23 de setembro de 2020

UMA CARTA

Há cerca de quatorze anos, escrevi uma carta para Gabriela, minha neta, tão logo ela retornou à sua casa, após passar um fim de semana conosco. Hoje encontrei essa carta num pen-drive com alguns documentos e fotos antigas, da mesma época. Aproveitei, então, que Gabi já sabe ler há muitos bons anos e pode muito bem entender o que passava pela cabeça do avô, diante do encantamento por sua primeira neta, para a enviar por Whatsapp.

Aí está a carta.

"Minha linda netinha Gabriela,

 Estou escrevendo esta carta diretamente do ano de 2006, no dia 29 de maio, uma segunda-feira, depois de você passar sábado e domingo em Niterói, conosco, iluminando nossas vidas e preenchendo cada cantinho da casa de felicidade.

Você tem apenas um ano e um mês. Já anda, já fala as primeiras palavras. Vou enumerá-las para que você saiba, tentando o mais possível reproduzir o modo como você as produz: “papá”, “mãmã”, “bobô”, “bobó”, “inda” às vezes “dinda” (para madrinha), “lá” (para Flávio, com um movimento da língua que pressupõe que antes do /l/ vem alguma coisa ainda não bem dita); “papato”; “cocó”, “dedera”; “papá” (para comida); “papo” (sapo); “Didite” (Vó Judith); “Zezé” (bem aberto), dentre outras que não me ocorrem.

Nós (eu, sua vó Jane, sua dinda Estefânia) achamos você muito esperta e precoce, porque consegue falar tudo isso e entender quase tudo que falamos com você.

Além disso, você é uma garotinha muito obediente. Atende às proibições de alguma atitude que possa levá-la a se ferir.

Tem vivo interesse em alguns vídeos de histórias infantis (Branca de Neve, Cinderela) e de músicas (A palavra cantada, por exemplo). Gosta de ver os intervalos comerciais do canal Discovery Kids, mas não tem muita atenção para as historinhas que são apresentadas.

Você é uma menina muito comunicativa, esperta, alegre, de um bom humor contagiante, embora seja cheia de vontades e, às vezes, brigue por isso.

Sabemos que, na Casa de Rui Barbosa, você joga beijo para os porteiros e os seguranças, e todos lá gostam muito de você.

Sua mãe e seu pai sempre a trazem muito elegante e bonita, cheia de apetrechos que os nenéns usam em sua bagagem.

Não há como conviver com você sem se apaixonar.

Boa parte do que nós somos é herança de nossos pais. Outra nós trazemos naturalmente. Uma outra adquirimos pela vida afora.

Você traz consigo o bom humor, a alegria e a felicidade contagiante. Isso você pode cultivar durante toda a sua vida, pois assim viverá melhor.

De seus pais, você adquire, além de traços físicos e de personalidade, a educação, o trato com as pessoas, o senso de responsabilidade, a noção de ética, o interesse por diversos assuntos (música, cinema, esporte, por exemplo).

A vida vai lhe mostrar os embates, os caminhos, as opções, o outro, que nunca deve ser encarado como o oposto, mas apenas como o diferente de você. Não temos necessidade de lutar contra o nosso semelhante, mas fazer dele nosso aliado, para que os embates, os caminhos e as opções sejam os melhores, os mais promissores.

A escolaridade também vem de fora. E é preciso que você aproveite o máximo possível de sua passagem pela escola. Tire dela o máximo possível, para que você possa também retribuir com o melhor que puder.

Um beijo do vovô

Saint-Clair"

Imagem obtida na Internet.


 


9 de setembro de 2020

PROBLEMAS DA QUARENTENA

Definitivamente esta quarentena não está fazendo bem a ninguém.

Marido e mulher, cada um sentado em uma ponta do sofá, acompanham o telejornal da noite. Ela, por dizer que tem atenção múltipla, essa coisa que só mulher garante que tem, também futuca suas redes sociais ao celular, enquanto afirma que também acompanha o noticiário. O homem jamais saberá se é verdade, uma vez que morre de pavor de que isso seja realmente possível: um ser humano ser capaz de prestar atenção a duas coisas distintas ao mesmo tempo.

Num dos intervalos, o marido se levanta e começa a sair da sala. A mulher, de imediato, lhe pergunta:

- Onde está indo?

Aqui é preciso observar que, antes da pandemia, tal pergunta só ocorria no instante em que o marido sorrateiramente desferrolhava a porta da casa, na intenção de ir ao botequim beber umas e outras e confraternizar com qualquer um que estivesse com o umbigo encostado ao balcão – o Botequim Chalé está logo ali embaixo, com suas torneiras de chope a convidar quem se aproxima. Durante a pandemia, contudo, a saída de qualquer ambiente, por mais doméstico que seja, passa a ser suspeita, passível de inquirição pelos órgãos competentes, quer dizer, a mulher. Pois é o que está ocorrendo neste exato instante em que o narrador flagra a cena.

- Vou ao banheiro. – responde ele com certa má vontade.

- Fazer o quê? – volta a inquiridora, a levar adiante o inquérito administrativo recém-instaurado no ambiente sacrossanto do lar, submetido às estritas leis da quarentena.

- Prefiro não responder! – diz ele, já aborrecido, valendo-se do dispositivo constitucional de que o investigado não tem a obrigação de produzir provas que possam incriminá-lo.

E vai em direção ao banheiro.

Fica lá o tempo necessário para atender aos reclamos da sua biologia já um pouco desgastada pelo tempo e volta com a mesma pouca disposição para conversa com que saiu ainda há pouco.

A mulher continua a demonstrar, com toda a segurança, que vê o noticiário, futuca as redes sociais e ainda tem tempo para cronometrar a ida do marido ao banheiro.

- Achei que você demorou. O que esteve fazendo?

O marido repete a mesma justificativa anterior: não vai produzir provas contra si. Tem garantias da constituição para assim proceder. É um cidadão livre e se reserva o direito de só declarar algo diante de autoridade judicial concursada, empossada e paramentada para a ocasião. Se possível com aquela cabeleira branca de juízes ingleses.

- É que eu tenho notado que você tem ido ao banheiro com muita frequência e não estou gostando disso. Você deve procurar um médico para saber o que anda acontecendo com você. Pode ser problema de rim. Você tem urinado demais ultimamente.

- Problema de rim é quando não urina. Se estou urinando é porque o rim funciona, né não?

- Ah! Mas assim também já acho um pouco exagerado. Tudo tem de ter uma medida. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, não é assim que se diz? E também não vejo você bebendo água, para precisar de ir tanto ao banheiro. Aliás você não tem tomado água. Você pode estar se desidratando aos poucos, sem perceber.

O marido dá meia volta, para fugir à preocupação da mulher. Em vão. Agora como promotora começa a levantar indícios e sinais pretéritos.

- Se lembra do seu Ricardo, lá do nosso antigo prédio da Pereira da Silva?

O marido se lembra bem, evidentemente, pois ainda não é incomodado pelo alemão odioso. Antes de virem para seu endereço atual, moravam no apartamento de frente para o do senhor Ricardo e dona Mercedes, já idosos à época. Seu Ricardo era um vizinho de boa conversa, simpático. Tinha sido remador do Clube de Regatas, quando mais novo, e até pouco tempo mantivera o hábito de sair pela Baía de Guanabara molhando o casco de seu barco, um single skif branco, impulsionado por grandes remos apoiados às laterais.

No entanto, começara com um comportamento estranho, que foi denunciado à filha pelo proprietário do bar no térreo do edifício, que ficou preocupado com o que vira. É que seu Ricardo, com frequência usava o banheiro do bar, e José, o dono do estabelecimento, notou que, após o uso, o vaso ficava manchado de sangue. Depois disso seu Ricardo não durou muito. Ele, agindo assim, escondia da esposa e da filha seu problema, o que atrasou o tratamento de um fulminante câncer nos rins.

- Claro que eu sei! – respondeu ele já um tanto irritado – Mas eu não estou com o problema do seu Ricardo. Apenas tenho ido com mais frequência ao banheiro, porque já estou mais velho. E ainda fico feliz por meu rim estar funcionando bem. O problema é se ele não funcionar.

- Não sei por que homem se recusa a ir a médico, se tratar, prevenir qualquer tipo de doença. Nós mulheres somos precavidas: ao primeiro sinal de que alguma coisa não anda bem, logo corremos ao médico. Por isso é que morremos sempre depois de vocês. Você sabe a quantidade de viúva que há por aí. Lembra do micro-ônibus que nos levava ao teatro no Rio como era cheio de mulheres sozinhas, todas viúvas?

É claro que ele se lembrava. Num micro-ônibus lotado, era só ele de homem. Se sentia como um dois de paus no meio daquele bando de mulheres tagarelas, sem seus maridos, que já tinham ido para a cidade dos pés juntos. E ele ali, sozinho. Por isso é que talvez tivesse tanta segurança de que aquelas idas à miúde ao banheiro não fossem sinal de problemas.

- Lembra que a Marlene, aquela sua colega aposentada, contou como o marido dela também morreu de uma hora para outra, sem que fosse por problema de coração? Foi uma coisa assim, sem importância para ele, que acabou por levá-lo ao cemitério.

- Mulher, vira essa boca pra lá! Parece que está me agourando! Está querendo também ficar viúva, para ir ao teatro num micro-ônibus só de mulheres?

- Deus me livre! Morro de medo de ficar sozinha! Não quero trocar nossa cama de casal, por uma cama de viúva! Você não vai me fazer a desfeita de morrer e me deixar aqui.

A lógica da mulher escapa um pouco à compreensão masculina. Então o marido tenta contra-argumentar:

- Então, se eu não posso morrer antes, você é que terá de morrer, pela lógica. Aí eu é que ficarei viúvo. Mas não irei ao teatro naquele micro-ônibus. Pode ter certeza!

E solta uma gargalhada.

- Mas não vai mesmo! E eu não vou morrer, e deixar você aí soltinho, correndo atrás de sirigaita nenhuma. Está pensando que eu sou boba?

E continua a mulher a futucar seu celular, ao tempo em que também assiste ao telejornal e tece considerações acerca da vida e da saúde em geral e do seu marido em particular.

A quarentena está apenas pela metade, sem perspectivas de acabar. Ainda haverá muita oportunidade para que tal assunto volte à baila, entre na ordem do dia, esteja sobre a mesa de negociação. Nunca se sabe até onde podem chegar os problemas de fundo psicológico que esse diabo de vírus pode produzir. Esse casal é apenas e tão somente uma de suas vítimas atualmente.

E este narrador se exime de qualquer responsabilidade no desfecho da história.


AG] Excursão para Caxias no fim de semana do dia dos pais. - Clicsul.net

Imagem colhida na internet.