30 de setembro de 2012

O MUNDO INTEIRO AOS SEUS PÉS

Largava do serviço às sete da noite e tomava umas e outras antes de ir para casa. Comia umas sardinhas fritas regadas a chope claro. Sempre com o umbigo encostado ao balcão do bar na rua Miguel Couto.
 
Chegava a casa lá pelas dez com bafo de anteontem e olhos de groselha. A mulher cheirosa de banho tomado esperava o senhor da casa com a paciência das mulheres de antigamente. A janta no forno, prato arrumado, comia com a rapidez dos coelhos e a boca nervosa dos esfomeados. Alguns arrotos e peças de roupa jogadas no chão do banheiro. As crianças já dormiam, e dormiam cedo, por causa da aula na manhã seguinte. Ele as beijava e se enroscava no corpo da mulher cheirosa de banho tomado. Sua barriga se espalhava um pouco pela cama. Seu bigode fazia comichão na orelha dela. E pelo ar subia um cheiro azedo de sexo, gemido nos vapores do álcool e nas emanações de uma colônia de jasmim.
 
A mulher sabia que a comida sempre tinha de estar pronta. E o homem apenas desfrutava desse prazer inenarrável que é ter o mundo inteiro aos seus pés.
 
Imagem em arcadja.com.
 

28 de setembro de 2012

O MESMO DIFERENTE RIO


o rio ali está atrás
sob a antiga ponte de madeira
ali está atrás
da velha venda de beira de estrada
ali além do rio o outro lado
um outro estado
no entanto ali está o rio
ou não está?
ele sempre está passando
nunca é sempre o mesmo
senão o nome que lhe damos
(não as águas em que nos banhamos
ou esse desejo insano de sorvê-lo)
itabapoana!

Rio Itabapoana (imagem em acervosdigitais.com).



(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 31/3/2010).    

26 de setembro de 2012

MODERNOS AGENTES FUNERÁRIOS

Há uma moça bonitinha, em propaganda na tevê, com um sorriso nos lábios, oferecendo o plano funerário da Santa Casa Copacabana. Segundo ela, é o negócio da nossa vida (ou da nossa morte?), de tão bom que é.
Pelo que entendi, há várias modalidades, vários tipos: podem entregar o de cujus aqui, ali e acolá, em carros novos, com todo o conforto possível. Até mesmo no estrangeiro, o plano promete a inumação do freguês. Na base do morre aqui, enterra lá!
Se o cliente se associar agora, paga com cinquenta por cento de abatimento. É realmente uma pechincha, caso você queira abotoar o paletó, fazer a passagem, desencarnar afoitamente, açodadamente.
Concorrendo com ela, em propaganda de outra empresa papa-defunto, aparecem os consagrados atores Eva Todor e Francisco Cuoco, sentados e dividindo um texto bem humorado, em que brincam com as suas próprias longevidades, talvez para mostrar que morrer não seja tão mau negócio assim. E, pela idade e descontração, eles quase nos convencem.
Oferecem até mesmo um plano em que se dá ao cliente o prazo de sobrevida de doze meses. Ou não parcelariam a adesão em suaves prestações mensais, durante um ano inteiro.
Ambas as propagandas não são nada sisudas; nenhum dos apresentadores faz cara circunspecta, semblante carregado; não têm sombra escura nos olhos. Estão todos muito bem humorados. Diria, mesmo, quase felizes em oferecer seus serviços ao cliente amigo disposto a passar desta para melhor.
Essas campanhas me trazem à memória um fato ocorrido com Jane, minha mulher.
Há cerca de vinte anos ou mais, estávamos prontos para sair e comemorar, com um jantar, o aniversário dela, quando toca o telefone.
Jane, toda emperiquitada, já com a bolsa na mão, volta para atender a ligação. Era uma jovem corretora de funerais e assuntos conexos de um cemitério-parque, inaugurado por aqueles dias no Pacheco, em São Gonçalo, cidade vizinha a Niterói.
Naquela oportunidade, estávamos bem menos dispostos a esse tipo de evento que hoje. E foi o que Jane falou para a moça:
- Puxa vida, logo no dia do meu aniversário, você liga para oferecer plano funerário!
A moça se desculpou, constrangida, e nós saímos para jantar, sem a mínima disposição de vestir o paletó de madeira.
E estamos até hoje aguardando novo telefonema.
Desde que não seja no dia do aniversário!
Velório on line, cartum de Nani (em nanihumor.com).

24 de setembro de 2012

SEM PALAVRAS, SEM TEMORES, SEM DESCUIDOS

não há palavras
só os toques sutis do contornar-te o corpo
e a energia que passa por entre as coxas
que vibram e queimam

não há temores
só os reticentes dedos a percorrer-te toda
numa digita paixão a que te entregas frouxa
sem lamentos sem senões

não há descuidos
só os decididos lábios a procurar-te o esconso
num mergulho raso a te sorver o gozo
repetido
                        repetido
                                               repetido

Auguste Renoir, Banhista sentada, séc. XIX (em peintres.celebres.free.fr).

22 de setembro de 2012

A MÚSICA DO MUNDO


Tenho um pé no rock outro pé no samba
Tenho uma mão no blues outra mão no calango
Tenho um ouvido no choro outro ouvido no tango
Tenho uma cabeça em Vivaldi e na África profunda
E o coração por inteiro na música do mundo



                                             Folia de reis (imagem em infoescola.com).

20 de setembro de 2012

LIÇÃO NÃO APRENDIDA

Enquanto tomava meu banho, pus-me a pensar – o banho talvez seja o momento mais propício a que meus pensamentos fluam (talvez por isso nunca poderei escrever um livro, em ambiente tão molhado) – numa imagem recorrente, durante alguns anos de minha vida.
Sempre que ia visitar meus pais e irmãos em Bom Jesus, à noitinha, quando todos íamos nos deitar, meu ex-cunhado (dizem também que não há ex-cunhado: isto é uma instituição eterna) puxava uma espécie de cadeira de praia, colocava-a na varanda de sua casa, localizada nos fundos do terreno da casa de meus pais, abria uma garrafa de cerveja e acendia seu cigarro. A brasa do cigarro era a coisa mais iluminada no escuro da noite fechada.
E lá ficava ele planejando o dia seguinte: suas atividades, suas providências, as soluções aos possíveis problemas. Queimando seu cigarro, sorvendo seus goles!
E isto me dava um sentimento de culpa danado. Nunca planejei o dia seguinte. A não ser, durante o período em que fui professor, por vinte e três anos, com os planos de aula, que me tomavam boa parte das horas de descanso. O que já julgava um exercício penoso. Como, então, ficar planejando minha vida do dia seguinte? Embora, durante muitos anos, tivesse três atividades simultâneas, que me consumiam o dia das oito da manhã até quase as onze da noite. Eu não tinha nada a planejar: já estava tudo determinado. Era apenas seguir o roteiro.
O mais engraçado de tudo isso é que este meu ex-cunhado, por esse tempo, não tinha emprego fixo, não batia cartão de ponto, não tinha patrão. Vivia de coisas temporárias e fortuitas. E eu me encasquetava com seu ritual: planejar o quê?
Passaram-se os anos, e não tenho mais contato com ele. Certo dia, comentei esse meu estranhamento com outros sobrinhos, filhos de outro ex-cunhado, que me disseram que também seu pai tem tal hábito: à noite, para num canto da casa, a fim de pensar no dia de amanhã.
Veja, então, caro leitor, que tive dois professores e não aprendi a lição. Até hoje tenho a maior dificuldade de pensar no dia seguinte, na semana seguinte, no mês seguinte. No ano próximo, então, parece-me futurologia, ficção científica. Eu não serviria como planejador. O que, aliás, não sou mesmo.
E vou vivendo assim, sem ter aprendido esta bela lição: planejar o dia seguinte. Ainda que seja para não se fazer absolutamente nada. Como, desconfiava sempre, ocorria com meu ex-cunhado, que fazia isto apenas para tomar sua cerveja em paz. Porque, naqueles momentos, ele jamais me ofereceu um mísero copinho da loura gelada. E, às vezes, eu ir dormir com a goela seca, ansiando por um bom gole.
É cada ex-cunhado! Por isso é que dizem as más línguas: se cunhado fosse bom, a sílaba inicial não seria a que é.
Imagem em saindodamatrix.com.

18 de setembro de 2012

A POEIRA DA CASA DO MEU AVÔ

A poeira do tempo cobre o tampo da mesa
Da casa do meu avô.
E por sobre essa poeira
Há uma outra camada
Carregada de encanto
Esquecida de limpar
Que foi trazida por vento
Que entrou pela janela
Pela gretinha da porta
Por mais onde possa passar.
E aquela poeira tanta
Das coisas que nos importam
Cobria com o seu manto
Bastante empoeirado
O tempo que havia tanto
Tanto tempo escoado
Sem que se pudesse reter
Por entre os dedos da mão
Mas que ficou bem retido
No fundo do coração.
É a poeira de um tempo
Que se recusa a escoar.

Composição (foto do autor em flickr.com/photos/saint-clairmello).


16 de setembro de 2012

TRAIÇÕES CABOCLAS III

Mais duas histórias curtas de traições longas da vila de Liberdade, antes que ela passasse a se chamar Carabuçu.
A primeira.
L. M. - não vou dizer-lhe o nome, pois, embora morto e enterrado de muitos anos, deixou vasta descendência que ainda se mantém por aquelas bandas - era fazendeiro de estimadas posses, numeroso gado, alambiqueiro afamado e contumaz traidor de sua mulher, em quem fizera uma fieira de filhos.
Diziam as péssimas línguas de então que dona M, mulher dele e mãe da filharada, não tivera as bênçãos das deusas da beleza e, durante anos, sofreu estoicamente as estripulias do marido, que disseminava sua prole terceirizada por toda a parte.
Até que um dia, decidiu ir até a cidade de Campos, para ter um particular com uma teúda e manteúda dele. Foi desarmada de tudo, menos de espírito.
Chegou decidida. Bateu palmas à porta, e ninguém atendeu.
A casa ficava numa espécie de chácara, em centro de terreno. Fixado num toco ao lado, estava um machado, usado para rachar lenda. Dona M pegou o machado e abriu a porta com alguns golpes vigorosos. Entrou pela casa adentro e pôs abaixo, a poder de machadadas, todos os móveis, da sala aos quartos, da cozinha à despensa.
Dali foi levada diretamente, em camisa de força, para o Henrique Roxo, hospital psiquiátrico tradicional da cidade, onde passou seus últimos anos.
Imagem em pt.wikipedia.org.
A segunda.
Mário Nunes, outro fazendeiro das antigas, reinava sobre pastos e plantações com a mesma desenvoltura que sobre as mulheres que lhe estavam à mercê. Lindinalva era uma delas.
Numa casinha simples, caiada de branco, com portas e janelas azul-rei, ela vivia às expensas do fazendeiro, fazendo-lhe aquilo que à esposa era vetado. E, além disso, tinha de si a presunção da juventude e do cheiro de amora na pele trigueira.
Por isso é que, audaciosa, vestiu-se toda bonita e foi até a casa do fazendeiro. Lá, foi recebida pela esposa traída.  Perguntou por ele, se ia demorar, e disse que ficaria esperando que voltasse.
Sentou-se altiva com sua saia rodada, de estampas florais.
Dona Alzira, que no momento esquentava a água para o café da tarde, veio até a sala trazendo o canecão com a água fervente, levantou a saia de Lindinalva e escaldou a área de lazer do marido infiel.
Consta que os lábios ficaram grudados, por derretidos, e tiveram de sofrer lanternagem de doutor diplomado, para tentar recuperar seu antigo jeito.

14 de setembro de 2012

OLHAI

Olhai os delírios de tantos
Olhai aflitos
Para os desatinos
Que os lírios límpidos
Escondem em pétalas cristalinas
A cada gesto perdido dos amantes

Olhai os martírios de quantos
Em amores tardios
Engendram em sobressaltos
Sem prévio aviso
Nos corações dos amantes empedernidos

Olhai contritos
A solidão narcísica
Dos que amam a si
E fazem disto
A construção quimérica de um ilusório paraíso

Olhai tranquilos
Os becos e os caminhos
Que muitos traçam com o compromisso
De juntos irem à busca do prometido
E movem terras e singram mares
E rompem cercas e cortam ares
Até que tudo se tenha cumprido


Pôr do sol em Bom Jesus do Norte-ES (foto do autor).


12 de setembro de 2012

TRAIÇÕES CABOCLAS II

Consta dos anais extraoficiais da família, não escritos e calados durante décadas, que meu avô Juquinha de Paula gostava de uma aventura extraconjugal, o que, para mim, é algo extraordinário, pela imagem que tinha dele: um homem simples, um tanto vergado pelo tempo, sempre de chapéu à cabeça, bigode tradicional enchendo o espaço entre o nariz e o lábio superior, a boca com carência de vários dentes. Quer dizer, a anti-imagem de um fauno. Porém, como qualquer avô, ele também passou por todas as idades, por todas as fases de um homem, e pode ter tido lá seus encantos, seus poderes sobre as mulheres. Como, aliás, todos os nossos antepassados, daqui e d'além-mares, ou não seríamos aos bilhões de hoje.
Uma dessas mulheres, a Fizinha, era justamente a empregada da casa, com quem manteve uma relação que acabou chegando ao conhecimento de minha avó. Segundo as bocas de trapo da época, Papai Juquinha, como afetuosamente o chamávamos, teve até uma filha com a empregada.
Apertado em inquérito conjugal pela delegada da família, minha avó, deu a desculpa masculina esfarrapada de sempre: a mulher se oferecera a ele, que acabou por cair na tentação.
Quando a bomba explodiu na casa dele, a empregada tomou a iniciativa unilateral de não aparecer mais no local de trabalho, porque conhecia muito bem os maus bofes da patroa.
Dona Julinda, que também era carinhosamente chamada por Maína por filhos e netos, resolveu não deixar barato o desfrute da pobre infeliz - naquela altura da vida, mulher não se separava do marido apenas por isso. Chamou Benedito, um fiel empregado da família, a quem encomendou "uma coça bem dada naquela desencaminhadora de marido alheio". Por conta deste trabalhinho extra, ela lhe daria uma camisa de linho, de manga comprida, e seguraria as pontas, caso pudesse haver quaisquer consequências indesejáveis.
Minha mãe conta que, ainda criança, viu o Benedito escolhendo cuidadosamente uma gurumbumba dentre algumas e ainda lhe indagou sobre a finalidade do seu uso. Ele, escamoteando a verdade, respondeu que era para se defender de cachorro brabo pelos caminhos a percorrer.
Posteriormente, dando conta da missão, Benedito revelou apenas que a tunda não foi bem aplicada, porque topou com Fizinha na passagem de uma pinguela, sobre o valão Liberdade, e, assim que lhe deu a primeira gurumbumbada, com a etiqueta de "isso é da parte da minha patroa!", a coitada caiu no valão e aproveitou para fugir.
Como reparou minha mãe, dias depois Benedito estava todo elegante com sua nova camisa branca de linho, a contrastar com sua pele negra brilhosa de sol.

Imagem em entretenimento.uol.com.br.


10 de setembro de 2012

TRAIÇÕES CABOCLAS I

Você vive algumas décadas e pensa que conhece seus parentes. Ledo engano! É mais comum saber da vida de terceiros e quartos, do que da de seus parentes mais próximos.
Foi o que me aconteceu há pouco. Embora há anos tenha tido como que um sinal sobre possíveis comportamentos deletérios entre os Machado.
Tinha lá meus dezoito anos e estava conversando com minha avó Maína na pequena varanda de sua casa, diante da pracinha da vila. De cotovelos fincados na mureta do portãozinho de entrada, olhávamos o quase nenhum movimento da rua.
Súbito, ouvimos a gargalhada característica de meu avô Juquinha a duas quadras dali, cortando o silêncio daquela tarde tranquila. Minha avó interrompeu o que dizia, para comentar:
- Aposto que aquele velho safado está falando de mulher.
Sorri um tanto incrédulo e admirado do ciúme dela. Jamais me passara pela cabeça que Papai Juquinha - assim o chamávamos -, um homem simples, sério, magro, já um tanto alquebrado pela vida, de hábitos metódicos e com poucos dentes na boca, pudesse ainda despertar tal sentimento em minha avó. Ou melhor, que ele fosse capaz de qualquer atitude que desse azo a desconfianças deste quilate. Como convém a um neto, eu o tinha na conta de um velho sempre ajuizado.
Há pouco, no entanto, minha mãe - e filha dele - resolveu contar algumas passagens sob tal rubrica, peripécias que eu nunca sonhara fosse Papai Juquinha capaz de praticar.
Uma delas, por exemplo, quase acaba em tragédia empapada de sangue, bem ao gosto de Nelson Rodrigues.
Meu avô mantinha um calamengau presumivelmente secreto com certa mulher casada das imediações, dada a desfrutes de lençóis e travesseiros. Como se isto fosse possível numa vila que não chegava a três mil almas, muitas delas fofoqueiras até o cerne do ectoplasma.
Claro está que, mais dia, menos dia, tal saliência iria cair nos ouvidos da Maína, que nunca teve na vida a temperança como virtude.
E que providências ela resolveu tomar? Uma das piores: passou a mão na espingarda cano duplo, que meu avô usava para caça, decidida a partir para a casa da sirigaita. A sorte é que ele chegava no exato momento em que ela saía porta afora. Ainda na calçada, ele se agarrou à espingarda, que não conseguia arrancar das mãos poderosas da Maína, uma mulher tão ou mais forte que ele. Percebendo que não a venceria em força e disposição, porque ela estava movida pelo mais poderoso combustível humano - o ódio -, não teve alternativa a não ser pedir ajuda ao Valdemar Sapateiro, que tinha sua oficina de remendos bem diante da sua casa.
Num átimo, Valdemar abandonou sovelas e couros, para ir em socorro do vizinho. Acabaram os dois por se atracar com a minha avó e, assim, arrebatar-lhe a arma das mãos, não sem alguma dificuldade, pois o sapateiro também era de corpulência praticamente esquelética.
Ela entrou para casa, furiosa, e ele botou suas inexistentes barbas de molho.
Imagem em angelabeneguedes.blogspot.com.
Daquela vez foi por um triz, como se dizia à época.
A fúria dela, porém, não se aplacou. Como não tivesse levado a termo seu plano de matar a amante, engendrou outro ainda mais desesperado e trágico.
Foi até a farmácia e pediu ao dono, Francisco, que lhe fornecesse uma dose de veneno que pudesse liquidar com algumas formigas que apareceram em sua casa. O homem lhe deu o veneno num pequeno vidro, recomendando-lhe expressamente todo o cuidado em seu uso, sobretudo que ele ficasse fora do alcance da sua penca de filhos.
Alguns minutos depois um amigo comum, de nome Paulo Barbosa, conta ao farmacêutico sobre a história da espingarda e do desespero de dona Julinda, o nome da minha avó. De imediato, Francisco entendeu o plano suicida dela e correu até sua casa, onde já não se encontrava meu avô, que fora trabalhar.
O farmacêutico, então, solicita que ela lhe devolva o produto. Ela, de início, se recusa. Francisco vê a cena trágica armada diante de si, sobretudo a culpa que lhe caberia em contribuir por deixar órfãs aquelas crianças ali sentadas à mesa do almoço. Ele não queria ter este remorso pelo resto da vida. Sem saída, diz para minha avó que não sairia de perto dela nem um instante, enquanto ela não lhe restituísse o veneno. E pôs-se a andar atrás dela por todos os cantos da casa, por onde ela se movimentava.
Maína, vendo que o farmacêutico não arredaria o pé e ouvindo as ponderações este lhe fazia, esfriou a cabeça atormentada e devolveu o frasco a Francisco, que voltou aliviado à sua botica.
Desta vez, minha avó não matou nem se matou. E pôde continuar sua vida, lidando com as novidades que as futriqueiras de sempre lhe traziam com frequência.

7 de setembro de 2012

EU NÃO AMEI AS PALAVRAS

eu não amei as palavras
não tive com elas um caso de amor.
eu as usei simplesmente
abusei delas.
eu as violei com ânsia num beco escuro
as ancas voltadas para mim.
me servi delas com violência
e – saciados meus instintos –
abandonei-as por impuras
todas essas palavras
todas essas putas.

Imagem em allmylifepatnog.blogspot.com.

5 de setembro de 2012

SOB A JANELA DO QUARTO


a rua passa com pressa sob a janela do quarto
no teto desenhos de luz e sombra
na cabeça o repetitivo resto
de ruído da rua passando a esmo
sob a janela do quarto


Van Gogh, O quarto, 1888, Museu D'Orsay, Paris.

3 de setembro de 2012

LIVRAI-NOS, Ó SENHOR!

Livrai-nos, ó Senhor, dos ursos peludos
Das baratas cascudas
Dos escorpiões peçonhentos
Dos touros furiosos
Dos cachorros doidos da minha infância
Dos morcegos nojentos e seu voo aleatório
Dos peixes fritos cheios de espinhas que engastalham na garganta da gente
Do ensopadinho de maxixe
Das variadas verdades únicas e absolutas
Das promessas de campanha
Dos corruptos passivos ativos e inativos
Dos trens de subúrbio na hora de pico
Da cerveja choca e do vinho avinagrado
Dos planos de salvação nacional
Do torresmo rançoso e do sarapatel sem farinha
Do colesterol descontrolado
Da glicemia açucarada
Da pressão destrambelhada
Dos dízimos das esmolas e dos óbulos
De toda pregação religiosa para nossa salvação compulsória
Da micareta de época e de fora de época
Das bandas de axé de forró e de sertanejo universitário
Do carnê do crediário bem como dos juros bancários
Do papel miserável de palhaços
De trouxas
De inapeláveis pagadores de impostos
Da dependência da justiça e da saúde públicas
Do motor do dentista e do fiapo de carne no dente
Da carência afetiva
Do bife de soja e do pão sem glúten
Da leniência das autoridades constituídas
E de uma vida repleta de sonhos irrealizados e de esperanças vãs!


Imagem em redemaranatha.com.br.


1 de setembro de 2012

POEMA LINEAR Nº 2: GLAUCO&LUZIA


Luzia não tinha a capacidade de ver o cego amor que por ela Glauco nutria.
Glauco que um dia, ao ver luzir a luz dos olhos de Luzia, achou que tivesse perdido o rumo, perdido a trilha da vida e entrado num desvio. Como cego em tiroteio. Como cachorro caído de mudança.

Mas Luzia insistia na indiferença perversa de fingir que não notava o cego amor que ela claramente via de quem só tinha olhos para seus olhos de jade: Glauco.
E Glauco, infausto, com o desdém de quem seu amor desmerecia, cegou seus olhos, como um Édipo vadio. E daí por diante o que veria seria o sem fim da escuridão.

Luzia, então caída em si, atormentada por remorsos, serviu a Glauco de guia até o fim de seus dias.

Bartholomäus Spranger, Glauco e Cila , 1580/1582 (em pt.wikipedia.org).