22 de março de 2021

DIÁLOGO PLAUSÍVEL

 O cara, espécie de secretário particular, faz anotações sobre os desejos finais do Seu Leocádio.

- O senhor vai querer ser enterrado ou cremado?

- Não sei. É preciso responder agora? Depois, querer é um verbo muito forte nesta pergunta.

- É apenas para orientar a família sobre as providências a tomar depois de tudo.

- Isso ainda não decidi. Vou pensar hoje à noite. Amanhã te respondo.

- O senhor vai querer banda de música acompanhando o féretro?

- Ah! Isso vou querer! Vai me fazer voltar à infância, quando ouvia a Furiosa. E anote aí: tocando Saudades de Matão.

- Mas, Seu Leocádio, aí o senhor estará morto: não terá como voltar à infância. Além disso, se for cremado, não haverá féretro. Portanto não haverá banda e muito menos Saudades de Matão!

Seu Leocádio pensa, pensa, passa a mão pelo queixo, como sempre faz diante de resoluções intrincadas, e diz:

- Isso pode esperar para quando eu decidir se quero virar cinzas ou ser comido pelos vermes, não pode?

- Pode, mas é que as anotações acabam não acontecendo. E flores? E igreja? E elogio fúnebre do padre Eustáquio? Isso tudo o senhor tem de decidir. Por exemplo, aquele bibelô que o senhor trouxe de Paris, quando lá esteve pela primeira vez, de quem será? Tenho de anotar isso aqui também.

- Faça uma pergunta de cada vez, senão me atrapalho. Mas o bibelô se quebrou há muito tempo.

- Ele foi restaurado naquela loja de antiguidades. Não se lembra?

- É verdade! Tinha me esquecido disso. E onde ele está agora então?

- Bem aí atrás do senhor, na estante de livros. O Camões está escorado por ele.

- Camões?! Aquela edição histórica d’Os Lusíadas que encontrei num sebo em Coimbra?!

- Sim, essa mesma! E o senhor tem de pensar para quem deixar seus livros também. Sua neta Marietinha é muito estudiosa. Acho que ela vai ficar muito grata, se o senhor lhe deixar seus livros.

- Boa lembrança! Mas a Marietinha não está morando na Finlândia? Não foi para lá atrás daquele finlandês maluco, com o nome cheio de letras dobradas e que vive correndo maratonas mundo afora?

- Sim, ela mesma. Ele é o Eerikki, o marido dela. Mas a gente dá um jeito de fazer os livros chegarem lá. Ou ela vem aqui para o seu velório e aproveita para levá-los na volta.

- É verdade! Pode ser. Mas eu queria pensar melhor. Eu poderia doá-los à biblioteca da minha velha escola primária lá na minha terra. Tenho de pensar melhor sobre isso. O que mais você perguntou?

- Sobre o elogio do padre Eustáquio?

- Padre Eustáquio... Padre Eustáquio... É melhor, não. Padre Eustáquio andou falando mal de um amigo nosso que morreu ano passado. Não quero que ele use seus conhecimentos da minha vida, para me desabonar na hora final. São coisas antigas, mas que podem voltar na hora. Não vou querer isso.

- Ele não fará isso, Seu Leocádio. Com certeza! O senhor é amigo dele, desde o movimento pela emancipação da cidade. Se lembra?

- Sim, certamente! Mas é melhor, não. Deixe o padre Eustáquio fora disso.

- E a igreja?

- Como igreja?! Vou ter de passar pela igreja antes de ser enterrado? Eu quase nunca vou à igreja. Poucas vezes, para não dizer que não vou.

- O senhor é quem decide. Sua família talvez goste. É um conforto espiritual para os que ficam.

- É melhor pensar direito. Pensando bem, se eu passar por lá, o Padre Eustáquio poderá fazer a oração fúnebre. Uma boa recomendação final pode abrir portas. Nunca se sabe. E ele é meu amigo.

- Então... É o que eu falava, seu Leocádio.

- Vou pensar melhor sobre isso também.

- Seu Leocádio, está ficando tudo para depois. O senhor ainda não decidiu nada.

- Nem decidi morrer ainda! Você não acha que está sendo precipitado demais? Tudo pode esperar.

Naquela noite, Seu Leocádio se recolheu por volta das vinte e duas horas, após ter tomado uma sopinha de batata-baroa rala, com pouco sal, e migas de pão, que a mulher chamava de consomê, e não se levantou mais. Sem resolver nada sobre seu funeral, deitado ficou para o resto da eternidade. Ou até que virasse cinzas, ou os vermes o comessem. Nunca se saberá.


Gustave Caillebotte, Retrato de homem escrevendo em seu escritório, 1835 (imagem colhida em wikiart.org).




 

13 de março de 2021

D'APRÈS CECÍLIA MEIRELES*

Eu não tinha esta face assim vincada
Estes olhos baços
Esta fronte corrugada.
Eu não tinha esta barba esbranquiçada
Os cabelos ralos
A pele flácida
E ressecada.
Eu não tinha este andar vacilante
Como de agora.
Eu já fui jovem
Já fui criança
De nem me lembrar mais daquelas horas
Em que as preocupações inexistiam.
Vivo conciso
Delimitado
Pois o tempo que resta aí em frente
É muito pouco para o que foi sonhado.


Toulouse Lautrec, Homem velho em Celeyran, 1882.

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*Retrato, Cecília Meireles.