28 de julho de 2020

INÉRCIA


Mexe o corpo ligeiro
Tremem os músculos nervosos
E no meio de todo esse bulício
Eu sonho com a inércia

Ando de lá para cá
Volto em tempo bem curto
Me esfalfo em compromissos
Pensando sempre na inércia

Os dias andam corridos
De norte a sul do universo
Eu quase perco o juízo
Enquanto aguardo a inércia

Entretanto a indesejada
Vai chegar na hora certa
Com todos os seus auspícios
Não quero saber de inércia!


Desenho de Rede de descanso para colorir - Tudodesenhos
Imagem em tudodesenhos.com.

2 de julho de 2020

LÁBIOS QUE BEIJEI


O tom da valsa melancólica enchia o pequeno espaço daquele rústico bar na Rua da Arara. Senhorinha Augusta passava pano úmido sobre o balcão de madeira, a fim de apagar certas marcas de fundos de copos e garrafas deixadas na noite anterior. E tinha muito zelo em lavar os cinzeiros, a fim de espantar o ranço de cigarro impregnado nas paredes, nas cortinas de chitão e nos móveis pobres do ambiente. Depois disso, borrifava água de flor de laranjeira para deixar um cheirinho gostoso naquele espaço um tanto acanhado.
“Lábios que beijei” tinha começado a tocar na velha vitrola RCA, cuja agulha já rombuda tornava o som do disco meio rascante. O velho peito do freguês ao lado, afrontado por anos de cigarro, também rangia no compasso do elepê. O coração subia-lhe em volteios até o nó da garganta, em tempo de saltar e exteriorizar-se em palavras incompreensíveis, e baixava em espiral ao mais profundo do âmago, onde perdia sua força. Ou onde lá isso iria dar, nunca se sabe. E foi ele o primeiro a entrar naquela tarde no botequim, ainda sob os cuidados da proprietária. E já chegara cheio.
Agora era aquela valsa melancólica, letra costurada sobre o tecido gongórico da nossa velha música popular, a lhe lembrar as misérias por que passara com a ingrata que lhe cravara em pleno peito tanto desgosto e tanta vergonha, como no antigo tango argentino. Nesse ponto, o prostíbulo brasileiro difere do argentino apenas na língua que ambos usam. Mas os personagens são os mesmos. O sentimento e a dor são as mesmas a varar os corações, brasileiros ou portenhos, sem respeito a fronteiras nacionais. A dor de amor é inerente ao ser humano. E ali estava ele a curtir a sua própria e única, pessoal e intransferível. E, sobretudo, inelutável. Por isso bebia.
E também queria ouvir de Senhorinha Augusta se realmente aquilo de fato ocorrera. E ela, sem meias palavras, sem cuidados, confirmava a história. Nem ela mesma fora avisada de nada.
A cerveja esquentava no copo. As moscas sobrevoavam o ar morno do estabelecimento à beira rio, onde os homens iam buscar os corpos postos à venda. Apenas na segunda-feira ocorria o descanso das moças, ocasião em que podiam dar certo sentido a suas vidas de pessoas comuns, se é que isso fosse possível, indo às compras no comércio da cidade, sorvendo o ar puro do dia e banhando-se na luz do sol pelas ruas com pouco tráfego. Nos outros dias, estavam a postos, não importa o horário, pois há sempre alguém procurando seu conforto sensual, seu cheiro de pele e seu fingido prazer, sem o qual o freguês não capricha na gorjeta.
- Senhorinha, põe um traçado pra acompanhar a cerveja, por favor. E capricha na dose, que eu tenho muito o que afogar hoje!
A tarde mal começara a se esvair, e a escuridão da noite se anunciava vagarosa. Escurecia cedo por esse tempo. E ele era o primeiro freguês a chegar ao bar, ainda dia claro. Aquela sexta-feira poderia ser diferente. Nunca se sabe. Poderia trazer algo que lhe tirasse do estado lamentável em que se encontrava. Talvez pudesse até mesmo lhe arrancar do peito aquele desgosto, aquela derrota.
E ele não era freguês desconhecido. Tinha seu nome reconhecido pela dona do bordel e pelas meninas que ali trabalhavam. Sobretudo era conhecido por sua paixão pela menina Zenaide. Entretanto, de todas as outras vezes em que estivera na casa, viera sempre com sorriso aberto e disposição para a noitada. Não, porém, desta vez!
É que soube por um amigo que, desgraçadamente, sua preferida fugira com um caminhoneiro chegado à cidade para entrega de madeira a uma serraria, e que estivera ali mesmo e, com duas palavras galantes no ouvido de sua morena, arrebatara-a para a boleia do caminhão, com promessas de longos quilômetros Brasil afora. Foi o jeito que ela encontrou de fugir à vida de entrega do corpo sem prazer, num mero exercício de fugir à necessidade, após perder pai e mãe e ficar sozinha no mundo.
Sem um aviso, sem uma palavra a ninguém, ela partiu. E ele, que até pensara em também lhe propor a mesma solução, enfim não concretizada, estava agora começando a curtir a perda da sua morena.
Há paixões fulminantes, a que não se consegue fugir nem com promessa a santo da devoção. Há outras que se constroem aos poucos, porém sem lerdeza, mas que penetram mais fundo. Esta foi a dele por Zenaide. Aquela foi a dela pelo caminhoneiro. E Zenaide lhe confessara que ele era o primeiro homem a quem beijava de verdade, com paixão; que sentia por ele algo especial, diferente de todos os demais com quem se deitava. Por isso ele não conseguia entender como uma mulher vivida tal a sua morena se deixasse encantar por meia dúzias de palavras que sabia vãs, por promessas a não se cumprir, pois ele bem conhece a fama desses viajantes sem destino, a ter em cada canto mulher que os receba, lhes dê conforto e prazer, mas que se vão na primeira curva da estrada, em busca de outras novidades e novas aventuras. Ele, ao contrário, estava disposto a lhe montar casa decente – humilde, é bem verdade –, mas que se transformaria num lar. Por que não dissera a ela tudo isso antes, a cada vez que a encontrara, ao fim do expediente normal da casa, no quarto apertado dos fundos da boate? É que ficou verificando se o interesse que ela lhe parecia demonstrar era realmente verdadeiro, se tinha pelo menos verniz de sinceridade. E esperou tanto e tanto adiou revelar seu propósito, que acabou abandonado feito um idiota, um zé-ninguém sem valor, a não merecer nem uma singela explicação, um adeus, mané!
Agora a vitrola repetia, a seu pedido, a valsa fatídica, miserável trilha sonora, sem glória nenhuma, para suas pretensões frustras, seus sonhos dilacerados.
- Senhorinha, não quero saber de mulher nenhuma! Hoje só quero beber! Me dê mais um traçado!
A noite se aprofundou com suas dores, a bebida cumpriu seu curso inexorável, e, dois dias depois, seus lábios, destacados no corpo túmido, foram encontrados comidos por peixe num remanso, agarrados às gigogas, numa curva do Itabapoana, próximo à Ponte do Zé Carlos.

Rio Itabapoana, próximo a Bom Jesus (foto do autor).