçon de banjo, 1888 (em eurocles.com/arpoma)

20 de fevereiro de 2013

NÃO TEÇO MANHÃS


não teço manhãs
nem terço armas
iludo-me apenas com o instante que corta a existência
decupada como um super-oito anacrônico
e mal resolvido
as lutas são meramente quimeras ultrapassadas
nada de fotogramas em cinerama
ou panavision
somente restos de fumaça no ar
e apontamentos para obra de ficção
- a vida...
essa coisa pela qual
não cantam os galos
nem se digladiam os guerreiros



Jean-Antoine Watteau, A comédia italiana, 1716 (em urocles.com/arpoma).

18 de fevereiro de 2013

SABORES DE ONTEM E DE HOJE

Estou aqui tentando pensar num assunto para um papo reto com você, leitor amigo, quando Jane, esta companheira de todas as horas, me traz um pote de jabuticabas geladinhas, colhidas ontem no quintal da casa de sua mãe em Miracema.

Não vou descrever o paladar, para que você não fique aguado, como dizemos lá, sempre que não se pode provar de algo delicioso. Não cometerei esta descortesia com você. Mas saiba que seja ela, talvez, a mais saborosa das jabuticabas que chupei na vida. E olhe que minha vida já desce desgovernada pelas corredeiras do rio, indo de encontro à cachoeira logo ali.
Quanto ao paladar, confesso, não sou pessoa saudosista. Aprendi há algum tempo que este sentido humano só está maduro aos vinte e cinco anos. Portanto tudo que provei até essa idade, pode ter sido sentido com os defeitos próprios da imaturidade gustativa.

Inclusive até comentei aqui sobre os sabores da infância, quando, num papo com meu saudoso pai, lhe dizia, por exemplo, que as mangas de hoje não têm mais o mesmo paladar das de outrora, quando eu era menino. Com a sabedoria que os pais acumulam pela vida, ele me disse que o paladar da manga não havia mudado, o que mudara era o paladar do menino.
E isto foi uma excelente dica para que eu me livrasse desse tipo de preconceito com as coisas da cidade grande, as novidades, sobretudo aquelas relativas a este ato tão comezinho e agradável, que é o comer.

Por isso é que, anteontem, estava eu na casa de minha mãe, em Bom Jesus do Norte, e rebatia o argumento do paladar do passado, relativamente à manga, dizendo que a mais saborosa que experimentei até hoje foi a manga Palmer, novidade que conheci há pouco mais de cinco anos.
Meu irmão e minha cunhada não acreditaram muito em mim e tentaram recuperar, por uma argumentação saudosista, o sabor da manga espada de nossas vidas. Mas lhes garanti que a da Palmer é superior. E descasquei uma, ainda não muito madura, das que levara para minha mãe, a fim de comprovar meu argumento. E, ainda que ela não estivesse no ponto ideal de consumo, eles puderam provar o gosto inigualável desta manga.

Outra novidade maravilhosa, descoberta também recente, é a atemoia, fruta da família da pinha (fruta-do-conde), produto do cruzamento da cherimoia, originária do Peru, com a pinha.
A atemoia tem paladar bem mais marcante que a pinha, muito mais polpa e sementes maiores, porém em número mais reduzido. Seu teor de doçura ultrapassa em muito a própria pinha. A cherimoia me é totalmente desconhecida.

Contudo outra novidade – e esta não entendo –, que me deixa politicamente grilado, é a laranja-baía importada dos Estados Unidos, que está tomando o lugar da nossa, nas gôndolas de supermercados e quitandas.
É uma laranja com a casca mais alaranjada, extremamente suculenta, sem caroço, como a nossa, e com o umbigo mais desenvolvido, em forma mesmo de uma pequenina laranja. O paladar é um pouco menos ácido que a nossa.

Confesso que tenho comprado desta, na falta da nacional, e não desgosto. No entanto o equilíbrio do sabor doce-azedo do produto brasileiro, que tende mais ao azedo, é mais instigante ao meu paladar, sempre disposto a viver perigosamente. 
Tenho adquirido esta laranja eminentemente nossa, porém importada dos EUA, mas o faço com certo pudor nacionalista (eu e esse meu antigo vezo universitário 68). Mas, para mim, é muito difícil passar por uma gôndola cheia delas e me fazer de indiferente. É a minha laranja favorita.

Agora, vou parar de chupar as jabuticabas – e encerrar este papo –. Elas têm uma péssima fama: dão prisão de ventre. Na verdade, isto nunca me aconteceu. Mas é bom prevenir. E, depois, guardo mais algumas para logo mais. Vou chupá-las pensando em você leitor, que desafortunadamente não está aqui para provar.

Jabuticaba no pé (foto do autor).

16 de fevereiro de 2013

AS PEQUENAS COISAS DO MEU GRANDE VELHO

Anteontem fez um mês que meu querido pai, Argemiro, nos deixou.

Hoje minha sobrinha Shana postou no Facebook a emocionada crônica que tanscrevo aqui, para que meus leitores dividam conosco um pouco do que foi a figura deste seu avohai.

 
oxoxoxoxoxoxo


AS PEQUENAS COISAS DO MEU GRANDE VELHO

(Shana Assis)

Cada vez que olho pra essa foto de capa do meu facebook, me dá uma mistura de sentimentos... eu fico rindo sozinha, lembrando dele se fazendo de durão, com essa cara de sonso, limpando os beijos que eu dava na testa dele, assim que eu acordava! Mas, se ele ouvisse a minha voz e eu não fosse lá dar o beijo, ele perguntava de lá da cadeira de balanço: "Uhm... foi a Shana que acordou?" - Só para eu ir lá dar o beijo dele! E depois soltava uma risada!

Desculpem-me os modos, mas só tem uma frase que define o que eu tenho sentido: Ô SAUDADE DO CARALHO, DESSE VELHO!!!!!!!!!!!!!! Daquele cheiro de sabonete, que ele exalava, após as 17h, quando ia carregando, sozinho, a cadeira de balanço até o quintal, para tomar uma fresca! Quantas vezes e quantas vezes, fiquei ali do lado, só para sentir o cheiro do sabonete Lux, que vinha com o vento!

Saudade desse velho antenado, que sempre opinava: "Essa roupa tá bonita"!; "Minha filha, você está gordinha, hem?"

Saudade daquele Natal, quando eu tinha 9 anos e ele me tirou no amigo oculto! Nunca vou me esquecer do orgulho que eu senti em ter sido "tirada" por ele! Saudade de vê-lo fazendo a contabilidade de sua pequena aposentadoria, naquele caderno de capa dura preta!

Mas, depois do cheiro de sabonete, a maior saudade que tenho dele é de acordar de manhã e ouvir, de lá de casa, aquelas fitas de músicas caipiras antigas, num volume tão alto, que era impossível conversar na cozinha da vó! Mas, essa, eu vou poder amenizar um pouco sempre que eu quiser, pois herdei a caixinha de fitas!

Saudade de esperá-lo vir do trabalho, para almoçar antes de ir pra escola! Saudade de ter que parar o pique porque ele estava chegando depois de um dia inteiro de labuta na CAVIL! Saudade de conversar com ele e escutar suas histórias... contava poucas, mas sempre tinha uma travessura no meio!

Saudade de ligar no dia do aniversário dele, o único que ele falava no telefone, e perguntar: "Oi, vô! Tudo bem?" - Já rindo, esperando a resposta de sempre: "Ah, minha filha, num tá bom, não! Minha língua tá queimando, minha coluna tá ruim, meu estômago tá doendo..." e por aí as partes todas iam tendo um problema! Então, quando ele terminava de reclamar, eu dizia: "Mas, tá bom, vô! Pelo menos, o senhor tá aqui com a gente"!

Agora, não posso mais dizer isso! Pelo menos, não fisicamente!

No dia em que voltei de casa, com aquela caixinha de fitas na mala e muita tristeza no coração, comprei umas cervejas e fui ouvir minha herança... a primeira música era Majestade Sabiá! Naquele momento, eu tive certeza de que o meu velho avô estava em paz.

Ela dizia:

"Meus pensamentos tomam forma e eu viajo
Eu vou pra onde Deus quiser
Um video-tape que dentro de mim
Retrata todo meu inconsciente
De maneira natural
Ah! tô indo agora pra um lugar todinho meu
Quero uma rede preguiçosa pra deitar
Em minha volta sinfonia de pardais
Cantando para a majestade, o sabiá
A majestade, o sabiá."

Descanse em paz, minha Majestade Sabiá!

Com todo amor do mundo e uma saudade sufocante, sua neta!
 
Rio Itabapoana ao crepúsculo, no dia 14/2/2013 (foto Saint-Clair Mello).
 

14 de fevereiro de 2013

CARNAVAL


meu coração é um pandeiro
mas nada sabe da euforia do tamborim
e bate num ritmo descompassado
atravessando o samba

meu coração é uma cuíca
e nem desconfia da melodia alegre do cavaquinho
mas uiva nas noites dos botecos
nas vielas escuras da cidade

meu coração é um ganzá
e desconhece a primazia nítida do surdo
chacoalha simplesmente torto
desordenado e tímido
nas avenidas do medo

meu coração é um repinique
sem sincronia possível com a restante bateria
e se agita sem consolo
sem prudência se enrola
desorganizando a harmonia
desorientando toda a escola

Joan Miró, Carnaval do arlequim, 1924-5 (em Blog do Noblat).

12 de fevereiro de 2013

NÃO SEI/PODE SER

não sei se escuto um tango
ou danço um minueto falso
o dia está tão indeciso e pálido
que mesmo uma dose dupla de conhaque
não o fará diverso

não sei se provo um certo pranto
dos olhos perdidos do horizonte
o panorama anda tão soturno
aqui visto da ponte
que pode ser temerário
traçar qualquer plano

não sei se canto um fado
ou me embalo num samba
a noite está tão tensa e imprecisa
e pode ser que as brumas da madrugada
tracem zodíacos pelo quarto
ou caminhos de rato
nos corpos dos que alucinam

pode ser que eu dance um tango
ou chore um pouco
ou cante um samba
pode ser...
mas está tudo muito difícil

E. Di Cavalcanti, Samba, 1925 (em dicavalcanti.com.br).


10 de fevereiro de 2013

O CEGO DO CAMPO DE SÃO BENTO

Campo de São Bento, Niterói-RJ (foto do autor).

Estou sentado num banco do Campo de São Bento, em Niterói, nesta manhã preguiçosa de domingo, examinando as fotos que acabo de fazer. Jane foi à missa das onze na Porciúncula de Santana, enquanto fui descansar, em meio à natureza, meu materialismo dietético (Para complicar, minha glicose anda no limite.).
O dia é mais calmo do que de costume, já que não se armou a tradicional feira de artesanato dos fins de semana. Imagino que os artesãos foram atrás dos seus blocos de carnaval.

A relativa quietude da manhã, quebrada apenas pelos poucos carros na avenida e o canto dos pássaros, é interrompida pelo pregão de um cego que vem lá ao longe pela alameda tortuosa do parque, batendo cadenciadamente sua bengala no asfalto. Sua voz ressoa forte e insistente.
Desde o momento em que o ouvi de início até agora, ele ainda não fez um segundo de silêncio. Seu discurso ininterrupto é sobre sua condição de cego e as tristezas e dificuldades que isto trouxe para sua vida. E tem a intenção de sensibilizar o coração empedernido das poucas pessoas que estão por ali. Ao tempo em que choraminga sua desventura, chama a atenção de seus possíveis ouvintes para a felicidade dos que ainda têm visão, em oposição à sua miserável sina. Ele, um pobre coitado que, de um para outro dia, perdeu a capacidade de enxergar.

E todos nós que enxergamos somos felizes, talvez até culpados, porque ainda desfrutamos deste dom. Mas ele se mantém firme, suportando a vida que Deus lhe reservou, a despeito de tudo, porque tudo estava em Seus planos. Ele é, em suas palavras, mais um predestinado da vontade de Deus para o sofrimento.
E, entre um e outro argumento sensibilizatório, repete indefinidamente seu pregão, como um mantra – ou seria como um estribilho de samba-enredo? -:

- Qualquer trocadinho... - e faz uma minúscula pausa - ... pode me ajudar!
Sou um tanto refratário a esses discursos que apelam para meus bons sentimentos. Não gosto de que me fiquem lembrando que devo ser generoso, que devo sentir comiseração pela desgraça de meu semelhante, ou que sou um afortunado diante das desgraças alheias.

Fernando Pessoa não gostava de que o pegassem pelo braço, de que o tentassem conduzir. Eu não gosto de que me digam o que sentir, o que padecer. Já sou emotivo demais, para ser ainda mais espicaçado em meu sentimentalismo fácil.
Eu sei sentir isso, sem que me intimem a tal com discursos piegas, mesmo vindo de um semelhante meu que sofre. Não venham me incutir uma culpa que não me cabe individualmente. A solidariedade deve ser espontânea, sem pressões, que não as de foro íntimo do solidário. Ou passa a ser imposto, taxa, tributo.

Já tive de purgar uma dívida gigantesca, quando menino e jovem: o pecado original. Adão e Eva caíram em pecado lá no Éden, por volta da criação do mundo, e isto me era cobrado até então. Não os autorizei a pecarem, não fui conivente, nem cúmplice.  Não alcovitei ninguém, nem me associei para aquele crime. Assim como não homiziei criminosos em minha casa. E mesmo com o batismo, em que tal mancha seria apagada de minha história, arranjaram-me mais outra montanha de malfeitos, pecados, vis omissões, vilanias incontáveis, pusilanimidades vergonhosas.
Quase comi o pão que o Diabo amassou com tanta culpa.

Portanto não venha o cego do Campo de São Bento, numa plácida manhã do domingo de carnaval, tentar restaurar o edifício de ignomínias em que eu vivia. Também luto contra uma hipertensão do globo ocular, sempre assombrado pelo desespero de uma possível cegueira, e não fico aí importunando meus iguais, que procuram a paz em meio a uma natureza belamente preservada.
Mas é só ele se aproximar um pouco mais do canto onde estou, para que eu pingue qualquer trocadinho - que não me fará a mínima falta - em sua sacola, pois não quero levar para o túmulo a culpa de não me ter sensibilizado com o sofrimento deste desafortunado cego, com sua metralhadora giratória a distribuir culpas a torto e a direito pelas belas alamedas do Campo de São Bento, numa calma manhã de carnaval.

Se eu estivesse na esbórnia do Cordão do Boitatá, na Praça Quinze, lá do outro lado da baía, talvez esta culpa não me assaltasse de modo tão acintoso.
Ceguinho miserável!

7 de fevereiro de 2013

FAST FOOD DE DIREITA, FAST FOOD DE ESQUERDA

O filho de um vizinho, já rapaz feito, que conheço desde bebê, certa feita reclamou do próprio pai, intelectual de esquerda, que usava sua mochila escolar para veicular diversas campanhas do credo político lá dele. Reclamava por ter carregado adesivos do MST durante muito tempo, dentre outros que, periodicamente, o pai colava em seu apetrecho escolar.

Notei que ele falava isso como algo estranho à sua vida, à sua idade. Como se tivesse sido usado, à sua revelia, como outdoor ambulante para a propaganda ideológica do coroa.
E dei risadas disso.

Tempos depois, ao lanchar com meu filho, mais velho que o jovem vizinho, contei-lhe sobre a prática desse pai. E meu filho teve a audácia de me jogar na cara a interdição que impus a ele e à sua irmã de comerem sanduíches do McDonald’s.
Durante toda a sua infância e juventude, jamais os levei a comerem a fast food ianque. E justificava minha posição ideológico-gastronômica, para aquelas cabecinhas perplexas, de que não se poderia, em sã consciência, pagar royalties para comer um reles sanduíche com batata fritas, com a carne, o pão e a batata produzidos aqui.

Recordo-me de que lhes dizia que já pagávamos dólares demais por produtos de que não podíamos abrir mão no dia a dia, como cremes dentais, sabonetes, sabões em pó, remédios, etc.. Em algo tão simples como um lanche, deveríamos evitar isto.
Claro que minha posição era reflexo de tudo o que aprendi e vivi durante os tempos universitários. Na época, devido às circunstâncias por que passava o Brasil, mergulhado numa ditadura, desenvolvemos um horror a tudo que se referisse ao Grande Irmão do Norte, com seus tentáculos econômicos, culturais e políticos, a se espalharem por todo o mundo. Eu me sentia na obrigação de resistir e passar isso para meus filhos.

E íamos comer na lanchonete Cupim, empresa concorrente, com os pés fincados nas montanhas de Minas Gerais. Eles nunca reclamaram comigo. Pareciam mesmo entender as minhas razões nacionalistas e antiamericanas. E se lambuzavam com os molhos do Cupim.
Pois não é que no momento em que lanchávamos – ele, minha nora, meus netos, minha mulher e eu – no McDonald’s de Vitória, no início do último dezembro, ele trouxe à tona essa minha esquisitice, que contou com um sorriso um tanto irônico, como a repetir a mesma visão do meu jovem vizinho sobre o pai.

Os pais às vezes são mesmo esquisitos com suas crenças, suas ideologias.
E foi a primeira vez que comi um sanduba com a marca McDonald’s. Quero dizer-lhes que talvez tenha sido também a última. Pelo menos, vou tentar resistir.

Confesso que o do Cupim era bem melhor!

E também aproveito a oportunidade, para repetir aqui pichação que apareceu, há alguns anos, em paredes país afora: “Halloween é o cacete! Viva a cultura nacional!”.
Imagem em saladaverde.com.br.

5 de fevereiro de 2013

VOCÊ...

Gaturama ( em inea.rj.gov.br. Publicada em 4/10/2010. Fonte da foto: http://ednene.files.wordpress.com/2008/12/gaturamo.jpg)

Você tem um gaturama*. Trata do bichinho com todo o cuidado. Dá mamão para ele comer. Penso que os gaturamas gostem de mamão. Troca a mísera aguinha dele todo santo dia, porque ele se banha nela e faz uma sujeira danada. Retira o cocô – gaturama que come mamão faz mais cocô que o normal – do fundo da gaiola. Limpa tudo. Sopra as cascas da sementinha que lhe serve de ração (Havia-me esquecido de dizer que também há um coxinho pequenino pendurado nas palhetas, onde se colocam os grãozinhos minúsculos para o gaturama.) e que o passarinho espalha com seu bico por todo o lado. O gaturama é cantador, tem as cores mais bonitas que você já viu nessa espécie de pássaro. Saltita nos poleiros quase o dia inteiro, parando apenas para descansar, dormir e meditar. Você mesmo já ficou observando e notou que o gaturama parece meditar de vez em quando. Não sabe muito bem sobre o que pensa aquela cabecinha desmiolada. Quem saltita alegre assim o dia inteiro, mesmo estando engaiolado, não pode ter o juízo perfeito. O gaturama, quando canta dolentemente, parece estar com saudades de algo ou de alguém. Talvez de seu antigo ninho no meio do mato, de sua mãe ou de uma namorada perdida entre as folhagens das árvores. E o canto é quase de cortar o coração de tão bonito. Aí, no dia seguinte de manhã, você encontra o gaturama morto, sendo devorado por malditas formigas.

 oxoxoxoxo
Você tem apenas nove anos e já persegue sua coleguinha de escola por todos os lados durante o recreio. Durante as aulas, como não pode sentar-se ao seu lado, coloca-se estrategicamente num lugar de onde possa vê-la, enquanto a professora passa no quadro o problema de matemática, em que quer saber como dividir tantas maçãs por tantas crianças. Por você, daria todas as maçãs para a moreninha, de pelos nos braços, cabelos negros escorridos sobre o sorriso branco. Você não tem ouvidos para a matemática, nem para o português, nem para o diabo a quatro. Só fica pensando nela. A professora não nota, porque seus óculos são muito fortes e ela não percebe muita coisa além da terceira fileira. Dali para trás, tudo parece meio embaçado para ela. Aí você desenha corações no caderno em vez de maçãs. E fica com ar sonhador. Então planeja no recreio aproximar-se dela e perguntar se ela quer ir à sua casa chupar laranjas no pomar. Ela está na fila da merenda. Você nota que logo atrás dela está o Pedrinho, aquele seu amigo nem tanto amigo assim, porque já começou a mexer nos cabelos dela e, pior, ela parece estar gostando. Você tem ganas de sair da fila e ir até lá dar um empurrão nele, mas não tem coragem. É preciso ser pacífico e observar a ordem de chegada. A seguir você percebe que ela dá para o Pedrinho o sorriso mais bonito de todo o grupo escolar e que você sempre imaginou que seria somente seu. Então a merenda já não tem mais graça. E você sai da fila e vai jogar pedra nos passarinhos que frequentam as árvores do pátio da escola. Quem mandou que eles ficassem cantando as dores de infantis amores?
  oxoxoxoxo

Você comprou um carro usado daquele vizinho que vivia azarando sua irmã, porque ele, para parecer bonzinho, fez um preço camarada. Você até praticou um ato condenável: pediu que sua irmã jogasse charme para ele, enquanto entabulava a negociação. O vizinho nunca foi flor que se cheirasse. Ou seria apenas inveja pelo carro envenenado, que cantava pneus sempre que ele saía do bairro? Mas você não tinha dinheiro para comprar um carro novo e viu o anúncio colado no vidro. Quando a gente tem vinte e poucos anos, sem muito dinheiro, qualquer carro parece uma limusine, um bólido. E você já se imaginava também cantando pneu, queimando asfalto, impressionando a garota do 43, em frente à lan-house. Ela sempre tinha um maravilhoso ar de banho recém-tomado. E, nas vezes em que passou por você, recendia um gostoso perfume de sabonete de boa qualidade. Por ela, dispôs-se a pagar o preço que o cara pedia, depois que sua irmã o deixasse mais indefeso que lutador nocauteado. Mas você não conhece carro – e muito menos o cara – e nem sabe dirigir direito. Pagou a entrada e combinou de, durante outros seis meses, completar o restante do preço. Você nem bem colocou gasolina no carango, o bicho empacou antes de queimar asfalto, e foi parar no mecânico. Até arame havia no motor do carro, engatilhando alguma coisa que você desconhece. E não adiantou reclamar com ele. o cara já era namorado firme de sua irmã, que chamou você de mané, que não sabe nem comprar um carro, bem feito para deixar de ser bobo. E você ainda tinha de ver sua irmã nas mãos miseráveis daquele cara. Oh, dor!
 oxoxoxoxo
Você, toda manhã, diz para sua mãe, após acordar tarde, que sairá à rua para procurar emprego. Sua mãe, como todas as demais mães do planeta, acredita neste caô. E você toma um banho, pede um dinheirinho a ela – inclusive para almoçar no centro da cidade, porque, talvez, perca muito tempo nessa procura – e sai de casa tentando assobiar uma canção do Rappa inassobiável – você não conhece a palavra, mas a criou mentalmente –, parecendo decido a conquistar o mundo. Sua mãe ainda vê pela janela você dobrar a esquina e pede à santa de devoção – Santa Terezinha do Menino Jesus – que o oriente. Você chega ao centro, ali pela Praça Tiradentes, e vai direto para o salão de sinuca, que fica no segundo andar de um prédio histórico. Só gosta de jogar a dinheiro. Bem que não aposte muito, tudo assim minguado. E consegue ganhar de alguns patos, porque se finge de bobo e faz negaças com o taco, como se nem o soubesse segurar. Até que um dia você encontra um cara tipo Carne-Seca (Lembra dele?) e se dá tão mal e toma uma coça tão grande e se sente tão desnorteado, que aceita o emprego de auxiliar de balcão naquela lanchonete de frente para a praça que, alguns dias depois, explode quando você chegava para o segundo dia de trabalho. À noite, em casa, ao ver o noticiário, ainda diz para a mãe que poderia estar morto numa hora dessas, viu mamãe? Esse negócio de trabalho é muito perigoso, mãezinha! Melhor jogar sinuca, viu! E a pobre mulher ainda acredita em você e lhe dá conselhos e mais algum dinheirinho, para que vá procurar outro emprego, desta vez em outra praça diferente. Talvez no Lido, diante do mar, no meio daquele mundão de biquínis minúsculos, pernas roliças e bundas ensolaradas, que deixam qualquer um desnorteado. Eh, vida boa!
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* Forma de uso preferencial da palavra em minha terra natal. A forma dicionarizada é gaturamo.

3 de fevereiro de 2013

O SUICIDA

Tudo muito antigo.
O suicida bebeu um copo de cicuta e esperou ouvir a voz de Sócrates a chamá-lo para o convívio das sombras.
Este narrador não sabe onde o suicida encontrou a cicuta. Talvez numa antiga farmácia de manipulação de Santa Teresa, bairro antigo do Rio de Janeiro, que deve ter alguma farmácia de manipulação antiga, com venenos antigos do tempo dos gregos e dos romanos antigos. Tudo bem antigamente, como seu bigode de pontinhas viradas e sua bengala de ponteira de borracha.
O suicida começou a sentir uma sensação dolorosa no estômago, que logo tomou conta dos intestinos, e acabou por tirar-lhe a consciência.
Aí, no exato momento em que passava da condição de moribundo à de morto, já não sabia mais se ouvia a voz de Sócrates, de Platão ou de Aristóteles. De Valdir Amaral ou de Oduvaldo Cozzi. Mas sentiu-se ferrado, fodido mesmo (Para ser este narrador mais fiel ao sentimento do suicida.).
O suicida que toma cicuta pensa em estar fazendo um suicídio histórico, com aporte filosófico, mas no fim torna-se um cadáver como qualquer outro, talvez apenas um pouco mais composto do que é atropelado pelo trem da Central. Mas, enfim, também está morto.
E, estando já morto, em poucos segundos, já não ouve mais vozes, já não tem mais ideias, já não percebe absolutamente nada. Morreu, desencarnou, lá o que seja, e virou um pacote flácido, que logo em seguida atingiria o tal rigor mortis, obrigando a que alguém o limpe, o vista, o penteie, rapidamente.
Mas pode ocorrer que alguém perceba seu ato tresloucado e lhe dê um tapa na mão que leva o copo à boca e lhe grite:
- Alfredo, que loucura é essa, Alfredo?
E o copo caia pelo chão, espatifando-se, espalhando a água envenenada no piso antigo de ladrilho hidráulico, que ele adquirira numa loja da Rua Frei Caneca. Talvez não houvesse tempo de se evitar que seu gato de estimação, Alphonsus – assim mesmo grafado, em homenagem ao poeta Alphonsus de Guimaraens – lambesse a água mortal.
E, entre um suicídio histórico e um assassinato felino, ocorresse justamente o segundo, gerando um grande remorso para Alfredo, que, daí em diante, passaria a pensar fixamente em tentar um novo suicídio que não se frustrasse.
Por isso é que cogitou voltar até a farmácia antiga de Santa Teresa para comprar um novo vidrinho de cicuta. O farmacêutico, membro de uma seita fundamentalista niilista-pessimista, apoiava sempre os suicidas que o procuravam, como se estivesse dando materialidade a seus ideais filosóficos.
Alfredo morava num antigo apartamento apertado da Rua do Catete, próximo ao antigo palácio sede da República, onde, décadas atrás, certo presidente se deu um tiro no peito, como consta da história oficial.
Mas, como não apareceu o tal vizinho que lhe desse o tapa na mão, acabou ingerindo o copo de cicuta e em pouco tempo já não ouvia Sócrates, nem Cascatinha e Inhana.
E seu gato Alphonsus passou a miar desesperadamente pelo pequeno apartamento, até que o vizinho, incomodado, foi até lá para reclamar e encontrou o suicida deitado em seu antigo canapé, adquirido num antiquário da Rua do Lavradio, ao lado de um bilhete lavrado em letra de talhe caprichado, mas também antigo, que explicava seu gesto extremo: a modernidade o estava deixando louco.
Tudo muito antigo.

Papel de Parede - Gato Preto em uma Noite Assustadora
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