30 de março de 2013

ATÉ QUE... (soneto amórfico antitético)


Até que a morte nos conforte
Até que a vida nos deprima
Até que a saúde nos mate
Até que a tristeza anime
Até que a luz enfim nos cegue
Que a liberdade nos reprima
E a solidão reúna todos
Em cada canto desta vida
Até que a doença nos cure
E a cegueira nos ilumine
E a ignorância esclareça
Até que a paz nos desatine
Seguiremos cheios de enganos
Porque somos todos humanos


Georges Paul François Laurent Laugée (1853-1937), La journée est finie (em peintres-et-sculpteurs.com).

28 de março de 2013

UMA CERVEJA PARA LEMBRAR

(Para meu tio João de Assis Mello.)
Quando vim ao Rio de Janeiro pela primeira vez, em janeiro de 1962, fiquei hospedado na casa de meu tio João, irmão de meu pai, que era sócio de uma farmácia na Rua da Passagem, em Botafogo. Sua moradia ocupava a parte de trás do imóvel, à qual se tinha acesso por um portão lateral.
Cheguei bem cedo. Pedro Nunes, amigo da família com quem viera, levou-me até lá e me deixou diante do portão, com a recomendação de que esperasse um pouco, antes de tocar a campainha.

O Rio de Janeiro era uma cidade amigável e pacata, capaz de aceitar um adolescente interiorano, com uma pequena mala, parado numa calçada àquela hora, sem que ninguém o molestasse.
Depois de uns dois dias de convivência, observei que meu tio não costumava beber água. Aliás, nos dias que passei em sua casa e se não me falha a memória, não o vi tomando um copo d’água sequer. E você, leitor incrédulo, há de me perguntar como então ele se hidratava. E eu lhes respondo: com cerveja. Sobretudo com cerveja preta, a de sua predileção.

Com frequência, durante minha estada, ele me pedia para ir até o bar mais próximo comprar “uma preta barriguda”. E eu voltava de lá com uma garrafa de Black Princess ou de Triumpho, que ele tomava com grande prazer. E não havia refeição que não fosse regada a cerveja.
E você, leitor mais que incrédulo, irá perguntar o que foi feito desse meu tio, já que deve saber que meu querido pai, seu irmão, faleceu em janeiro passado. Pois eu lhe digo que ainda está entre nós, já dobrados os noventa anos, lá com as mazelas próprias da idade, mas sem ter pagado preço exagerado por esse seu hábito que, até onde eu saiba, durou até pouco tempo atrás.

Por isso é que sempre tive em minha memória mais profunda a imagem de meu tio, sentado ao lado de seu copo e da garrafa do líquido que sempre amou.
Tenho comigo que tais cervejas deixaram de ser fabricadas durante algum tempo. A Black Princess, no entanto, voltou ao mercado através do Grupo Petrópolis, com nova embalagem e, tenho a impressão, com nova proposta, já que a concorrência hoje é bem maior que à época.

Comprei, então, no mercado duas garrafas: a escura Premium (tipo Lagger), a 4,8% de álcool, e a clara, puro malte, Gold (tipo Pilsen), a 4,7%. Não me lembro do preço que por elas paguei, porque vieram num pacote mais amplo.
Resolvi abrir a escura, tanto em homenagem a ele, como também por certa predileção por esse tipo de cerveja, sempre mais encorpada. Quem sabe este meu gosto não venha daí: ter visto meu tio João sempre a bebê-la?

Não sei se movido pelas lembranças ou por esse meu gosto, mas a cerveja escura Black Princess desceu gostosa, suave, sem maiores sustos ao paladar, acompanhando um nhoque que eu mesmo preparei. Depois, no sítio eletrônico da marca, pude observar que este tipo de harmonização está lá recomendado. Acertei, sem querer.
Estou para visitar meu tio. Com certeza, vou puxar por sua memória para esses guardados que tenho comigo.

Saúde, tio!
Imagem em pontobeer.com.br.


26 de março de 2013

OUTRO OUTONO


Sempre há outro outono pronto
A nos brindar
Com um dia calmo
O calor contido do verão extinto
E uma brisa que parece isenta
De compromissos de última hora
As folhas a caírem tontas
- cambaleantes com um suspiro -
Sobre o tapete do chão baldio

Atrás das montanhas
Que a baía circundam
- as nuvens carregadas de cinza -
Não há ocaso neste primeiro dia
Do outono
Que sepultou o verão que nos ardia
E nos convida
À beira do mar em que nos pomos
À primeira taça de um vinho tinto


Pôr do sol em Icaraí (foto do autor).

24 de março de 2013

RISO

(Para meu netinho Francisco, no seu quinto mês de vida.)
 
 
Ri Francisco
Um riso franco
Como se preciso
Fazer das agruras
Paraíso
Com seu sorriso
De menino ativo
Os olhos líricos
Diuturnamente expressivos
A nos mostrar
A nós adultos
Tão contidos
Ou permissivos
Que ainda estamos vivos
 
 
O riso de Francisco (Foto Estefânia Mello, editada pelo autor).
 


22 de março de 2013

EU USO ÓCULOS


Imagem em olhar-43.net.
 

Estou na clínica de oftalmologia, aguardando a vez para a consulta periódica de controle da pressão ocular. Vivo ameaçado por ela, que há alguns anos ficou saliente e assombra minha pessoa com glaucoma e cegueira. Não pretendo nenhum dos dois, por isso o cuidado.

Mas observo que os vários pacientes que também aguardam a vez usam os olhos desabusadamente - leem revistas velhas, veem tevê, bisbilhotam seus aparelhos eletrônicos, fazem palavras cruzadas, escrevem textos em smartphones de última geração de uma marca coreana famosa (epa, este sou eu!) -, no intuito de aproveitar os possíveis últimos raios de luz do universo (estou um tanto trágico hoje).

A minha relação com meus próprios olhos sempre foi delicada.

Lembro-me de que, em criança, por um período, tive a sensação, ao fixar o olhar em algum ponto, de que a imagem se afastava, como num efeito de zoom. Preocupada, minha mãe me levou ao médico, que garantiu não ser nada. Aquela sensação, no entanto, permaneceu por algum tempo.

Depois, aos treze anos, quando fui para o colégio interno em Campos, para iniciar o antigo curso ginasial, comecei a sentir que as letras no quadro negro estavam um tanto embaçadas. Talvez porque uma professora de Geografia exigisse, para a chamada, que os alunos se sentassem na ordem alfabética do diário de classe. Então era: Saint-Clair (esse que lhes fala), Washington e Wellington, na última fileira à direita, no fundo da sala.

O quadro-negro (negro mesmo, à época), quadrado, se colocava à esquerda, ao lado da janela, transformando-se num verdadeiro corruptor dos olhos, pois oferecia a quem se posicionava à direita, como eu, uma visão ofuscada pela luz externa nele refletida.

Na segunda série, já em Bom Jesus do Norte, tive de me adiantar e sentar nas fileiras intermediárias, para que conseguisse ler o que se escrevia no quadro, agora verde. Quando se iniciou a terceira série, fui para a primeira fileira, ao lado da mesa do professor. E já não li mais nada! Tive, então, de chegar até minha mãe e lhe dizer, com certo constrangimento e um pouco antes de meu pai sair para Itaperuna, única cidade da redondeza em que havia oculista, que era como se chama o atual oftalmologista, o problema que estava vivendo.

Voltei de lá com uns óculos montados com lentes para miopia já com grau -3,50. O próprio médico ficou espantado da minha demora em procurá-lo e brincou comigo:

- Não consegue nem saber se as garotas estão flertando com você, não é?

Quando vim para Niterói, em 1967, fui trabalhar na Ótica Avenida. Algum tempo depois, apareceram as primeiras lentes de contato e, mais ou menos, servi de cobaia para o colega Egon, que fizera o curso de técnico em tais lentes, estrear em sua profissão. Anos depois, ele me disse, sorridente, que foram as lentes mais bem adaptadas que fizera. Logo as primeiras. Tive sorte. E passei a ser o garoto-propaganda da Ótica. Sempre que necessário, lá ia eu mostrar para o cliente a novidade. Muitos se espantavam em saber que, dentro dos meus olhos, havia um corpo estranho, feito de plástico, que substituía eficientemente a traquitana representada pelos óculos (No interior, chamávamos depreciativamente os óculos de cangalhas, aquele tipo de arreio usado em lombo de burros e mulas, sobre o qual se assentavam balaios e quiçambas para o transporte de produtos.).

Meus olhos tiveram, então, um longo caso de amor com as tais lentes duras. Até que cheguei à idade em que passei a precisar de lentes para leitura. Veio-me a famosa vista cansada, a presbiopia. Como precisasse enxergar por todos os pontos distantes dos olhos, optei por aposentar as lentes de contato e passei a usar, novamente, as velhas cangalhas, então com lentes multifocais.

Há cerca de oito anos, numa dessas consultas de rotina, para conferir o grau das lentes, o oftalmologista descobriu que, além da miopia, do astigmatismo e da presbiopia, também estava eu contemplado com pressão ocular acima do ideal.

Agora, além das cangalhas e do colírio de uso diário, tenho de me submeter, a cada trimestre, a exames para o acompanhamento da pressão saliente. Tudo para que não chegue ao glaucoma e à cegueira.

Por isso é que estou aqui, na clínica oftalmológica, onde – tenho a impressão – os que ainda veem alguma coisa abusam de ver, de olhar, de bisbilhotar o que ainda conseguem enxergar.

Pode ser que um dia tudo isto seja somente uma memória. Uma triste e dolorosa memória!

 


20 de março de 2013

NÃO TENHO


Eu tinha ilusões
Agora tenho senões em relação ao futuro
Eu tive paixões
Agora tenho cardiopatias para os meus amores
Eu tinha esperanças
Agora espero apenas mas com certa desconfiança
Eu tive orgulho
Agora aguardo passar o estio com roupas simples
Eu tive ódios
Agora suporto o tédio de não odiar quase nada
Eu tive certezas
Agora com certeza as incertezas me assaltam
Eu tive segurança
Agora inseguro volto um pouco a ser criança
Eu tinha coragem
Agora o medo é meu companheiro insólito
Eu tinha soluções
Agora sei que minhas soluções nada solucionaram
Eu tive forças
Agora alquebrado aguardo que o tempo enfim se faça
Eu tive saúde
Agora a saudade é o remédio que me sabe amargo
Eu tive amores
E não há nenhum que se tenha perdido no passado


Sébastien Stoskopff, Vanity, c.1650, Musée de l'Oeuvre Notre-Dame de Estrasburgo (em pt.wikipedia.org).

17 de março de 2013

ENFARTE


Toda quarta
Às quatro da tarde
Há um enfarte
No quarto quatrocentos e quatro
De um hotel barato
Na Rua do Senado
No centro da cidade

Toda quarta
Infalivelmente
Há um infarto
No quarto
Quando a mulata
De quartos fartos
Cavalga em fúria
O que sobra daquele velho alquebrado

E ele
Aparvalhado
Olhar incerto desnorteado
Ofegantemente obliterado
No momento exato
Vê paquidermes andando
Pelas paredes do quarto
Segundos antes
De ter novo infarto

Assim em todas as quartas
Às quatro da tarde
No quarto quatrocentos e quatro
De um hotel barato
No centro da cidade
Repete-se o enfarte
Que menos que doença
É arte
Até que a morte
De fato o arraste
Para fora do quarto
A poder de um infarto


Van Gogh, O quarto em Arles, 1889, terceira versão (em pt.wikipedia.org).

15 de março de 2013

TEMPORAIS



Nossos temporais são insones
Ocorrem a horas desertas sobre as serras
E soterram os sonhos atemporais dos homens

E quando nas vargens verdes à beira dos ribeirões de pedras
Enchem de entulho tudo
E em absurda volúpia
Alagam mundos
Destroem paredes mudas antigos muros
Tetos rubros
Casas simples vidas abismadas
 


Icaraí, antes do temporal (foto do autor).

 

11 de março de 2013

VOCÊ... E SEU NOME


Você se chama Nina. Ou melhor, Rosângela. Mas odeia o nome desde menina. Desde que teve de compartilhar a carteira com a outra Rosângela. Rosângela Seabra, para ser mais preciso. Um poço de antipatia. Você, a Rosângela Silva. A professora tinha mania de ordenar os alunos por ordem alfabética. Por isso os assentos compartilhados. Então, resolveu que, a partir daquela aula tal, no dia qual, não seria mais xará da nojenta, da petulante. E trocou seu nome para Nina. “Aí, galera, ninguém agora vai me chamar mais de Rosângela. Agora sou a Nina.” Você só tinha dez anos, mas já sabia o que queria da vida. E o que não queria! Uma dessas coisas era ser xará da Rosângela Seabra, a pernóstica, a podre, como você dizia. E passou o tempo todo de escola como Nina, até chegar à faculdade. No curso de Educação Artística, no primeiro dia de aula, na primeira aula, vai o professor de Português fazer a chamada. “Rosângela Silva?” Você se levanta e diz “Professor, por favor, não me chame por este nome horroroso. Eu sou a Nina daqui em diante. Aí, sou a Nina! Certo, galera?” Quatro anos depois, no dia da formatura, você é convocada a subir ao palco para receber seu canudo de brincadeirinha: “Nina Silva!” E é ovacionada pelos colegas.
 
oxoxoxoxoxoxoxoxoxo

Você se chama José de Souza Machado. Na folhinha, corriam desacelerados os primeiros anos da década de 10 do século passado. Descobre, muito a contragosto, que há um seu homônimo, de cabo a rabo, do jota inicial ao o final, que anda enxovalhando o nome na praça, com pendências de dívidas e negócios escusos, sentando em tratos e não cumprindo palavra dada. Você é um homem de bem. Tem brios e vergonha na cara. Inclusive engatilhou casamento com a filha do Coronel Antonico Pinto e não pode – e não quer! – ter o nome sujo. Resolve, por isso mesmo, de moto próprio – coisa que lhe deu na telha –, passar a se chamar José de Paula Machado. Casa-se José de Paula Machado, abre conta no banco José de Paula Machado e sobrenomeia um dos dez filhos com o Paula, que tomou emprestado a um ascendente. Na única e derradeira vez em que fica doente – com aquela doença ruim, a inominada matadora de gente boa –, os filhos vão dar entrada nos papéis para o INSS e descobrem, meses antes de fazer a passagem, que você nunca foi José de Paula Machado, como consta de todas as certidões de nascimento de filhos e netos. Você é exatamente como seus outros seis irmãos: um Souza Machado. Mas isso é letra morta na genealogia da família. Você ficou eternizado José de Paula Machado.
 
oxoxoxoxoxoxoxoxoxo

Vocês são duas, distanciadas pela idade e pela geografia. Você, mais nova, é Felisbela e odeia o nome. Pede ao professor para ser chamada por Bela. O professor a examina dos pés à cabeça, respeitoso porém admirado, e cogita que o apelido se aplica perfeitamente à pessoa: menina-moça morena, alta, olhos e longos cabelos negros, rosto juvenil equilibrado, sem marcas. Beleza que o uniforme da escola pública – saia levantada até o meio da coxa roliça – não consegue esconder. Você é Bela e bela, com redundância e tudo. Você, mais velha, contudo, é Florinda e também tem ojeriza ao nome. Também pede ao professor que a chame de Linda, ao responder à chamada no curso de Administração, no primeiro dia de aula. O professor afasta os óculos dos olhos em sua direção. E constata o antagonismo visível entre o apelido e o atributo, entre o nome e o adjetivo. Você está acima do peso, a pele marcada, os olhos um tanto desalinhados atrás de uma armação escura nada elegante, uma sutil verruga sobre o nariz. Enfim, cada uma carregando o peso do nome, abrandado pela alcunha, que nem sempre faz jus à pessoa.
 
oxoxoxoxoxoxoxoxoxo

Você canta desentoado, semitonando nas notas altas. Sua carreira de cantor de barzinho faz esfriar o filezinho aperitivo mais saboroso. Principalmente quando canta música romântica. Você toca violão como se tocasse porco na estrada. A voz e o acompanhamento não casam, não se harmonizam. Mas você insiste. Canta a troco do lanche ao final. Um dia reclama com a amiga que sua carreira não deslancha. A amiga, cheia das mais estranhas superstições – aliás, todas as superstições são estranhas –, lhe indica um tarólogo-numerólogo-astrólogo-jogador de baralho cigano, com consultório na rua do matadouro. Você não crê, mas não descrê. Melhor não recusar, e procura o bruxo. Ele, o bruxo, depois de estudar seu mapa astral, jogar o baralho, mexer nos números, diz que o entrave está no seu nome. E lhe propõe colocar um ípsilon, um agá e dobrar uma letra qualquer, para dar equilíbrio e força, sem as quais a desafinação só iria piorar. Você aceita, até porque pagou caro pela ajuda. E passa a grafar Gennyvaldho. No primeiro fim de semana, perde o contrato de cantor do quiosque da pracinha. Segundo o gerente, ficou muito complicado escrever seu nome na lousa verde. Além disso, ele iria ocupar o lugar do preço do cachorro-quente.
 
Imagem em familiabarusso.blogspot.com.
 
 

8 de março de 2013

SE...

(Para Jane.)
 
 
se eu te pedir um bocadinho
eu traço
se eu te enrolar em meus lençóis
de abraço
eu te farei um querubim
de barro
pesando mais que um bergantim
de aço

se eu te der meu corpo vão
e calmo
e transformar cada impropério
em salmo
eu louvarei os teus desejos
vastos
em cada légua em cada braça
e palmo

aí então seremos sós
e salvos
e iludiremos nossos sonhos
vários
com uma vida de repentinos
gozos
nós dois sozinhos infinitamente
moços.

 
Mariano Otero, Tango, 2012 (em eurocles.com/arpoma).


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NOTA: Este poema estava entre os papéis velhos que estão sendo organizados aqui em casa. É da década de 70.

6 de março de 2013

FEIJÃO AO VIDRO MOÍDO


Para ficar bem ao gosto do marido, engrossou o caldo do feijão, porém, com vidro moído, em tão grande quantidade que dispensava a farinha de mandioca de que ele gostava tanto.
O homem, capitão de todos os naufrágios, traste de todas as canalhices, sentou-se à mesa e ainda exigiu a pimenta malagueta que ele mesmo curtira com alho, cebola, grãos de pimenta-do-reino, azeitona e azeite extravirgem de boa qualidade. A pimenta cuspia fogo. No dia seguinte, ele passou a cuspir sangue.

O misturado que fez, juntando aos dois ingredientes o arroz requentado, fatias de um bife do almoço com molho ferrugem acebolado, uma sobra de jiló guisado, desceu queimando, escalavrando o esôfago e chegando ao estômago como uma dose dupla de formicida Tatu.
Achou que fosse obra da demoníaca pimenta:

- Eta, pimentinha repuxada na ardência!
Suavizou a queimação com goles de cerveja preta, que bebia fazendo barulho goela abaixo, soltando um arroto espaventoso a cada trago.

Era um porco insuportável.
Mas no dia seguinte começou a botar os bofes para fora.

A mulher fizera uma promessa a São Clemente, aquela rua que fica paralela à Voluntários da Pátria, na cama do namorado novo, rapaz entregador do mercado, que descobriu na cliente a fonte das delícias. Nem na bancada das frutas da estação encontrara tanta doçura, quanto no corpo da mulher, Giovana de nome de batismo, Gigi na intimidade dos lençóis. Pelo menos, era o que ele lhe confessava.
Gigi resolvera aplicar o par de chifres de veado campeiro no marido, quando descobriu que, além das falhas de caráter de que era portador com méritos desde o berço mais pequetito, ele mantinha a jovem Ritinha, balconista da lanchonete da esquina, tão enfeitada quanto morto ilustre.

Do par de chifres ao feijão engrossado com vidro moído, foi questão de ouvir uns ipsilones bem solfejados ao ouvido durante o entrevero carnal numa tarde de sábado chuvoso. Nada há de mais sedutor que tarde de sábado chuvoso. Ainda mais nos braços fortes de entregador de mercado, jeitoso que só ele para dizer coisas bonitas para mulheres desinfelizes no casamento.
- Empacota o corno, Gigi minha flor! Vai ser a única coisa que vou lhe pedir na vida, Gigi minha flor. Depois a gente faz a nossa vida.

Discutiram depois, enquanto recolocavam as roupas, os pormenores da passagem que o marido deveria fazer e optaram pela solução do vidro moído, conforme Gigi lera em alguns dos contos de Os mágicos municipais, livro que ele lhe presenteara há pouco. Neles, a mulher sempre despachava o traste a poder de vidro moído, sem que a polícia aparecesse nas linhas finais das histórias, para prender a homicida.
O entregador se incumbiu de moer o vidro, que deu à mulher durante a entrega de uma encomenda do supermercado.

Ela só esperou que, na próxima noite de quarta-feira, Givanildo chegasse um pouco mais tostado do botequim da Rua Paulo Barreto, onde se reunia com os amigos para ver o jogo pela tevê, e não atinasse no tempero diferente do pretão maravilha.
Para que o marido não percebesse, caprichou no alho refogado com cebola e louro, torresminhos de toucinho defumado, cominho em pó e bastante pimenta-do-reino. Se ele estivesse no completo controle de seu discernimento, sem a cuca cheia de álcool, talvez notasse algo estranho. Naquele estado, porém, sentiu apenas o tempero caprichado de Giovana.

- Esse feijão está nos trinques, mulher! É o melhor que você já fez na vida.
E comia com a boca dos famintos.

Foi a sua desgraça!
Quando chegou ao hospital e tomou lavagem estomacal, já perdera mais sangue do que a cervejada bebida na véspera e empacotou por falta do combustível do corpo.

Sua alma desacorçoada ainda bambeou um pouco, antes de abandonar o corpo inerte na maca do corredor do hospital público.
Quando a polícia bateu à porta do apartamento de Giovana, ela já dera linha na pipa com o entregador, que teve a foto publicada no jornal das sete como procurado por ter induzido ao crime uma mulher até então recatada e pudica, como atestaram os vizinhos.

Não era a primeira vez que Marcílio, o entregador, aprontava para cima de mulheres mal-amadas. E Gigi fora apenas mais uma de suas vítimas. Sempre induzidas a despacharem o marido a poder de feijão ao vidro moído, uma arma quase infalível.
 

 Imagem colhida na Internet.

4 de março de 2013

ENREDO


Não quero ser enredo de escola de samba,
daqui a cinquenta/cem anos.

É comum aos que escrevem versos à revelia
serem incensados algum dia,
depois que tiverem os ossos carcomidos pelos vermes.

Eu não vou querer virar enredo de escola de samba,
se tal me acontecer.

Vamos supor que meus tetranetos,
descendentes diretos desta minha utopia humana,
aceitem que eu saia em forma de alegoria
nas peças da bateria como saiu Che Guevara.
Não vou querer tal homenagem.

Nunca gostei de carnaval
e acho um desperdício
gastarem adereços e carros alegóricos,
fantasias e sambas de enredo
com cadáver mais que morto.

Se reproduzirem minha cara
no carro abre-alas,
estarei disposto,
diretamente do meu túmulo,
curtindo o meu luto,
a rebaixar a escola de grupo.

Imagem em arte0bscura.blogspot.com.
 

2 de março de 2013

TUDO QUE É SÓLIDO SE ESBOROA

Está inscrito na nossa consciência que a mulher é a dona da casa, a rainha do lar.

Você é casado, é a hipótese. Portanto está sob o jugo da mulher. Às vezes, há casais em que o homem tem a palavra final sobre o doméstico – este sofá vai ficar aqui, e pronto! -, mas, geralmente, tal território é quase todo feminino.
O homem, às vezes, se torna um estorvo, quando fica em casa. Esta é uma das pragas que rondam os aposentados. Param de trabalhar e ocupam um espaço e um tempo maior do que o conveniente, os quais não estavam previstos no contrato pré-nupcial. Aliás, não há contrato pré-nupcial que preveja o homem voltar para casa, vestir pijama e ficar vendo jogo na televisão, escarrapachado sobre o sofá da sala como um capado na engorda, tomando cerveja pelo gargalo da garrafa. Não há mulher que assine embaixo de uma cláusula dessas. Então começam a ocorrer os conflitos de jurisdição: Que território pertence a quem? Até onde se pode ir?

Ao homem, com certeza, cabe o menor dos minifúndios do lar. Aí, ele tenta ampliar seus domínios, enchendo a prateleira da geladeira com garrafas de cerveja e lascas de presunto de Parma, alguns queijos franceses cheios de fungos.
Não há nada mais tipicamente machista - no que esta palavra tem de carga positiva ou negativa - do que a ocupação cervejal deste tipo de território. Isto equivale, guardadas as devidas proporções, ao animal urinar em pontos do terreno que pretende reservar como seu domínio.

A mulher, por uma mera questão de convivência pacífica, absorve o golpe, desde que ele se restrinja apenas à menor prateleira. A menos que seja ela também pinguça, como várias que eu conheço e que preferem cerveja a iogurtes e queijos cottage de paladar zero. Caso contrário - e também sei de alguns casos -, na primeira crise de TPM, a esposa verte no ralo da pia algumas louras geladas compradas a peso de ouro naquele empório metido a besta, localizado no Santo Cristo. A sensação masculina, ao saber da sangria, é a da perda inapelável de aplicações na Bolsa.
Mas há outros pontos de atrito, outras zonas de conflito, tipo Faixa de Gaza, como a manutenção daquelas coleções de revistas que o parceiro adquire periodicamente na banca de revista do Antônio, ali em frente à agência bancária da Miguel de Frias. E guardadas anos a fio, com certa devoção religiosa, que só ele percebe e entende.

Num daqueles rompantes femininos, de que o bicho homem tem um medo terrível, originário lá da época das cavernas, ela resolve dar uma arrumação nos armários da casa, ordenar os papéis. É que não há mulher normal que goste de papel velho. Isto é coisa de homem. Do homem e seus gostos esquisitos. E ela começa a desalojar todo objeto papel de que o homem dispõe e deixa guardado, não se sabe por que e por quanto tempo, aqui, ali e acolá. Começam os papéis a ser desalojados de seus antigos locais de sono hibernal, sendo, então, dispostos sobre as camas, as cadeiras, as mesas e o chão, numa desarrumação acintosa. Por todos os lugares em que sua presença não seja prevista pelas normas do casamento e das leis gerais da arrumação doméstica.
E, se, enquanto estiveram guardados, estavam longe dos olhares de todos, agora ali, por todos os lados, começam a incomodar terrivelmente.

E a mulher determina:
- Dê um jeito nisso!

Ora, como dar jeito se ela é que fez ficar sem jeito? Estavam todos guardados. Na verdade, o jeito que ela pretende que se dê é jogar tudo fora, vender para ferro velho de papel, jogar no incinerador do prédio – quando havia incineradores em prédios -, menos nos lugares em que dormiam seu tranquilo sono.
Tenho um amigo que, há algum tempo, passou pelo constrangimento de ver sua coleção d’O Pasquim ser colocada no corredor do décimo terceiro andar, com um bilhete de despejo em cima. Quando chegou da faculdade onde dava aulas, à noite, quase teve um insulto cardíaco. E ameaçou não mais entrar em casa, caso sua coleção não entrasse de volta com ele. A esposa vacilou e acedeu.

A trégua durou até o dia seguinte, quando ele levou todos os jornais para doação ao diretório acadêmico. Foi como um desquite litigioso (À época, não havia divórcio.).
Agora, ali, no canto do quarto, está aquela pilha de revistas de viagem e turismo desalojada de seu repouso eterno, aguardando o “jeito” exigido pela parte forte da relação.

O homem abre uma cerveja, pensa na perdida coleção d’O Pasquim e se conforma. Vai encontrar um coração amigo que abrigue as revistas, sob módico valor, já que são usadas.
E não há como se acreditar nem nas coisas sólidas, porque elas acabam por se esboroar na atmosfera rarefeita das relações matrimoniais.
 
Imagem em mundopessoa.blogs.sapo.pt.