14 de janeiro de 2021

DE ONTEM PRA HOJE E ASSIM POR DIANTE

Fazia um frio fininho. Vinha vindo um vento leve e perfumado de verde do lado da morraria que fechava o horizonte da fazenda. O sol descaía mansamente do outro lado, manchando de cores as nuvens que o céu bordava com novelos de algodão. A criação de terreiro procurava o rumo da proteção contra os sortilégios trazidos pela noite, enquanto os animais de pasto cessavam o bulício natural da lida. O dia se recolhia.

Acomodada ao pé do rádio de pilha, a mulher acompanhava a Hora do Angelus, como de costume, até que entrasse o prefixo musical do noticiário, quando então se dirigia à cozinha para terminar a janta, começada um pouco antes das dezoito horas. Na mansidão da casa vazia, só se ouviam seus passos e o barulho da faina de preparar a comida.

Daí a pouco chegariam da escola, localizada na vila a quase uma légua de chão, seus três filhos – dois garotos e a menina caçula – com os barulhos infantis, as novidades escolares e um apetite avassalador. O marido, em seguida, dava sinal da sua presença, ao bater a porteira à passagem da mula que cavalgava, assoviando alto, num código estabelecido na família.

- Papai está chegando! – exclamava sempre um deles.

Todos entravam pela porta dos fundos, que dava imediatamente na cozinha ampla, um patamar abaixo do restante do espaço construído. A casa se postava acima do terreno cerca de um metro e meio, sobre pilares de madeira, entre os quais havia uma espécie de porão para a guarda de tranqueiras. Os quartos, a sala e o alpendre, que se abria em direção ao terreirão de café e à estrada de chão, estavam a quatro ou cinco degraus acima do nível da cozinha.

Naquela hora do dia, já baixada a noite nesse tempo frio, a escuridão se estendia sobre todo o espaço que a vista alcançava. Aos poucos, começavam a acender seus candeeiros e lamparinas as casas dos colonos que salpicavam o terreno, do outro lado da estrada. E o jenipapeiro frondoso, a dominar o morrote diante da porteira, principiava a desaparecer sob o manto escuro que se fazia, juntamente com os animais abrigados sob sua copa.

A casa da fazenda se iluminava fracamente com a energia produzida pelo dínamo a carvão, desde o escurecer até o clarear do dia seguinte. Havia sempre alguém incumbido de pôr a geringonça a funcionar, tão logo o lusco-fusco baixasse: direcionar o jato que corria pela banqueta de terra em direção à roda d’água, a qual, por um sistema de correias, fazia girar o dínamo.

Cessados os barulhos dos afazeres próprios da fazenda, a cantoria dos grilos, das cigarras, dos sapos e de uma e outra ave noturna concertava a sinfonia comum daqueles ermos, a se misturar então com a voz cadente dos locutores da Voz do Brasil.

- No Rio de Janeiro, dezenove horas!

E era o único sinal, naquele instante, a ligá-los ao mundo exterior pelos idos dos anos cinquenta do século passado.

A mulher punha a mesa e chamava todos ao jantar, após a última criança tomar seu banho, vestir o pijama e passar o pente nos cabelos rebeldes.

A comprida mesa, de madeira natural, ladeada por dois bancos da mesma extensão comportava a família e quem mais chegasse. O marido se sentava à cabeceira, como o hábito da época, puxava seu copinho de pinga, dava uma boa talagada, estralava a língua e servia seu prato. Em seguida a mulher, que também providenciava os pratos dos três filhos. Não se recusava alimento. Todos comiam de tudo que estivesse servido à mesa: arroz, feijão, angu, bife de fígado acebolado, quiabo, taioba e tomates cortados em rodelas generosas. Nem que fosse um pouquinho.

Terminada a refeição, o homem, quando não tinha registros de atividades a fazer, ia ler os jornais vindos da capital com alguns dias de atraso, sem se importar com a atualidade da informação. Para quem nada sabe, tudo é novidade, dizia ele. E ficava a par das maquinações políticas, da variação dos preços do café, do resultado da Loteria Federal e das últimas do futebol carioca. O seu time, o América, fazia bonito no campeonato daquele ano, com as defesas milagrosas de Pompeia, o Constellation, o goleiro que voava na pequena área, como pontuavam os locutores.

Enquanto isso, as crianças preparavam as lições de casa para a aula seguinte, enquanto a mãe voltava para perto do rádio, sintonizado na novela do momento, n’A Lira de Xopotó ou no Balança Mas Não Cai.

Daí a pouco era hora de todos se recolherem para o sono da noite.

No dia seguinte, mal raiado o sol por detrás da morraria, o casal e os meninos pulavam da cama, aos primeiros acordes do galo mestiço, para continuarem a faina interrompida com a noite. Por entre a cerração baixa que impedia ver longe, enevoando de branco a paisagem ao redor, um abria o galinheiro, chamando as galinhas com a vasilha de milho; outro levava a comida dos porcos em suas cevas; um abastecia a moega com a palha de milho, combustível a acender o fogo para o café; enquanto a mulher moía os grãos torrados, preparava o coador de pano sobre o canecão de ágate, punha a água a ferver, passava o café e chamava todos, assim que a mesa estivesse posta: café, leite quente, banana cozida com canela, queijo curado, manteiga, pão requentado ao forno.

- Café na mesa!

Em instantes chegaria o tropeiro, para ajuntar os burros da tropa, com sua saudação rotineira:

- Ô, de casa! Tou chegando! Bom dia para todos!

Um pouco depois eram o seleiro, os cuidadores da estufa de mudas de café, os campeiros...

E brotava mais um dia buliçoso na vida daquela gente. 


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