17 de fevereiro de 2019

A LOURA LUDOMANÍACA


Jane e eu tomamos as poltronas 17B e 17C do Airbus 318 da Avianca de volta ao Rio de Janeiro, saindo de São Paulo. Um pouco depois que nos sentamos, chegou a companheira de viagem do assento A da mesma fileira. De imediato, vendo a tela diante de cada poltrona, exclamou feliz:
- Oba! Tem joguinho.
Devo dizer que ela não é jovenzinha. Deve ter por volta de seus quarenta e lá vai fumaça, cabelos louros um tanto desgrenhados, pele queimada de sol e grandes óculos de lentes corretivas.
Os avisos costumeiros acabaram, e a tela ficou disponível para os passageiros. Ela logo tirou o controle escamoteável de seu habitáculo, selecionou alguma coisa e passou a digitar o teclado. E não aceitou o lanche e a água oferecidos, tenho a impressão, para não interromper seu lazer fortuito.
Confesso que durante os quarenta e poucos minutos de voo tentei cochilar e não prestei muita atenção ao que ela e os demais passageiros faziam. Só fiquei atento, quando a aeromoça baixinha, com porte de cão farejador, vinha conferindo, fileira por fileira, cada um de nós, a fim de ver se tínhamos atendido o comandante, que anunciara o pouso dentro de poucos minutos no Santos Dumont. Ela, então, pediu à colega da cadeira em frente que voltasse o assento para a posição vertical e à nossa vizinha da poltrona A que desconectasse a tomada USB de seu celular e voltasse com o controle da tela para o habitáculo.
A loura de cabelos desgrenhados fez menção de voltar com o controle ao seu lugar, enquanto a comissária de bordo a olhava, mas refugou o gesto, assim que ela seguiu adiante em sua vigília.
Fiquei cabreiro com a loura, a imaginar o avião se precipitando ao solo, apenas porque a viciada não largou nem um instante aquele controle. Será que ela não tem consciência da desgraceira que poderia causar, por causa de um joguinho de voo?
Mas ela continuou a jogar, até que a aeronave pousasse e Jane e eu nos levantássemos e fôssemos embora.
Já no saguão do aeroporto, à espera do táxi que nos traria de volta a casa, vimos a vizinha de viagem, a loura oxigenada, de cabelos desgrenhados e ludomaníaca, passando em passos comedidos e mexendo freneticamente no celular. Jane ainda observou:
- Acho que continua jogando.

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5 de fevereiro de 2019

GRACINHA E GUMERVAL


Gracinha herdou da mãe a alvura da pele, as sardas de ferrugem do rosto, os cabelos ruivos encaracolados. Do pai, Gracinha herdaria fazenda de caprichada extensão, com gado subindo e descendo morros, pastando para engorda e produzindo carroças de queijo curado. Por isso era considerada a moça mais interessante da vila. Sua beleza tinha, assim, o brilho de sua herança.
Morava numa vasta casa de várias portas e janelas, com eira, beira e algumas outras besteiras de que os demais habitantes da vila não desfrutavam. Por exemplo, geladeira, que em sua casa, no tempo em que não havia luz elétrica, era um luxo movido a querosene. Só ela e os pais – fora as visitas de prestígio – tomavam água geladinha. Até mesmo o velho guarda-comida, peça mobiliária presente na casa de quase todos, na dela era coisa morta e enterrada de alguns verões.
Contudo Gracinha não fazia conta de nada disso, para que se considerasse o melhor partido dentre todas as moças do lugar, por causa da filha do padeiro, Margarida, e sua, dela, cor de jambo, seu cabelo negro e liso, a chegar até as duplas covinhas da anca, só vislumbradas quando ela tomava banho no açude do valão Liberdade. Mais o jeito brejeiro de andar, a cruzar as ruas e entortar as cabeças dos homens pelas esquinas. Coisa de deixá-la com profunda e silenciosa inveja. Inveja ressentida de moça de maiores posses materiais, porém menos riqueza física. Sabia que em beleza não podia concorrer com a rival, apesar de ser ela a preferida dos rapazes do lugar, os quais, no entanto, achava bobos e mocorongos.
Por essa época, a vila não oferecia futuro promissor a nenhum dos rapazes que circulavam na pracinha nos finais de semana à procura de uma namorada. Para isso, havia, então, um ritual marcado, contra o qual não se lutava: as moças passeavam no sentido horário; os rapazes, no sentido anti-horário, de modo que era possível, a cada volta completa pela praça, flertar – verbo da época – a pretendida duas vezes, em trezentos e sessenta graus.
Até que, num sábado à tardinha, surgiu moço de blusão de couro, capacete de couro, óculos protetores, botas compridas até quase o joelho, roncando o motor poderoso de uma brilhante motocicleta preta, guidão alto, assento baixo com o banco do carona em couro acolchoado, terminando em franjas.
O estranho chegou à vila com a missão de conquistar a futura herança de Gracinha, não importassem os sacrifícios que teria de fazer. Soubera, por fonte amiga, que a moça, embora não fosse feia, também bonita não era, mas que o futuro estaria garantido sobre os alqueires, as vacas e a produção leiteira. E ele sempre fora um aproveitador de ocasiões.
Mesmo a motocicleta reluzente havia sido o último presente que recebera de viúva rica, a quem cortejava, antes que os filhos dela interferissem no caso e dessem uma carreira nele, a poder de um parente de maus bofes lotado na Invernada de Olaria, dos velhos tempos da Invernada de Olaria de tão sombrias lembranças.
Quando a moto soltou o último suspiro carbônico na pracinha da vila, o coração da menina parece ter sido abduzido, e seus olhos se fixaram naquela figura desconhecida. Pode-se dizer que foi amor à primeira vista, bem de acordo com o espírito romântico dela.
O estranho recém-chegado atendia pelo nome de Gumerval dos Prazeres, um criado ao dispor da moça, com rapapés e tudo mais que pudesse impressionar.
Do assalto ao coração de Gracinha até o primeiro cafezinho na sala da casa vasta de eira, beira e outras besteiras, não decorreram vinte e quatro horas, prazo mais do que suficiente para o espertalhão se promover, dilatar falsamente suas posses e pretensões e afirmar sua admiração antiga por Gracinha, apenas pelas informações que recebia de conhecidos que moravam na cidade grande.
Ocorrera que, numa noite de lua cheia, meses atrás, com a moto estacionada no Joá, teve a certeza de que aquela moça, lá naquela vilazinha perdida no interior do estado, era a sua alma gêmea. Ele também um romântico incorrigível, como confessou, aproveitando para declamar alguns versos de ocasião, que tinha memorizado desde os bancos escolares.
Foi por isso que Gracinha não resistiu.
Quem resistiu, no entanto, foi o pai da moça e futuro e pretendido sogro de Gumerval. Tendo ele relações fortes com o delegado de polícia de Bom Jesus do Itabapoana, solicitou que se levantasse a ficha pregressa do pretendente, a fim de que não fosse assaltado via coração da filha.
Passados cerca de trinta dias, durante os quais Gumerval passeou de motocicleta para todos os lados, inclusive adentrando ainda mais na intimidade da casa, chegou a informação de que o tipo era um mandrião conhecido nas imediações da 28 de Setembro, em Vila Isabel, na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, useiro e vezeiro em expedientes condenáveis, através dos quais mantinha uma vida mansa de folgados colarinhos.
O pretenso futuro sogro, certa noite, no entanto, convidou Gumerval a tomar uma cerveja no bar do Chambão, a fim de que se entendessem melhor acerca das pretensões do forasteiro. Armou-se da garrucha cano duplo, cabo de madeira maciça, cuspideira de fogo em molde de canhão dos tempos de Dom João VI, levou dois homens de sua propriedade para ficarem sentados a uma mesa ao lado, de sobreaviso, pediu uma cerveja e foi direto ao assunto, respaldado pela arma, que colocou ao lado do copo.
- Levantei sua ficha completa na praça de Vila Isabel, com a auxílio de meu amigo delegado, e vim propor um negócio bom pra você: pegue sua moto e escafeda-se daqui, na santa paz do Senhor. Nem vai falar com Gracinha. Isso depois eu resolvo com ela. Está vendo aqueles dois armários dobrados ali na mesa ao lado tomando cerveja? Podem melhorar meus argumentos, no caso de você não ter entendido bem.
Gumerval, lívido como uma folha de papel, levantou-se sem uma palavra, fez pequena reverência com a cabeça, saiu de passo hesitante pela porta do meio do bar do Chambão, ligou sua potente moto preta e sumiu no oco do mundo.
Segundo o sogro, que passou a contar a história para seus amigos mais chegados, Gumerval tinha ido para o caixa-prego, para onde o Judas perdeu as botas, para o cu do conde.



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