27 de junho de 2015

O AMIGO INCONSOLADO

(Para e por Francisco.)


Eu tenho um amigo às vezes inconsolado
Que chora no meu peito
E pede colo
Mas que sorri o tempo maior do dia

Passa por mim como se fosse um meteoro de luz
A brilhar com seu sorriso
Os obscuros passos dos becos da vida

O meu amigo inconsolado ainda anda incerto
E pensa que tudo sabe
Só porque aperta as teclas do computador
Como se fossem botões de um acordeão desafinado

E corre à noite pela casa
E faz cocô na fralda
E diz cada coisa engraçada
Com a pureza da alma que ele porta

O meu amigo inconsolado
Não chora mais que outros amigos
E faz meus olhos marejarem de saudade
Sempre que não está comigo


Francisco, em foto através de celular, pelo avô.

23 de junho de 2015

O TEMPO E EU


O inverno chega e nos metemos todos a ficar um pouco mais reflexivos, já que lá fora corre um friozinho ventoso a incomodar. Dizem mesmo, até, que os alemães desenvolveram tanto a Filosofia por causa do seu rigoroso inverno, o que os fazia ficar recolhidos no chamado recesso do lar, onde se punham a pensar, movidos a goles de cerveja nacional, vez que sexo não se faz vinte e quatro horas por dia, nem mesmo no primeiro mundo. Já num país tropical e em vias de desenvolvimento como o nosso, o exterior está a nos convidar a sair, a ir para a beira do mar, para os bares, para as praças, para os campinhos de pelada, para os açudes dos rios, e temos muito pouco tempo para graves preocupações filosóficas. Então desenvolvemos o futebol, o carnaval e toda a sorte de folguedos que balançam o corpo e enfeitam o país de norte a sul.
Talvez seja também por isso que não prestamos muita atenção às mudanças das estações, a não ser quando o morro desce, o barranco desbarranca e a casa se precipita na lama. Aí, sim, nos lembramos de que é época de chuvas torrenciais calamitosas. Ou, ao contrário, como recentemente, com a estiagem de secar reservatórios no estado mais rico da federação.
E de inverno o que temos, na verdade? Muito pouco, ou quase nada. Sobretudo do Rio de Janeiro para cima. Embora, em alguns dias, a temperatura caia a menos de vinte graus, o normal é que usemos apenas um agasalho leve para nos proteger. Dificilmente por aqui vestimos sobretudos e casacos. Cachecol, essa peça tão estimada dos franceses, então, é raríssimo, e cheira até a frescura seu uso.
Apesar de tudo, tenho na memória algumas passagens ligadas aos fenômenos típicos do tempo e das estações do ano, principalmente dos invernos e dos verões. Como, por exemplo, os verões de Carabuçu que ora traziam uma seca de fazer procissão, ora faziam descer água em abundância por longos dias. Era comum, então, que fôssemos para a rua, se de dia, a fim de tomar banho nas bicas que se formavam nos telhados das casas. Ou que brincássemos de represas, construídas precariamente na sarjeta das ruas, onde soltávamos barcos de papel, que seguiam enxurrada afora, até desaparecerem na primeira valeta. Nas tempestades de fim de tarde, principiozinho de noite, papai gostava de ficar à janela assistindo à precipitação de raios e coriscos iluminando as nuvens carregadas de água. Nessas oportunidades, sempre colocava algum filho para acompanhá-lo neste admirar da força da natureza. E jamais tivemos medo do estrondo dos trovões, nem do riscar dos raios nos céus da vila.
Já morando em Niterói, vez por outra, de férias do trabalho e da faculdade, olhava desafiadoramente para as pessoas que passavam esbaforidas, sob um calor escaldante, em frente ao Cinema Central, antes de entrar para ver a sessão das duas da tarde, só pelo ar refrigerado geladinho que baforava porta afora, sem me importar com a qualidade da película exibida.
Já o inverno do interior trazia o céu estrelado nas noites límpidas, as festas juninas e suas fogueiras imensas e a memória de ouvir papai dizendo que, naquela manhã, o termômetro marcara oito graus. Posteriormente, já burro velho de carga, senti o rigor do inverno de Tiradentes ao tomar o banho da tarde, no chuveirinho mequetrefe da pousada. Os músculos das minhas pernas tremiam descontroladamente, sem obediência aos comandos cerebrais para que ficassem tranquilos em seus lugares. Foi a pior sensação de frio por que já passei, embora tenha experimentado até mesmo temperaturas mais baixas. Nem mesmo, anos depois, no Santuário do Caraça, com frio mais intenso, sofri assim ao esperar longos minutos, até que a água quente chegasse ao meu banheiro.
As primaveras e os outonos sempre foram, aqui na região, estações que não se levam a sério. Só agora, depois de aposentado, é que procuro notar nelas as características próprias. Sei, por exemplo, que o outono é propício a desenvolver alergias respiratórias, pela presença de pólen no ar. Aqui em casa tenho quem dê tais sinais. A primavera está mais para verão do que para a famosa estação das flores, como aprendemos na escola primária.
Apenas agora, com meu interesse maior por fotografia, é que tenho aproveitado a luz em diagonal que essas estações oferecem. A esse respeito, na verdade, apenas o verão, com sua intensa luz chapada, padroniza muito as cores, mata um pouco as sutilidades de nuances que a câmara capta. Mesmo o inverno tem, entre nós, luz interessante para fotos.
Entretanto não posso deixar de comemorar as primeiras baixas de temperatura, tão logo o calorão se despede do calendário: começa a temporada de se tomar vinho com prazer junto aos amigos, jogando conversa fora e tendo a esperança de que dias melhores virão. Ou verão? Sei lá!

E tudo há de começar de novo com aquele bando de pessoas seminuas, torrando-se ao sol, à beira-mar, dando pinta de que, não importem as estações, o país é uma festa só.

Paisagem de primavera em Comendador Venâncio, Itaperuna-RJ (foto do autor).

17 de junho de 2015

O TROPEIRO

(Para os irmãos Délbio, José Luís e Julinda, meus primos.)


Brincando no terreirão de café, ainda vazio dos grãos, ouço o grito ao longe do Acácio a guiar a tropa de burros da fazenda do meu tio Aurélio. É possível ainda hoje, nos momentos em que certa nostalgia indolor me bate, poder ouvir seus comandos a orientar cada animal na entrada da porteira da Fazenda do Jacó:
- Tchu, tchu, Canário! Volta, Soberbo!
Cada animal sabia seu posto no espaço em frente à tulha, onde Seu Sebastião Seleiro trabalhava o couro, com mãos peritas, na manutenção dos arreios da tropa.
Aliviados do peso das quiçambas abarrotadas de espigas de milho, os animais daí a pouco poderiam comer em sossego sua comida e beber a água cristalina do valão, para aliviar a faina do dia.
Acácio, também um pouco depois, iria descansar, mas antes precisava refrescar o lombo da tropa com baldes d’água, antes de soltá-la no pasto.
Não havia tempo ruim para o tropeiro, apesar da dureza do trabalho. Parecia que o fazia com o prazer inocente daqueles que sabem que vieram à vida a serviço e não a lazer. E, com isto, o fardo parecia mais leve.
Ele morava numa casa simples, porém bem construída pelo meu tio, do outro lado da estrada, com sua mulher Eva e seus três filhos, o primeiro deles, o Cosme, que era um pouco mais novo do que eu por aquele tempo e que também participava, algumas vezes, da brincadeira conosco - Délbio, Zé Luís, Dinda e eu.
Nos sábados à tardinha, já de banho tomado, era comum que ele fosse para a venda do Valter Matinada, irmão do meu tio, a qual ficava cerca de uns trezentos-quatrocentos metros além, após uma curva do caminho, para o lazer miúdo da gente da roça: beber pinga; fumar cigarro de fumo de rolo; comer lascas de carne-seca crua, rodelas de salame, pedaços de chouriço frito, cubinhos de torresmos crocantes, com punhados de farinha de mandioca; contar causos; caçoar uns dos outros e cair em gargalhadas estrepitosas, de parecer que a vida era um constante parque de diversões,
- Varte, põe mais uma dósia aí pra mim!
Era como eles comumente falavam com o vendeiro que, atento a tudo, no movimento intenso do sábado, derramava no copo canelado a cachaça solicitada e continuava a pesar os mantimentos que cada homem deveria levar, num saco branco de aniagem, para a subsistência da família durante a próxima semana.
Antes de sorver o gole da calibrina, davam uma para o santo, engoliam num sorvo rápido e certeiro goela abaixo, a cusparada em seguida para limpar o travo da bebida, no além da porta da venda, e o tira-gosto para acarinhar o paladar rústico desses homens simples. Eh, mundão bão de Deus, sô!
Por vezes, nas noites de inverno, que por aqueles tempos esfriavam muito em Liberdade, sempre havia uma pequena fogueira no espaço de chão batido em frente à venda, à roda da qual continuavam a conversa e as troças uns com os outros, que nunca produziam malquerenças, relembravam seus tempos de moleques soltos por aqueles ermos, grimpando morros, rompendo vargens, varando caminhos, caçando passarinhos, tomando banho de valão. Se a data fosse próxima ao São João, batiam caxambu, cantavam versos paralelísticos de memória antiga a ressoar ainda em meus ouvidos, agora um tanto saturados dos barulhos urbanos:

Na cama de Jesus Cristo
Quantos travesseiros tem?
Oi! na cama de Jesus Cristo
Quantos travesseiros tem?

Menina bonita chegou agora
De Santa Luzia de Carangola.
Oi! menina bonita chegou agora
De Santa Luzia de Carangola.

O meu boi tava chorando
Só porque botei na canga.
Oi! o meu boi tava chorando
Só porque botei na canga.

Quem nunca viu vem ver
Caldeirão sem fundo ferver.
Oi, quem nunca viu vem ver
Caldeirão sem fundo ferver.

E depois, quando as brasas da fogueira principiavam a se tornar carvões, cada qual seguia para o seu lado, alguns em lombo de animais, outros a pé, como Acácio, que voltava sob o céu frio e estrelado da noite, os passos cambaleantes pela quantidade de camulaia acumulada no sangue, a fim dormir o sono dos justos.
Na segunda-feira seguinte, já voltava à lida com os burros, varando estradas e trilhas, indo atrás da colheita da época, para transformar tudo em alimento para a gente da Rua, que é como todos nós chamávamos nossa pequena vila de Carabuçu.
A porteira da fazenda batia atrás do último burro e eu ouvia o grito do Acácio a conduzir a tropa, naquele tempo e ainda hoje, na minha memória auditiva que teima em voltar sempre àquelas paragens da infância:
- Tchu, tchu! Canário! Vamos, Godero! Volta, Soberbo!

Escravo negro conduzindo tropas no Rio Grande do Sul. Aquarela de Jean-Baptiste DeBret, de 1823
(
Imagem em curitiba-parana.net).


13 de junho de 2015

O POEMA


Não posso compor um poema assim aos sobressaltos
O poema não passa por estradas esburacadas
Mas por uma estrada estranha
Cujo traçado não componho
Por mais estranho que isso pareça

O poema chega à cabeça
Chega ao tronco aos braços aos dedos
E até às teclas que me estendem o corpo

Ou o poema é uma coisa assim aos trambolhões
Que assalta sem sobreaviso
Porque ouvi uma música
Porque senti um cheiro
Porque a memória transitou em vão por entre as névoas do passado
Ou entrou por um atalho intransitável do presente

O poema não se sente
Não se vive
O poema é isso que você vê
Ou pressente
E que não sei bem como apareceu até aqui

Não posso compor um poema com sentimentos somente
O poema é um tanto demente
Mas necessita das palavras para seu sustento
E seu juízo

Poema sem palavra é bruma e vento

Ou não haverá poema
Apesar de todos os contratempos que se tem
Para se compor um poema


Lua cheia em Cunha-SP, 3/4/2015 (foto do autor).

8 de junho de 2015

PARA QUE NÃO HAJA AMANHÃ


tudo que você quiser eu faço
tudo que for de ti para mim eu traço
tudo que eu puser na cabeça embaraço
e se não puder tecer eu amasso
se você quiser que eu desafine eu troço
se me quiser menino eu moço
e se não puder estar sentindo eu ouço
tudo que for de dezembro ou março
quase tudo que for impossível eu teço
ainda que não se possa imaginar eu meço
com meu compasso esculhambado ou terço
no meio desse inferno ideal eu desço
e se não houver amanhã eu fuço
qual um porco cachaço e tusso
no meio dessa fumaceira e ruço
a fim de que não caia por fim de bruços
mas se houver amanhã ou isso
talvez eu pegue chapéu e caniço
e saia por aí gastando o que me sobra de viço
para que não haja amanhã nem serviço


Pieter Bruegel, o Velho, Censo em Belém, 1566 (em wikiart.org).

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Este poema foi escrito na década de 80 e teve sua primeira postagem em Gritos&Bochichos, em 12/3/2010.