30 de junho de 2021

A LOIRA DO ÔNIBUS

 

Lúcio já estava no ônibus, quando entra uma nova passageira e se acomoda ao seu lado no banco. Era uma loira descomunal, como avaliou mentalmente, assim que a olhou de soslaio. Ela, simpática, deu-lhe bom dia e pediu licença para acomodar toda a sua pessoa ao lado do psicologicamente boquiaberto Lúcio – na verdade, ele não teve a coragem de abrir a boca e ficar com cara de bobo.

A partir daí, a cabeça de Lúcio entrou em parafuso, num alvoroço de pensamentos como numa brain storm de que estava acostumado a participar na agência de publicidade onde trabalhava.

Como uma loira daquele porte, daquela envergadura, daquela compleição física soberba – e que cabelos! -, poderia andar no prosaico transporte público e dividir o banco com um reles mortal, que sinceramente nem tinha onde cair morto? Não haveria nenhum ser humano, proprietário de uma Lamborghini, de uma Ferrari ou de uma Maseratti, de uma – vá lá que seja – Alfa Romeo, disposto a transportá-la para baixo e para cima? Para onde a loira quisesse ir, sem pestanejar, sem indagar dos motivos? Como esse mundo é desajustado, continuou ele em suas caraminholas. Por muito menos ela estaria em páginas de revistas masculinas, daquelas antigas, fazendo o delírio da galera. Ou, caso seja recatada, num editorial de moda, ou num comercial de produtos de beleza. E não! Estava tão somente ao seu lado no ônibus.

Ele só não reparara, tão logo ela entrou, se o pagamento fora em dinheiro ou num reles cartão de bilhete único. Com certeza aquela loira não merecia possuir um prosaico cartão de transporte público. Aliás nem deveria pagar passagem. Muito ao contrário! A empresa concessionária deveria pagar para que ela viajasse em seus ônibus e, então, fazer propaganda com ela, sorridente, segurando o cartão a convidar os demais comuns dos mortais a utilizarem aquele mesmo ônibus.

Lúcio pensou em lhe dar seu cartão de visitas e convidá-la a ir fazer um teste na agência onde trabalhava. Aquela loira era um material humano a não ser desperdiçado, em hipótese nenhuma. E, vá lá, haveria a possibilidade de vê-la outras vezes e, quem sabe, até desenvolver uma amizade, seguida de uma afeição e de um louco amor. Tudo é possível na vida, imaginou com exagerada autocomplacência. Até mesmo o impossível!

A loira, sem se dar conta de todo o frisson causado no cavalheiro ao lado, abriu sua bolsa de onde tirou o celular, acessou uma rede social – de rabo de olho, ele verificou se tratar do WhatsApp – e começou a digitar freneticamente. A cada mensagem de volta, seu olhar se iluminava mais e um leve sorriso começava a emoldurar seu rosto já por demais perfeito. Lúcio estava atento aos mínimos movimentos da moça, sem que virasse a cabeça. Apenas seus olhos flutuavam de um lado para o outro, a fim de tentar saber mais alguma coisa da loira.

O ônibus já havia passado por dois pontos, em que alguns passageiros desceram e outros subiram. O próximo ponto, diante da pracinha onde se localizava o prédio da agência, seria seu local de descida. Ele, porém, estava tentado a seguir na viagem até onde a loira ficasse. Desceria um ponto depois dela e voltaria. Aquela era uma oportunidade única de viajar com pessoa tão bonita ao seu lado. Jamais tivera tal sensação. E ainda haveria a possibilidade de que, durante o trajeto, ela se dignasse a lhe perguntar as horas ou fazer algum comentário bobinho sobre o tempo, ou uma consideração mais séria acerca do aquecimento global. Não haveria problema nenhum, caso chegasse alguns minutos atrasados naquele dia.

Antes que ele acionasse o pedido de parada, a loira apertou seu mimoso dedo indicador, decorado por esmalte de cor chamativa, sobre o botão colocado na coluna ao lado do banco. Milagre, pensou ele. Ela desceria no mesmo ponto, diante da pracinha.

Por uma questão de cavalheirismo – e, inconfessavelmente, para apreciar a pessoa da loira em toda a sua exuberância pela retaguarda –, seguiu atrás dela pelo corredor do veículo, mal conseguindo disfarçar para os demais passageiros, que se viravam para olhar a loira, a admiração estampada na cara.

Com cuidado e elegância sensual, a loira desce os degraus, segurando-se na coluna para não forçar a saia justa, enquanto ele aguarda sua vez. Sem pressa, porém sôfrego, o ‘coração em desalinho’ como na canção, segue atrás dela, em procissão. A loira caminha em direção à rua lateral da pracinha, também para onde ele vai. Seu coração trepida como tamborim em ensaio de escola de samba, com instantes de surdo de marcação. E imagina a possibilidade de que ela também vá até a agência de publicidade.

Sem tirar os olhos dela, a alguns passos à sua frente – ele faz questão de retardar a marcha –, não percebe, parada na lateral da rua, quase diante do prédio onde trabalha, uma Ferrari vermelha, conversível, com um motorista bem-vestido, de óculos escuros e cabelos em elegante desalinho, como um modelo em peças publicitárias.

Ao se aproximar do carro, a loira faz um cumprimento jovial ao motorista, contorna o bólido, entra pela porta, que o homem abre desde seu assento, e se acomoda no banco de couro com o símbolo daquela máquina infernal. Dá um selinho naquele miserável, passa o cinto de segurança sobre seu peito deslumbrante, no instante em que, o motor já acionado, o desgraçado dá a partida no carro, acessa a avenida principal e some na descida da rua após o semáforo, deixando o coração do pobre diabo do Lúcio em frangalhos, desmontado como um velho carburador cheio de problemas.

Vida desgraçada, pensou ele. Agora vou subir e terminar aquele maldito encarte de supermercado com promoção de produtos de higiene e limpeza.


Foto obtida na Internet.


20 de junho de 2021

O CONTO

Ele queria escrever o conto perfeito, definitivo.

Depois de ter uma inspiração vinda não se sabe de onde, vai até o computador e começa a digitar com certo frenesi. As frases iam saindo fáceis, organizando-se em parágrafos bem-estruturados e coerentes. O tema não tinha tanta importância, desde que seu desenvolvimento tivesse nítida linha organizacional e perfeita expressão linguística. Mas, também, quem se importa com história? Há uma infinidade de contos rodando por aí que não chegam a lugar nenhum. Circulam em torno de lucubrações mentais e ganham elogios, e até prêmios.

E continuou a desenvolver o assunto que se lhe apresentara.

De repente parou após o terceiro parágrafo, sem vislumbrar o caminho a seguir. Todo conto é mais ou menos assim, pensou ele. Às vezes ele se impõe ao contista. Diferentemente do que se imagina, o contista não tem a liberdade total de escolher os caminhos da trama. Depois de iniciado, parece que o conto ganha vida própria. O criador não é propriamente o demiurgo plenipotenciário de sua criação e condução. Antes, ela vai propondo vias, atalhos, pontilhões, pinguelas – algumas vezes, até mata-burros -, quase sempre guiando o dedilhar do teclado em direções inéditas para o autor. Assemelha-se a um carro velho descendo estrada de barro à beira de precipícios, sem direção hidráulica e sem freio. Assim, todo cuidado é pouco.

O autor, então, se levanta, vai até a cozinha tomar um copo d’água, um gole de café, a ver se a inspiração original retoma as rédeas – ou a direção – da escrita.

Em pouco tempo, volta ao frenesi inicial de digitação, escolhendo um dos atalhos possíveis, de modo a culminar num desfecho inesperado, a fim de que o leitor, ao final da leitura, extasiado, solte um oh! da garganta. Ou do pensamento! Então ele estará recompensado esteticamente. Conseguira atingir seu objetivo.

O trabalho iniciado chegara a bom termo. Assim se fazia a hora de ler o texto com atenção, revisar tudo, para que nada frustrasse sua expectativa. Olhou com atenção todas as vírgulas, trocou algumas; alterou a posição de termos; antecipou adjuntos em duas ou três frases; revisou regências de cunho popular por outras da forma culta; substituiu a voz passiva locucional pela pronominal, a fim de dar leveza e sofisticação ao texto; e, sobretudo, caprichou na escolha do vocabulário, com o cuidado para não cair no hermetismo de Os sertões ou A carne, mas também não flertar com uns e outros aí que se deixam levar pela linguagem chula e descuidada dos dias atuais.

Então resolveu salvar o texto, desligar o computador e ir dormir. No outro dia, faria a revisão da revisão, já que erros são insidiosos e escapam ao olhar do autor, mais preocupado com o conteúdo do que com a forma.

Dormiu acossado por pesadelos em que gramáticas e dicionários lhe eram atirados sobre a cabeça, ao entrar numa biblioteca soturna, mal iluminada e dirigida por um bibliotecário corcunda, como a personagem de Victor Hugo, o grande contador de histórias da França.

Acordou no meio da noite sobressaltado!

Sem conseguir retomar o sono, resolveu voltar ao computador para mais uma olhadela, sem grandes preocupações, no que escrevera. Sentia-se ainda um pouco ensonado para promover qualquer alteração que pudesse melhorar o que já estava bom, segundo seu juízo.

Mas ainda encontrou alguns pequenos porblemas de digitação, que resolveu sem problemas; acrescentou a marca de plural que faltou em duas palavra, palavras essas, aliás, de caráter culto, praticamente ignotas dos leitores comezinhos. E, principalmente, experimentou pequeno gozo ao se imaginar na linha de um Machado, em seus Contos fluminenses, ou de um moderno como Trevisan, com suas tramas soturnas de Cemitérios de elefantas e suas frases decupadas como um Super 8.

E recuperou o sono, que levou sem mais transtornos até as oito da manhã, quando foi acordado pela mulher para o desjejum.

Daí a meia hora, foi para a varanda tomar um banho de sol de inverno, preocupado com as taxas de vitamina D, após o que retornou ao conto, para mais uma e definitiva revisão.

Tudo certo e revisado, faltava agora o título. Que nome atribuir a um conto sem uma história consistente que o sugerisse de pronto? Pensou, pensou, refletiu bem e não encontrou título adequado. Resolve, então, chamar-lhe simplesmente O conto.

E deu a tarefa por finda. Agora era só publicar.

Imagem em pt.coolclips.com

8 de junho de 2021

SANSÃO E SEU ANTÔNIO

Seu Antônio vivia sombrio por causa das perspectivas do passado. É isso mesmo. As perspectivas do Seu Antônio se viam pelo retrovisor da vida e não pela janela de vidro sobre a ondulação das montanhas ou o plano pacífico das campinas extensas. Ele ficou assim, depois que lhe morreu Sansão, seu galo de estimação, um shamo japonês de pernas compridas e penas curtas, uma maçaroca de músculo no peito e um olhar matador. Quando seu galo entrava na rinha, isso antes que o abestado Jânio Quadros proibisse as brigas, o galo adversário entregava os pontos e fazia jeitos de galinha choca. Às vezes nem era preciso soltar um pau mortal de suas pernas poderosas. E quantas lutas venceu por WO, apenas porque o dono do adversário descobria que o opositor seria o Sansão.

Então já lá se vão algumas décadas que Seu Antônio vive de suspiros lúgubres por um passado remoto que permanece insistente na soleira de suas memórias. E nem adiantava Dona Carmô, como ele chamava a mulher, preparar angu molinho, com costelinha de porco cozida com quiabo, mais taioba refogada, uma talagada de pinga da boa e pimenta brava, para alegrar seus dias de tristeza e sensaboria.

Sansão fora para a aposentadoria compulsória, por conta da decisão de Brasília no início dos 60, e aos poucos, sem adversários a enfrentar, sem treinamentos a fazer, foi definhando, definhando, como se tomado de depressão, até não servir nem para ensopado de galo com macarrão, apesar do tratamento de sultão que Seu Antônio lhe dispensava.

Pois foi, em certa manhã de agosto, que um frio nebuloso entrando pelas gretas do galinheiro encontrou o velho galo de briga inerte no chão, sob o poleiro principal onde reinara poderoso por vários anos. A vida, a brabeza, o mau humor, a peçonha no olhar o tinham abandonado naquela madrugada, deixando-lhe apenas o corpo definhado com as penas já escassas a lembrar de forma tênue a velha glória de campeão das rinhas.

A notícia foi uma devastação na vida de Seu Antônio. A mulher, ao lhe passar a novidade trazida pela Ceição, sua ajudante nas tarefas domésticas, providenciou um copo d’água fresquinho para lhe amortecer as trepidações do coração. Seu Antônio bambeou o corpo, escureceu a vista por uns segundos e soltou um longo suspiro, deixando-se cair em abandono sobre a cadeira de balanço ao lado da janela. Olhou na parede a foto de Sansão nos áureos tempos, no meio do tambor, o centro do ringue, com o opositor nocauteado a seus pés, uma foto que saíra na primeira página d’A Voz do Povo. Não era homem de chorar, mas não conseguiu reter uma lágrima teimosa que lhe brotou no cantinho do olho esquerdo, aquele mesmo que piscava para o Sansão, no momento de liberar seu golpe mais fulminante.

Passado o choque inicial, Seu Antônio pediu à mulher que lhe arranjasse roupa de sair, pois iria providenciar enterro condigno para seu amigo penoso. E retrucou com visível aborrecimento à proposta que ela lhe fizera, para que enterrassem Sansão aos pés da mangueira frondosa, lá no fundo do quintal.

- Sansão gostava tanto daquela mangueira, Tonho!

- De jeito maneira, Carmô! Sansão, pelo seu passado, merece enterro de pompa.

E não houve jeito de demovê-lo do propósito de ir até o serviço funerário da cidade, explicar sua intenção, rasgando elogios ao amigo defunto, de tal modo convincente, que o agente funerário lhe prometeu ir até a prefeitura, a fim de obter autorização para enterrar o galo no campo santo local.

- Seu Vicente da Funerária, lhe dou prazo de duas horas para resolver a questão! Vou estar em casa aguardando suas notícias.

Vicente, dono da Funerária Ascenção, localizada próxima ao hospital da cidade, pegou o carro e foi de imediato até a prefeitura.

Como em cidades pequenas do interior todos se conhecem, não foi difícil a Vicente convencer o encarregado de sepultamentos a concessão de um pequeno espaço para o corpo de um galo de estimação, considerado pessoa da família do Seu Antônio Apolinário.

- É melhor não desagradar o velho. – disse o funcionário, ao aquiescer à proposta do papa-defuntos.

Com a autorização conseguida, Vicente providenciou um caixão apropriado ao extinto, o qual mandou fazer com a devida urgência, aproveitando para também incluí-lo no catálogo da funerária. Vai que outro maluco queira enterrar seu bicho de estimação, com honras humanas, pensou o prestador de serviços fúnebres.

Seu Antônio mandou convocar o neto, para dirigir seu carro, e partiram, além dos dois, Ceição e Dona Carmô. O carro da Funerária Ascenção seguia à frente levando o ataúde acanhado, enfeitado com cores sóbrias – afinal Sansão não gostava de frufrus e balangandãs. O minúsculo cortejo seguiu pela Rua Aristides Figueiredo, até chegar ao cemitério. Lá no fundo do espaço, sob a sombra de uma paineira, Vicente mandou cavar uma pequena sepultura em que o galo foi enterrado, sob o olhar doloroso da família e um pequeno discurso do Seu Antônio, em que lembrou os feitos da vida do galináceo falecido.

No aniversário de morte, foi inaugurado sobre a sepultura o túmulo de mármore que o velho aficionado em brigas de galo mandou construir para seu amigo de penas.

Desde então, Seu Antônio só tem retrospectivas e não mais perspectivas. Seus olhos miram o retrovisor da vida. O que se apresenta radiante e colorido à sua frente, ele já não mais enxerga. 

Galo shamo (foto obtida na Internet).