21 de junho de 2020

RECADO AO AMIGO


Me espere no bar em frente à praça
Peça uma cerveja
Chego já
Se não quiser
Peça um café
E me aguarde
Não hei de me atrasar
Temos muito a nos dizer
Há tanto não nos vemos
Isolados em casulos
Em que nos mantivemos sós
Acumulando assuntos
Tecendo ideias
Adiando os problemas para o fim do mundo

Esteja atento aos que passam
Todos devem ir felizes
Como também estaremos
Sem as amarras nos pés
Sem o medo do vento
Espere que logo chego
Para outros abraços
Quanto tempo faz que não nos vemos

Se estiver frio
Peça um chocolate quente
Raspe bem a garganta
Para que a voz flua incontinente
A jorrar aquela boa conversa antiga

Já estou chegando
Me espere no bar
Vamos retomar o fio da conversa
Que ficou suspensa
Peça uma cerveja
Um café
Um chocolate quente
E malgrado esse contratempo
Seremos os mesmos amigos para todo o sempre.



At the Cafe by Pauline Roche Oil ~ 12 x 9
Pauline Roche, No café (paulinerochefineart.com)

10 de junho de 2020

TATÃO LADINO, OU UM DIA NA VIDA DE UM HOMEM SIMPLES


De já hoje topei Zeca em riba da ponte pescando lambari. O dia ainda tava claro, e ele ali meio desinsofrido. Aí foi assossegar as caraminholas da cachola pra mode não ficar doido de vez. Parei pra trocar dois dedos de prosa com ele, falar bobagens, assuntar a vida, discutir o último jogo do Liberdade com o Olímpico, mas ele não tava aí pra conversa. Deu uns muxoxos a cada palavra minha, sem ânimo pra nada. Desconfiei daquilo.
- Que que tá pegando, Zeca? Tá encafifado com alguma coisa? Desembucha aí, que é melhor.
Zeca não queria se abrir. Aliás ele tem muita dificuldade de botar pra fora seus problemas. Mas, eita!, todos nós temos problemas! Eu mesmo mal desembaraço de um e já me enredo em dois ou três, em seguida, cada um mais cabeludo que o outro. Então é comum a gente viver arrodeado de problemas. O homem é uma ilha arrodeada de problemas, penso eu.
Zeca remancheou um pouco, se fez de desinteressado, não queria incomodar o amigo com seus desassossegos, que ele chama de grumixamas, que eram coisas lá dele, que podiam ser resolvidos com o tempo. Pra dizer a verdade, nem sei de onde ele tirou grumixama para problema. Será que é pelo som da palavra? Se fosse cipoal, a gente ia atinar melhor. É que problema parece mais com cipoal, que você tem de vencer na base do facão de mato afiado.
- Às vez o tempo não dá tempo pra resolver, Zeca. Tresantontem mesmo era o compadre Joanico às voltas com problema com o burro da carroça. O bicho apareceu sorumbático, olhar de peixe morto, que fez Joanico se valer do Filhinho Gregório com uma garrafada de ervas do mato. Foi só meter a beberagem goela adentro dele, pra em poucas horas o Jeitoso, que é o nome dele, voltar ao que era. Já tá lá todo felizão puxando a carroça, como se fosse a melhor coisa do mundo.
- Mas eu não tou precisando de garrafada de Filhinho Gregório nenhum, Tatão! – disse ele meio arrevesado.
Meu nome é Sebastião Ladino, mas todo mundo só me chama de Tatão. Por aqui, quando eles põem sobrenome, é à moda antiga, ligando a gente ao pai ou à mãe: Tatão do Hortêncio. É, meu pai era o Hortêncio Ladino, dos Ladinos lá do Caparaó, que Deus o tenha, que chegou na vila há um tempão. Aqui tenho a fama do meu sobrenome verdadeiro. Gosto de puxar assunto com os outros. Há sempre um pessoal meio casmurro, de poucas palavras, mas eu não: eu gosto de uma prosa, qualquer que seja seu rumo. Por isso é que resolvi indagar do Zeca aquele jeito esquisito dele, ali, pescando num lugar onde quase ninguém pesca. O poço que fica embaixo da ponte não tem pesqueiro bom. Isso agora, pois em antigamente era só jogar o anzol e puxar um piau, um mandi, um lambari. Depois, também, Zeca é meu amigo desde menino. Praticamente a gente foi criado junto, brincando pelos pastos, subindo em árvores, chupando fruta madura do quintal, levando corrida de cachorro bravo, caçando passarinho com bodoque, tomando banho no poço do valão. Até a escola nós frequentamos juntos, na mesma sala, com a mesma professora, levando os mesmos pitos. Nossas famílias sempre moraram uma perto da outra, lá para os lados das terras do doutor Ferolla.
Ah! esse era outro homem bom! Eh, doutor Ferolla! Deu até o terreno para o Liberdade fazer o campo de futebol, cercado com aquele muro alto, que a criançada pula para jogar bola, nas horas vagas. Tá lá o nome dele escrito na parede da entrada, na cor azul: Estádio Doutor César Ferolla. Eu mesmo não me alembro dele. Mas meu pai falava muito bem, dava boas referências dele. Que era um médico de bom coração, prestativo, atencioso.
Mas resolvi deixar o Zeca pra lá com suas preocupações. Não quer me falar, então azar o dele! Ele que resolva sozinho. Se quiser tou aqui para ajudar.
- Então tá, Zeca! Na hora que precisar, tou aí. Sabe que pode contar comigo.
E saí dali sem ouvir se ele respondeu ou não. Isso também não me chateia. Tou acostumado a esse pessoal de poucas palavras. Cada um é do seu próprio jeito e a gente não pode mudar: o pau que nasce torto morre torto, já diz o ditado popular.
Um pouco depois, mais à frente, parei na venda do Argemiro para comer um pé de moleque. Cheguei como sempre: cheio de espalhafato e boas intenções:
- Boas tardes, Argemiro! Já cheguei doidinho por um doce daqueles que só dona Zezé sabe fazer! Já tem pé de moleque fresquinho?
Eu sabia que, mais ou menos àquela hora, dona Zezé já estava com o tacho pronto, fazendo aquele doce que todos nós apreciamos tanto. E eu, principalmente, gosto dele quentinho, ainda meio mole. É que depois que esfria ele endurece, e aí a gente que usa dentadura postiça fica com mais dificuldade pra quebrar o doce nos dentes. Até ando prevenido, com meu canivetinho Corneta cabo de chifre no bolso, pra certas ocasiões. Uma delas é cortar o pé de moleque em pedaços pequenos, pra não correr o risco de a dentadura pular da boca, na hora de morder. Aliás tou carecendo de voltar no Dirceu Dentista, pra mode ele ajustar essas dentaduras. Tem horas que fica chato falar, e elas ficam pererecando na boca, ameaçando cair em cima do vizinho de conversa. Imagina o papel miserável que isso seria!
Argemiro trouxe lá de dentro – a venda fica na parte da frente da casa de moradia – uma peneira com alguns doces para eu escolher. Olhei um bem graúdo, lotado de amendoim, e peguei. Ele ainda tava morninho, bem do jeito que eu gosto. Depois da janta – a gente na roça janta no finzinho da tarde – comer um pé de moleque quentinho é tudo de bom na vida.
Aí puxei assunto com o vendeiro, que também não é de muita conversa, mas não interrompe nenhuma que foi puxada. Como ele gosta muito de passarinho e de pescar, indaguei da próxima pescaria. Isso era sábado e quase todo domingo é certo de a turma dele sair pra beira do Itabapoana, lá pelas terras da viúva ou do Jorge Assis, pra jogar sua isca na água e apagar um pouco as preocupações que rondavam a vida. Por essa ocasião, as rádios viviam dando notícias da briga do Lacerda com o doutor Getúlio, e o povo andava preocupado aonde isso ia chegar.
Ele então me disse que já tava tudo combinado com o Domingos Peçanha, o João Coleto, o Alcino Carroceiro, o Alcides Almeida e o João Dutra. Eles sempre partiam cedinho, ainda dia escuro, em cima de suas bicicletas, rumo aos pesqueiros da região. O melhor, segundo ele, ficava na curva do Jorge Assis, ponto onde o Itabapoana desguia seu leito um pouco pra esquerda, junto a uma pequena mata onde há bandos de macacos-prego.
Conforme ele me falou, dali se tira muito boa pescaria: piaus grandes, traíras gordas, grumatãs largas, corvinas bonitas e, quando o pescador é sortudo, dourados e robalos de tamanho avantajado. Até mesmo cachimbau Argemiro consegue fisgar, nos tempos desse peixe, que é muito arisco e escondedor em locas e grutas afogadas. E ele tira com vara de pescar mesmo, com uma técnica que inventou, só observando as negaças do peixe, que gosta de mamar a isca encastoada na ponta do anzol.
Fiquei ali conversando, puxando assunto, agora sobre coleiros, canários, bicos-de-lacre, curiós, trinca-ferros, papa-capins, até o fim da consumição do segundo pé de moleque, que comi bem devagarzinho, pra aproveitar o gosto. Paguei e fui pra barbearia do Moreninho bem em frente. A essa hora da tarde, já começa a juntar freguês pra aparar o pico e rapar a barba. Moreninho cortava o cabelo do Enéas, enquanto o Louro e o Dirceu do Pequetito esperavam sua vez. Entrei, cumprimentei os presentes e me coloquei na fila.
- Marraio aí, Moreninho.
É difícil encontrar um barbeiro soturno, trancado. No mais das vezes, são falantes e comunicativos. Na vila, além do Moreninho, tem o Nego Souza e o Adolfo. Só esse último é meio carrancudo, de poucas palavras. Por isso é que me dou bem nesse ambiente. Não há um instante em que a gente deixe de conversar. Sai tudo que é assunto, principalmente de futebol. O jogo do Liberdade contra o Olímpico, no último fim de semana, no nosso campo, então, é assunto que só termina quando ocorre outro jogo. E se fala de Vasco, de Botafogo, de Fluminense, de Flamengo. Só não se fala da vida alheia. A vida alheia ali na barbearia do Moreninho é assunto proibido. Se alguém começa com assunto de “eu ouvi falar que a mulher do”, o barbeiro logo interrompe, sem deixar que o boca de trapo cite o nome do pobre coitado, que já deve de estar sofrendo nas línguas ferinas de uns e outros. E logo emenda assunto de cinema, que é outra questão da sua preferência. Precisa ver como os olhos dele brilham quando fala de Brigitte, Marilyn, Rita e Eddy. Até deu o nome de uma de suas filhas dessa última: Edilamar, assim mesmo conformado ao nosso jeito de escrever.
Ali fiquei bem uma hora e, de barba feita, Aqua Velva cheirando até a pracinha do Sabiá, procurei rumo do bar do Tônio Pinto, na esquina da rua do clube, onde gosto de ir pra dar minhas tacadas na sinuca. Chegando lá vi que já estava armada uma partida de vida. Ciloca, Neca Adolfo, Nico Dutra e Romeu apostavam dinheiro em suas bolas. Preferi não entrar. Era mais prudente. Eu ia perder meu suado dinheirinho com a maior facilidade. Aqueles quatro tinham o taco calibrado, sola empoada de giz e uma visão de gato. Aí resolvi dar uma de sapo, só olhando e me deliciando com as jogadas que cada um armava. Na verdade, só de ver os quatro jogando a gente já fica contente. Todo jogo bem jogado é bonito, é emocionante. Até mesmo jogo de baralho. Algumas noites, por exemplo, vou para o reservado do bar do Tônio pra jogar. Às vez chego atrasado e a mesa tá completa. Então fico de sapo, olhando, aguardando minha vez, com a desistência de alguém. E vejo as manobras jeitosas de um e de outro – e sempre de bico calado – na combinação das cartas do pife-pafe ou do cunca. E é bonito de ver um descarte final, com os outros jogadores xingando e jogando as cartas da mão sobre a mesa verde, lamentando a partida perdida. O Herson é o mais espalhafatoso. Quando compra uma carta boa de encaixe numa sequência, enfia a bichinha no lugar, empurrando com o cotovelo. Aí os demais já sabem que o jogo tinha melhorado pra ele. A não ser que fosse um blefe, muito comum entre nós.
Mais tarde, lá pelas oito e meia, nove horas, vou até a venda do Nalim, onde tenho uma caderneta de fiado, e pego os mantimentos da semana, que o Dadá tinha separado seguindo minha listinha. Ponho tudo num saco de aniagem branquinho, branquinho, lavado com capricho pela patroa, meto ele nas costas e volto pra casa, caminhando devagar, matutando sobre as coisas da vida, contando os passos que me separam da Rua, que é como a gente chama a vila, depois de cruzar novamente a ponte onde encontrei Zeca quando chegava, e pegar a estrada que segue poeirenta para as propriedades espalhadas pela vargem grande aos pés dos morros em volta. Em noites de lua cheia, nem precisa da lanterna que trago no bolso da calça. A luz do luar, no meio de um mundaréu de estrelas dependuradas no vão do céu, prateia a imensidão dos pastos em volta e alumia o caminho que me leva de volta à minha casinha humilde, mas muito bem cuidada pela mulher. Quando chego, os meninos, ainda acordados, esperam que, de dentro do saco, saia uma bala, um biscoito ou um pão doce, que sempre pego na padaria do Chico Furtado, bem ali ao lado da venda do Nalim. E com esse gostinho doce, a gente sopra a chama das lamparinas, faz escuro nos quartos e ferra no sono, com a certeza de que o dia seguinte vai fazer a gente pular da cama com toda a disposição, porque para a criação de terreiro não tem sábado, domingo, dia santo ou feriado.

Cézanne: vida e obra - Toda Matéria
Paul Cézanne (1839-1906), Os jogadores de cartas (1892) (em todamateria.com.br).