22 de fevereiro de 2022

DE PUERTO SUÁREZ A COCHABAMBA

Amigo leitor, transcrevo aqui, trecho do meu último livro, Viagem por nuestra América (p, 32/34), publicado pelo Clube de Autores, em que rememoro as peripécias da viagem empreendida pelo Cone Sul por mim e Jane,  mais os amigos Eduardo Campos, Rogério Barbosa e Mara. Mal começara o ano de 1976. Neste trecho da viagem, Rogério não foi conosco. Preferiu o Trem da Morte.


DE PUERTO SUÁREZ A COCHABAMBA [10/1/1976] 

        Com as quatro passagens em mãos, aguardávamos a chegada da máquina voadora a Puerto Suárez. À época, aquilo não era propriamente um aeroporto, mas um campo de aviação, como dizíamos na minha terrinha. Constituía um descampado, uma clareira no meio de uma pequena floresta ao redor. Percebia-se que a pista de pouso tinha sido aberta no meio da mata. Já o saguão do aeroporto era uma pequena casa à margem do campo, em que cabiam menos pessoas do que no avião. 

        E estamos lá fora com expectativa de novatos. Mara, Duda, Jane, eu e mais alguns bolivianos destemidos. De repente surge no ar, por detrás da florestazinha, uma aeronave que parecia bater asas. Duda expressou em língua pátria sua preocupação em viajar naquilo. Não que eu fosse destemido ao pé da letra – meu maior medo adulto sempre foi ficar sem o salário no fim do mês – e não desconfiasse da aeronave, mas fingi certa fleuma britânica que não tinha, porque a ocasião assim o exigia. O boliviano, afeito à língua da fronteira, entendeu a preocupação do meu amigo e se apressou em informar num portunhol bastante inteligível: 

- Es el avión que estadisticamente menos cai en el mundo.

        Era um DHC-5 Buffalo, de fabricação canadense, do Loyd Aereo Boliviano. E aquilo já foi um conforto e tanto. Ora, se foi! Tempos depois, já em terras brasileiras, pude constatar a veracidade da informação: o avião Buffalo gostava de não cair. 

        Entramos no pássaro de alumínio, de espaço bem acanhado, e procuramos por assentos vazios. Ele já vinha com alguns passageiros. Jane e eu nos sentamos mais à frente, à esquerda, Duda e Mara se sentaram nas penúltimas poltronas do lado direito. O comissário de bordo, um homem alto e corpulento, de bigode em forma de dormente de linha férrea, andava arqueado, por não caber em pé no minguado salão da aeronave, e distribuía entre os passageiros balas duras de fruta, após o que foi se acomodar na última poltrona atrás do Duda e da Mara. O gesto de nos oferecer balas parecia um consolo a se dar a crianças embirradas, mas achamos simpático. Se caíssemos, teríamos o paladar adocicado da bala na boca. 

        O avião taxiou no gramado da pista, bateu asas fortemente e subiu aos céus com uma habilidade impensável. Talvez melhor do que ele só um condor dos Andes. Em duas horas estávamos chegando a Santa Cruz de La Sierra e, pelo horário do pouso, ainda antes do Rogério, que embarcara no Trem da Morte no dia anterior. O boliviano que nos informara sobre a segurança da máquina ainda veio nos dizer algo como “não disse?”, depois de estarmos todos seguros em terra firme.


                                                                                O mal-encarado Buffalo DHC-5, em foto colhida na Internet.


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Para adquirir o livro, impresso ou virtual, é só ir à página da editora: https://clubedeautores.com.br/livro/viagem-por-nuestra-america


16 de fevereiro de 2022

O GOSTO DA FRASE

Gosto da frase longa 
Tão bem-estruturada 
Que não se desmorona 
A qualquer argumento. 

Gosto da frase lenta 
Que segue sonolenta 
E sobrevive incólume 
A todo contratempo. 

Gosto da frase clara 
De módicas metáforas 
Que diz diretamente 
Seu próprio pensamento. 

Gosto da frase antiga 
Ungida pelo tempo 
Em que se funda ainda 
A portuguesa língua.

Primeira página d'Os Lusíada, de Luís de Camões (em infoescola.com).