30 de janeiro de 2014

HUMOR POLITICAMENTE ENGASGADO



Não sei realmente se esta explicação que lhes vou dar é necessária. Talvez ninguém esteja nem aí para o que eu escreva ou não escreva. Alguns podem até achar perfeitamente dispensável qualquer coisa que eu coloque nestas bem traçadas linhas. Há, inclusive, aqueles que acham a Literatura completamente dispensável. E olhem que nem chego a fazer Literatura. Paulo Coelho também não faz e tem prestígio à beça! No entanto, ainda assim, julgo que seja importante explicar-lhes de que se trata meu humor, de como ele é feito. Esta é uma pretensão minha. E aos pretensiosos se deve dar, pelo menos, uma chance.
Isto se eu não estiver de mau humor. Aí, estando de mau humor, não se justifica explicação nenhuma, porque de mau humor ninguém dá satisfações a outros. Como, porém, quase nunca fico azedo – não quero ser pretensioso (Vejam a pretensão outra vez insidiosa em meu espírito!) ao extremo e dizer que nunca estou de mau humor –, imaginei estas considerações.
Para dar um exemplo do meu quase excelente humor cotidiano: há cerca de três décadas, aprendi com o amigo Luiz Fernando Gualda, brilhante professor, a tomar café sem açúcar. Até hoje este hábito ainda causa estranheza em cafeterias e bares, quando recuso açúcar ou adoçante. Brincando, sempre digo para o/a atendente assustado/-a: Para mim, de doce, já basta a vida. Isto se o Botafogo estiver dando alegrias. Caso contrário, digo: Quem é torcedor do Botafogo não está merecendo adoçar nada.
Como veem, até para tomar um prosaico cafezinho, sou bem humorado.
Contudo quero afiançar-lhes que meu humor vai além do café. Invade, às vezes, outras refeições e outras atividades diárias. Como uma feijoada completa quase às gargalhadas.
Já quanto à ideologia – coisa muito importante nos dias de hoje, ou pelo menos desde que Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista, em 1848 –, devo confessar que meu humor é politicamente engasgado. É isto mesmo: engasgado; e não, engajado. Embora tenha, durante minha vida, flertado com a direita (fui lacerdista em jovem) e com a esquerda (fui fanzoca de Fidel e Mao, posteriormente), agora não me considero nem de direita, nem de esquerda, nem de centro. Sou da periferia. Sou da Freguesia do Ó.
Também com a classe política que temos, só se pode ficar mesmo é engasgado o tempo todo. Daí o humor politicamente engasgado. A maioria esmagadora de nossos próceres não me passa pela garganta. Por este motivo, não tenho engajamento nenhum. Nem me peçam isto! Já engasgamento, algum! Ou bastante!
Vi, por exemplo, Maluf dizendo, numa entrevista, que tudo o que dizem dele só poderá ser considerado verdade depois da condenação final pelo STF, mesmo assim com recurso aos anjos, santos, a Deus todo poderoso e a todos os orixás. Segundo ele, é tudo maledicência de opositores. E ainda assim, desconfio, restaria a dúvida de que o próprio Deus não estaria no seu juízo perfeito, ao condenar um homem puro, casto, ético e devotado às causas da população mais necessitada como ele. Praticamente um santo!
Aí, como vocês querem que eu me engaje em política? E também não tem como engolir. Então eu me engasgo: assim, meu humor é politicamente engasgado.
Estamos conversados?

Ilustração colhida em mundoeducacao.com.br.

26 de janeiro de 2014

DESCONFIAR

fi-
ar-te
o meu
a-
mor
inteiro
ain-
da que
por par-
tes
po-
de ser
uma
catá-
strofe
ou po-
de ser
um
des-
astre

Hieronymus Bosch (1450-1516), O navio dos loucos (em pt.wikipedia.org).

23 de janeiro de 2014

PANCADAS EM DOSES CAVALARES (II)

Arlindinho não se emenda.
Eram oito horas da manhã, quando liga para a irmã, aos prantos, de sinceras e doridas lágrimas:
- Fá! - É assim que, carinhosamente, chama sua irmã Fabiana. - Ela me bateu novamente. Não aguento mais!
Arlindinho tem o péssimo hábito de apanhar da mulher, Claudirene, a qual, inclusive, montou cozinha apetrechada com panelas e frigideiras de alumínio reforçado, com as quais estilhaça a cara do frouxo marido, com assustadora periodicidade.
Agora corre na cidade, da Beirola à Praça Astolfo Dutra, que a esposa é viciada em adrenalina e, nos momentos de síndrome de abstinência, procura reequilibrar o metabolismo orgânico com algumas e variadas pancadas nos cornos de Arlindinho. E sempre que, por algum motivo, passa mais de uma semana sem puxar ferros na academia onde contorna seu bem apessoado corpo, o marido sofre as consequências.
Quando ocorrem essas crises cumulativamente com a sua sinistra TPM, é praticamente o princípio do cataclismo derradeiro. É dia de os vizinhos gastarem o dedo no 190, em socorro da patrulhinha da gloriosa polícia capixaba.
Nesse dia, no entanto, Arlindinho tinha chegado ao limite de seu papel de saco de pancadas. Por isto, o telefonema para a irmã:
- Fá, ela me bateu de novo! Não aguento mais! Estou pensando: ou me mato - tomo chumbinho com guaraná -, ou vou para Guaxindiba!
Aqui é necessária uma digressão, para que o amigo leitor possa aquilatar o peso da decisão de Arlindinho.
Guaxindiba é uma singela praia do litoral norte do Estado do Rio, localizada no recém-empossado município de São Francisco do Itabapoana, a qual banha seus frequentadores com uma água achocolatada, produto da boca do rio Paraíba do Sul, ali próxima. E foi aí que este narrador, em seus calções de menino, conheceu a vastidão do mar pela primeira vez e pode garantir que ela não tem atrativo nenhum, pois é uma razoável longa extensão de areia, sem reentrâncias, sem curvas, sem baías, de uma visão monótona e sem sabor. Em princípio, só vai a Guaxindiba quem não tem mais nada o que fazer. Ou quem sofreu alguma decepção amorosa. Ou quem pensa, sinceramente, em dar fim à existência.
Assim se explica a dúvida que assaltou o espírito enxovalhado do pobre Arlindinho, após a sessão de pancadas daquela quarta-feira de manhã, sem nenhuma data comemorativa que a justificasse. Se, ainda, fossem vésperas de Finados, Dia de Reis, ou da Festa de Outubro, que a prefeitura local antecipou para abril, tudo estaria explicado. Mas, assim, sem mais nem menos, numa irrisória quarta-feira de outono, a coisa não era suportável.
Fabiana ouviu a cantilena do irmão, useiro e vezeiro na prática do levar cacete, e foi taxativa:
- Arlindo! - A situação exigia seriedade, e ela optou por não usar o hipocorístico do nome do mano. - Arlindo! - E repetiu, para que não restassem dúvidas sobre a seriedade de suas palavras. - Você é quem sabe: se matar ou ir para Guaxindiba é a mesma merda. Você escolhe. Só lhe peço uma coisa, Arlindo: o que você fizer é só depois me comunicar, para eu não ficar igual uma doida atrás de você. Entendeu?
E bateu o telefone sobre as lágrimas desinsofridas de Arlindinho, que até o fechamento deste prosaico texto, ainda não se decidira sobre tão importante sentença: se se mata com chumbinho com guaraná, ou se vai passar uns dias nas águas achocolatadas de Guaxindiba.



19 de janeiro de 2014

PANCADAS EM DOSES CAVALARES (I)

Arlindinho passou pela Praça Astolfo Dutra, cabeça erguida, com uma sem-vergonhice constrangedora até para os mais despossuídos de caráter. E os gatos-pingados que por ali estavam àquela hora da manhã foram os primeiros a testemunhar aquilo.
E desfilou empáfia e bazófia pela Rua Major Bley, até passar pela ponte e atingir o outro lado, outro estado, num cortejo interestadual vergonhoso, de atravessar fronteira.
Era segunda-feira, e Arlindinho tomara uma proverbial coça de sua legítima esposa, Claudirene, mulher de péssimos bofes, havia apenas quarenta e oito horas. Foi coisa de dar polícia, chamada às pressas pelo 190, às oito horas da manhã, logo após o café.
Os vizinhos, já acostumados aos barracos do casal, naquele dia se assustaram com a gritaria e os barulhos produzidos pela briga.
Claudirene adquirira know-how nessas coisas. Tanto que só abastecia sua cozinha de caçarolas e panelas de alumínio reforçado, espessura 2mm no mínimo, e vassouras e rodos de cabos resistentes. Que eram para ser usados no lombo daquele seu marido, mais desqualificado que testemunha falsa em processo de injúria, calúnia e difamação.
Especificamente naquele sábado auspicioso, em que deveria comparecer à festa de noivado de sua irmã caçula, a mulher desceu, com vontade, no lombo do marido, o cabo da vassoura de vasculhar o teto da casa, que era capaz de pegar o vagabundo a uma distância de três metros. Era um recurso inescapável.
Nessas ocasiões, exalava do bafo de Claudirene um cheiro esquisito de enxofre, de lembrar o Demo. Ela ficava possuída.
Quando a patrulhinha chegou, com o estardalhaço da sirene ligada, à porta da casa, Arlindinho não permitiu que os agentes da lei adentrassem o sacrossanto recesso daquele lar onde o pau comia pior que em casa de Noca. Ele era o absoluto senhor dos opróbrios. E disso não abria mão, por nada nessa vida!
Sem poder agir, os policiais deixaram o desavergonhado à própria sorte e voltaram à delegacia. Só retornariam em caso de crime de morte, com derramamento de sangue ou esquartejamento.
À noite, durante a festa de noivado, estava lá o casal, como se nada houvesse acontecido. No final, Arlindinho, já tonto de uma saraivada de chope acolitada por fieiras de samba em Berlim, chorou com os vergões nas costas, produzidos pela destemperada.
Na cidade, pequena, é bom que se diga, quase toda a população sabia dessas tendências de Arlindinho a saco de pancadas da mulher. E o agravante da situação é que ele era filho de um ex-beque de espera do glorioso time local, cuja fama foi aberta a botinadas nas canelas dos atacantes adversários. O que lhe rendeu o apelido desabonador de Gervásio Ignorante. Até quando os jornais locais, A Voz do Povo e O Norte Fluminense, noticiavam, na seção de esportes, os embates da liga de futebol, davam na escalação do auri-rubro: Gato, Cadinho e Gervásio Ignorante; Braz, Temildo e Baiano; Branco, Zé Cabeça, Zé do Olinto, Quintino do Cartório e Jésus.
Como que para pagar todas as tentativas de assassinato que cometera nas quatro linhas, sua maldição foi ser pai de um homem frouxo, apanhador de mulher, na pior acepção da palavra. Até seu neto de doze anos lhe puxara tal desvio de caráter e quebrara a perna de seu melhor amiguinho nas peladas da escola. O filho, não! O filho era como se fosse a prova contra o pai, de que diz Dalton Trevisan em sua obra. Oh, vergonha!
Mas Arlindinho era justamente o contrário disso tudo. E, por isso, é que passava pela pracinha, naquela manhã de segunda, em direção ao Estado do Rio - como se diz ao atravessar a ponte sobre o Rio Itabapoana -, com a cara mais desavergonhada, ostentando no olho esquerdo, tal medalha de mérito militar, uma roxidão catastrófica, realizada a poder de potente frigideira de alumínio batido, 30cm de diâmetro, espessura 2mm, cabo de madeira prensada, resistente a água, marca Tramontina.

16 de janeiro de 2014

CHOVE


chove lá fora como sempre
e faz frio
mas não há nada demais
a não ser os guarda-chuvas molhados
e o asfalto escorregadio.
chove sobre a cidade inteira
e não há nada demais
senão as ruas cheias de transeuntes
e os corações vazios.
chove dolentemente sobre quase todo o país
e não há nada demais
os homens continuam procurando o rumo
outros buscando o lucro
e tudo mais não passa de um pouco de ilusão.
chove preguiçosamente sobre o planeta
e faz um frio geral nas consciências entorpecidas
e não há nada demais
apenas os canos de descarga dos automóveis
indicam alguma fonte de calor
porque as coisas
quase todas elas indistintamente
invariavelmente
se dissolvem nas gotas frias da chuva fina
que insidiosamente penetra os corações humanos.





Chuva, por Sheila Machado (em flickr.com/photos/smassis),

13 de janeiro de 2014

NEM TODOS OS OLHOS DE ARDÓSIA FULMINAM UMA MULHER


Tinha por profissão o concubinato remunerado com casa bem montada, compra de mercado e roupa de butique, contas de luz, gás e telefone pagas no fim do mês.

Em troca, oferecia cheiros e muxoxos, rom-rons de gata siamesa, siricoticos e balacobacos em lençóis de cetim, à luz de um abajur lilás. Depois, talvez, quem sabe, acaso, se bem disposta, licorzinho de amarula, cafezinho de cafeteira elétrica e dois dedinhos de prosa, com a boca carmim espalhando luz. O encantado a seus pés, numa submissão quase total, não fosse a obrigação de voltar para casa, antes de dar a meia-noite.

Não havia candidato que lhe escapasse aos encantos, sobretudo os que se escondiam sob a lingerie encarnada, debruada de grega de seda, o contorno da coxa a insinuar-se em direção ao montículo de Vênus. Uma perdição letal!

Quando aquele tiozão não aguentava o repuxo, seduzia outro mais apto a assumi-la, que ela não era mulher de esquentar cadeira, de pegar no batente, de marcar ponto, de ouvir bronca de chefe.
Também queria saldo em conta bancária, para que pudesse esfregar nas caras de Cotinhas e Matildes, as línguas soltas a babar inveja, os bóbis frouxos nos cabelos, olhos sobre o portão de ferro das casas de vila.

Só chegava a casa e dela saía aboletada em táxi de ar condicionado, em bom estado de conservação, pintura sem arranhão e banho recente no lava a jato, cheiro de jasmim no ambiente. Isso, quando o tiozão não vinha em seu carro reluzente, com estardalhaço, pegá-la e deixá-la na entrada da vila, as fofoqueiras de plantão olhando pelos basculantes.

Na ida e na volta, deixava um rastro de perfume importado de causar inveja e marcar território.
Todo domingo, ligava para a mãe viúva que ficara no interior, para dar-lhe notícias e dizer que tinha posto em sua conta um dinheirinho para as despesas, filha boníssima que era. A mãe sabia da missa a metade; a outra, nem o padre! E fingia acreditar que a filha tinha um bom emprego na cidade grande, o que lhe permitia essa benevolência.

Até que experimentou uma paixão fulminante pelo rapaz do banco, onde fora sacar um cheque generoso do tiozão. Os olhos dos dois se cruzaram num momento de fragilidade, de distração talvez. E quando dois olhos de ardósia, como os de Chico, fulminam uma criatura distraída, é morte quase certa. Ou paixão avassaladora. Deles fugir, quem há-de?

E como deixar o bem-bom da vida com o tiozão, para se acomodar ao salário do bancário bonito, que nem gerente era? E como afogar em bacia rasa uma paixão de catarata? Ó, dor! Ó, destino cruel!

Pesados e medidos os prós e os contras, sem vacilar, exigiu que, doravante, o tiozão lhe desse cheque de outro banco, pois, naquele, tinha sido ameaçada de morte pelos raios fulminantes de uns olhos de ardósia.


Capa do cd de Chico Buarque, com suas várias caras, mas os mesmos olhos de ardósia.

9 de janeiro de 2014

AMARCORD


Ψ
Tenho cravada em minha memória a cena sedutora de um filme mexicano em que a belíssima atriz cubana María Antonieta Pons, dentro de um vagão de trem, deixava que o mocinho (ou seria o bandido?) lhe beijasse o lindo tornozelo torneado, apenas insinuado com o suave levantar de sua saia comprida. Não sei quem era o canalha que lhe beijava o tornozelo, nem o título do filme, nem o nome do diretor, assim como não me recordo de nenhum fotograma anterior ou posterior a esse. Mas esse ainda está incrustado num escaninho qualquer lá dentro de mim. Imaginem, então, o que a cena causou em minha cabeça! Devia ter lá meus doze/treze anos, quando vi o filme. E tive o cuidado de, após a sessão, saber o nome daquela bela atriz e seu tornozelo maravilhoso: María Antonieta Pons! Aliás, o cinema mexicano da época, através da Pelmex, era pródigo em belas mulheres. Só para citar algumas: Libertad Lamarque, Dolores Del Río, Ninón Sevilla, María Felix. E desconfio de que continue assim até hoje…

María Antonieta Pons (em cinemexicano.mty.itesm.mx). 

Ψ
De quando em vez, meu saudoso avô Chico Albino, que à época morava em Duque de Caxias, ia visitar os parentes – dentre eles meu pai, seu filho – que deixara na pequena vila de Carabuçu. Eu o admirava profundamente. Achava-o um homem elegante, porte nobre, sempre vestido com correção e dono de uma dicção limpa, clara. Não tenho lembranças de que levasse presentes. Nesse tempo, não era comum, pelo menos na minha terra, que se dessem presentes. Mas sua presença por lá era motivo de grande satisfação minha. Numa dessas visitas, estava conversando com os amigos na venda de meu pai, contando lá as histórias de Duque de Caxias, quando se referiu a certo cidadão, personagem do que dizia, com a palavra cafajeste:

- Fulano era um verdadeiro cafajeste!

Na hora, achei a palavra muito bonita, muito sonora, e gostei de ouvi-la da boca de meu avô. Como já era um menino esperto, perguntei-lhe o que significava cafajeste. Tive, então, a maior decepção com o sentido. Como podia uma palavra tão sonora, tão bonita, significar aquilo que me dizia? Comecei, assim, a perceber que nem sempre os sons correspondiam aos sentidos.

Quando fui para a faculdade, tive confirmada essa percepção, ao saber do lamento do grande poeta francês Guillaume Apollinaire, autor de Calligrammes, com a língua francesa, que tem a palavra jour (pronunciada /jur/), de sonoridade fechada, escura, para o que em português é dia, de pronúncia aberta, clara. Dizia ele da necessidade poética, em francês, de adjetivar a palavra para carrear, para seu sentido de claridade, também a claridade da pronúncia, que há na palavra portuguesa. Assim propunha, por exemplo, clair jour (pronúncia /klér jur/) – dia claro – em que o adjetivo de som aberto como que clareia o sentido de jour.

Ψ
Lá nos idos de 1950, meu pai soube, por um dos fregueses de sua venda, que certo conhecido, durante uma partida de futebol de várzea das roças no entorno da vila, tinha sido esfaqueado, por motivo de discussão boba, desmotivada. Virou-se, então, para o que trazia a notícia e exclamou:

- Xi! Coitado! Deu com os costados na cerca!

Ao ouvir isso, quis saber do meu pai se o homem se ferira na cerca, normalmente feita de arame farpado. Meu pai deu um sorriso amarelo e me disse:

- Não, morreu mesmo! Dar com os costados na cerca quer dizer morrer.

Dessa vez, percebi também que as palavras nem sempre querem dizer o que dizem e podem nos meter em enrascada. Ê vida difícil! É o que talvez justifique aquele camarada que se explicou à autoridade, dizendo que chamara o outro de filho da puta no bom sentido.

Ψ
Bom sentido que não existia há algumas décadas. E foi o que motivou um tio-avô a atirar num desafeto, justamente por chamá-lo de filho da puta. Na época, era a maior ofensa que se fazia a um homem, porque atingia diretamente sua mãe. Era um agravo na raiz da nascença, como se dizia, que manchava toda a descendência, ainda que por tabela. Tão logo foi xingado, meu tio agrediu o ofensor. A turma do deixa-disso fez a separação dos briguentos. Após a rixa, correu a notícia de que o outro estava andando armado, para dar fim a meu tio, que também pôs o revólver na cinta. Não era, então, estranho as pessoas andarem armadas. Os de menor posse muniam-se de facas e peixeiras; os de maior, de garruchas e revólveres. Mesmo que não se portassem as armas, elas estavam dentro das casas. Por isso ocorreu que, estando meu tio num bar, em conversa com amigos, de costas para a porta, ao ouvir o chamamento do desafeto – não se matava um homem pelas costas –, ele já se virou atirando. O homem, alvejado, foi levado para o hospital de Bom Jesus, vindo a falecer, tempos depois, em consequência de complicações pelo tiro que levou.

Ψ
Os mais velhos contam uma história interessante, ocorrida em Carabuçu. Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, foi instituída uma força policial volante, que vasculhava o interior para desarmar as pessoas. Nessa época, havia por todo lado muitos jagunços, muitos grupos armados, e os confrontos eram corriqueiros*. Para o norte do antigo estado do Rio de Janeiro – a Velha Província que teimava em sobreviver –, foi mandada a volante comandada pelo tenente Coaracy, homem de estatura baixa, mas tido como enquizilado, carne de pescoço, temido por todos.

Vem a volante entrando na vila, tenente Coaracy à frente, montado em sua garbosa mula alta. Ele, de pequetito, virava um homenzarrão sobre a besta. Na porta do botequim, estava um homem que, ao ver o grupamento, julgou por bem não se afastar, para não levantar qualquer tipo de suspeita, o que, certamente, o levaria a passar maus momentos. Tenente Coaracy estaca a montaria diante do homem, que já imagina o pior. Com sua voz firme e autoritária, pergunta ao homem:

- Caboclo, você fuma?

Tremendo de medo, o pobre coitado não teve como mentir e disse, com a voz já por um fiapo:

- Fumo, sim, senhor! Mas, se o senhor quiser, eu largo o vício.

- Não é nada disso, caboclo! Me arranja um cigarro, que o meu acabou!
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(* Se quiserem conhecer mais detalhes desse período da história brasileira, indico o excepcional romance de Mário Palmério Chapadão do bugre, que também serviu de base para minissérie homônima, levada ao ar pela Rede Bandeirantes, no ano de 1988, com direção de Valter Avancini e Jardel Mello.)

5 de janeiro de 2014

AMAR É...

Amar é verbo transitivo
Que transita de vivo pra vivo
De vivo pra morto
Intransitivamente como tem sido
Desde que o mundo foi arreglado e tido
E muito parecido com qualquer coisa que pretenda ser
Aquilo que nos move até o final destino
A que chegaremos sãos e salvos
Mortos ou vivos
Desde que amemos a todos
Intuitivamente
Desinteressadamente
Só pelo fato de estarmos todos vivos


Flor do maracujá, na Bicuda (foto do autor).



2 de janeiro de 2014

POEMAS MÍNIMOS I

I
toque o meu corpo de leve
a mão a favor dos pelos
sem unhas sem compressão
só isso me basta para achar
que a vida tem solução

II
o mar me chama e me engana
com suas ondas promissoras.
no entanto fico quieto no meu canto
no meu apartamento
no meu mundo.
quando criança
aprendi que água não tem cabelo.

III
ilusão, mermão,
é julgar que os calos na mão
serão nossa salvação.

verdade, ô amizade,
é que a lei da prosperidade
aqui é a rapacidade.

IV – PASSARINHADA
se o vento silva na noite mansa da selva
que barulho será esse ao amanhecer?
são os gorjeios dos pássaros
assustados com a luz dourada do sol.

V
sou de limo feito pedra debaixo da correnteza
escorrego pelos dedos
vacilo
quase sem erro

Nascer do sol em Jaguanum, fioto de Marcão Mandarino.