20 de março de 2016

MARCHA LENTA


No devagar, quase parando, tinha construído toda a sua vida. Nascera de dez meses, com a ameaça médica de uma ação de despejo na forma de cesariana. Menino, os dentes lhe custaram a brotar. Aprendeu a andar depois de um ano. A fala só lhe veio aos quatro, e ainda hoje fala de modo tão manso, que dá sono no ouvinte. Ficou adolescente às portas da idade adulta. Embora com trinta anos agora, com cara de garoto. Talvez um privilégio.

Essa vagareza toda reflete-se em sua vida por completo, o que justifica os apelidos de Moleza, Marcha Lenta, Pressão Baixa, Freio de Mão Puxado.

Ainda nem pensa em casar-se, e filhos são preocupação que não lhe ocorre. Dia desses, pela primeira vez, aproximou-se de uma moça com segundas e terceiras intenções. Demorou tanto a entabular conversa, que o ônibus chegou e ela foi embora, sem saber o desfecho da cantilena. Qualquer dia, voltará ao assunto, com toda a calma do mundo.

Por ironia, trabalha nos Correios, no setor de correspondência expressa, tendo já passado pelo de entrega rápida. Até sua promoção é mais demorada que a dos colegas. Principalmente se for por tempo de serviço: o seu é mais dilatado.

Para comer ovos com arroz, leva o mesmo tempo que uma pessoa normal para comer peixe espinhento.

Sua única e exclusiva vantagem sobre os demais mortais é também uma faca de dois gumes: quando consegue chegar ao orgasmo, nele permanece por quatro minutos. Em compensação, tem de ser socorrido com algodão com amônia e oxigênio. Ao voltar a si, sorriso amarelo, diz coisas tipo o apressado come cru, devagar se vai ao longe, de grão em grão a galinha enche o papo, a pressa é inimiga da perfeição.

Ao morrer, será seguramente o último a chegar ao enterro, os amigos já voltando, o seu carrinho funerário dolentemente, vagarosamente, pacientemente, pachorrentamente subindo, subindo, subindo o morrinho do cemitério sem a mínima pressa.

C. Portinari, "Enterro", 1959, Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco.


7 de março de 2016

OS GÊMEOS


Eram cerca de cinco e meia da manhã de uma segunda-feira, quando cheguei à estação rodoviária de Itapuranga, a fim de pegar o primeiro ônibus para Goiânia, distante cerca de duzentos e poucos quilômetros a sul. Ainda estava escuro, mas já havia razoável movimento de passageiros. Comprei a passagem e fui tomar café num bar defronte, já aberto àquela hora. Depois voltei e me sentei num banco à espera de embarcar. À minha frente, em outro banco, foi sentar-se uma família, formada por jovem casal de pais e um casal de filhos, de cerca de oito a dez anos. Criancas moreninhas, bonitas, do mesmo tamanho e bastante parecidas. Logo a seguir, sentou-se ao meu lado, um goiano com seu sotaque típico do interior.Também moreno, magro, cabelos escuros, vestido com modéstia, mas dignamente, aparentava seus trinta e tantos anos. Depois de algum tempo em silêncio, virou-se para mim e falou baixinho, referindo-se às crianças:
- Será que são geminhos?
À minha resposta negativa, emendou a conversa:
- Mas parece, né? Acho que são gêmeos mesmo. Ser gêmeo é um problena sério. Sempre acaba com alguma desgraça. Eu acho que aqueles dois são gêmeos. Um é igualinho ao outro. Quando eu vejo gêmeos fico preocupado, porque nunca dá certo. Lá perto da propriedade do meu pai, há uns tempos, nasceram duas meninas gêmeas. Elas foram crescendo e, quando uma foi casar, caiu da pinguela e morreu afogada no ribeirão. Nem chegou a casar, coitada! Dizem que era porque era gêmea. Sempre vem uma desgraça com um deles. Nunca dá certo esse negócio de ser gêmeo.
E ele alongou a conversa com outras histórias sobre outros tantos gêmeos, sempre com uma desgraça com um deles, quando não com os dois.
Daí a pouco, a família resolve também ir ao bar, naturalmente para comer alguma coisa, antes de pegar viagem. Os quatro atravessam a rua, chegam à padaria, e o caboclo ao meu lado continua com suas considerações acerca deste fenômeno agourento.
De repente, vira-se novamente para mim e diz resoluto:
- Não aguento! Se não souber se eles são gêmeos, não vou ficar sossegado!
E sai a passo apressado em direção à padaria. Vejo que lá chega, rodeia os pais das crianças, que estão iniciando o seu lanche matinal. Percebo que ele se dirige ao homem, diz alguma coisa, ouve a resposta e volta célere para o banco em que estou.
- Não falei, não falei? São gêmeos! Eu sabia! Vai acontecer uma desgraça na vida de um deles. Que dó!
Meu ônibus encostou na plataforma, embarquei e, de dentro, fiquei observando aquele caboclo preocupado com o destino trágico previamente anunciado para aquelas crianças gêmeas. Um dia, ele cria piamente nisso, iria ocorrer uma desgraça com algum deles. Senão com os dois.
Não sei se ele teve um bom dia, com tanta preocupação. Daí umas três-quatro horas, eu estava chegando a Goiânia, onde tomaria o avião de regresso ao Rio de Janeiro, com mais essa história no meu repertório de crendices do povo do interior.

Os gêmeos, por Os Gêmeos (em quasedelicadaa.blogspot.com).