29 de novembro de 2017

CERTOS PREGÕES

Meu netinho é encantado com o pregão da caminhonete que passa pelas ruas do bairro à cata de velharias:
- Panela velha, máquina de lavar velha, geladeira velha!
A emissão que se espalha no ar vem metalizada pela baixa qualidade do sistema de som do carro. Talvez seja isso o mais interessante para ele. A voz do locutor sai espremida, rascante, metálica:
- Ventilador velho, liquidificador velho, geladeira velha!
Certo dia, rindo, ele emendou:
- Vovô velho!
Mas ficou chateado quando eu disse “Francisco velho!”.
Os pregões são formas orais tradicionais usadas por ambulantes para anunciar a mercadoria à venda. Vem desde que o homem saiu com os produtos de sua colheita ao encontro de possíveis compradores, pelas ruas das vilas e das cidades. Era preciso anunciar.
No caso específico da caminhonete do ferro-velho, o que se anuncia é o que se compra, diferentemente dos pregões tradicionais.
Normalmente os pregões se resumem a enunciar o nome da mercadoria ou do seu vendedor:
- Olha a banana! Olha o bananeiro!
- Olha o peixeiro!
- Olha a laranja! Olha o laranjeiro!
Um ou outro tinham formas mais elaboradas, como versinhos rústicos, como do vendedor de pirulitos:
- Olha o pirulito americano: bota na boca e sai “chupano”!
Uns usavam o humor para chamar a atenção:
- Moça bonita não paga. Mas também não leva!
Escuto pregões desde que me entendo por gente. Lá na minha Carabuçu natal eles existiam. Eu mesmo já os produzi, em moleque. Saía à venda das laranjas da minha avó. Confesso, no entanto, que tinha certa vergonha de sair gritando pelas ruas miúdas da vila.
Quando cheguei a Niterói, em 1967, deparei com o centro da cidade coalhada de camelôs, uns mais histriônicos que outros, mas todos com seus pregões reconhecidos, à cata de clientes.
Havia um que sempre se postava na esquina da Avenida Amaral Peixoto com a Rua Visconde do Uruguai e anunciava, com sua voz espremida e ligeiramente gutural, um pregão bem diferente, só decodificado ao se ver o ele que vendia:
- Quem tem criança na escola! Quem tem criança na escola!
O /s/ de escola saía bastante chiado, como é comum ao carioca. Assim era a forma de tentar vender seus cadernos.
Outro, que vendia traquitanas para a cozinha, nas imediações, dizia uma frase também bem estranha, enquanto manipulava o objeto:
- Não resta prática, nem tampouco habilidade!
E eu ficava intrigado com aquele verbo restar na frase. Até que meu amigo Valter Bretas esclareceu que o camelô deveria querer dizer “não requer prática”. Era realmente isso: o treco era de fácil manejo.
Tempos depois tive minha atenção despertada pelos camelôs de La Paz, na Bolívia. Observei que seus pregões tinham uma estrutura fixa, na maior parte das vezes: o nome da mercadoria era enunciado duas vez na forma normal e uma terceira vez, na forma diminutiva.
- Pañuelos! Pañuelos! Pañuelitos!
- Chompas! Chompas! Chompitas!
- Ponchos! Ponchos! Ponchitos!
Ainda que o terceiro termo não estivesse no diminutivo, a forma tríplice era uma constante:
- Chicha blanca! Chica blanca! Chicha blanca!
Outro camelô, este já no Rio de Janeiro, no calçadão da Rua São José, lá pelos anos 70/80, era uma figura e tanto. Estava sempre de paletó e gravata, óculos escuros, cabelos cortados rentes. Vendia baralhos, que expunha sobre sua pequena banca, e pomada japonesa, que ficava escondida sob ela. Os baralhos eram anunciados aos brados; a pomada japonesa, contudo, era apregoada em um tom bem baixo.
- BARALHOS DE NYLON! BARALHOS DE PLÁSTICO! Pomada japonesa!
Cada um encontra o tom certo, o ritmo adequado, a fórmula capaz de encantar o possível comprador. Outros, contudo, por certas limitações, acabam criando quase um pânico nos ouvintes. Era o caso do Zé do Ovo, já citado aqui em outra postagem.
Zé do Ovo era um pobre coitado, deserdado da vida e do juízo perfeito, que minha sogra como que adotou ainda adolescente. Por vezes ele passava uma temporada em sua casa e era tratado com um filho a mais. Mas sempre apresentou algum transtorno e era tido como meio lelé da cuca. Quando eu o conheci, ele já era um homem feito e sempre estava por lá. Em alguns momentos, colhia folhas de couve da horta da dona Judith, colocava numa cesta e saía a apregoar pelas ruas de Miracema:
- Olha o “coveiro”! Olha o “coveiro”!
Mas, normalmente, voltava para casa todo feliz, com seu sorriso banguela, a cesta vazia e o dinheirinho miúdo no bolso.

Imagem relacionada
Jean Baptiste Debret, Negras quitandeiras, séc. 19 (em pinterest.com)..

20 de novembro de 2017

DEU CAVALO DE AÇO NA CABEÇA

Esta última semana, a da comemoração da Proclamação da Infeliz República do Brasil, também foi, não sei por que cargas d’água ou conjunção astral, a semana do sapato Cavalo de Aço. Pelo menos comigo e meus circunstantes.
Estava bebendo uma cerveja com uns amigos e um deles, metido a me conhecer profundamente, se saiu com essa, depois que alguém lembrou os tempos daquele fatídico sapato:
- Aposto que o Saint-Clair nunca usou o Cavalo de Aço!
Como dizia o Jaguar, falei, para certo pasmo de alguns:
- Ledo engano Ivo seu! Eu também já tive esse maldito sapato lá pelo início dos anos 70.
Jovem, então, e um pouco suscetível aos movimentos da moda, fui levado de roldão pela onda do Cavalo de Aço e comprei um par para mim.
O tal sapato tinha como diferencial um solado tipo plataforma, que elevava seu usuário a cerca de três ou quatro centímetros acima do rés do chão. E tinha um visual abrutalhado. Não era um sapato fru-fru. Era coisa para destacar a possível masculinidade do seu dono.
O meu, além da tal altitude elevada, era feito de um couro imitando jacaré e tinha uma fivelona nas laterais. Bico fino, como convinha, e na cor marrom escuro. Era uma visão!
Quando o levei para a pensão da Dona Dinorah, onde morava por essa ocasião, na Rua Pereira da Silva, causei espanto. Fiquei soberbo diante dos meus colegas. Era um sábado, pela hora do almoço. Naquele dia, haveria a estreia do Cavalo de Aço.
Não sei se todos sabem, mas também houve uma novela com o mesmo nome, que, tenho a impressão, veio na onda do modelo do sapato. Embora eu não acompanhasse novela, tenho a memória de que uma das personagens masculinas ostentava em seus pés aquele troço.
Pois muito bem.
No dia seguinte a esse encontro com os amigos – este último sábado – na casa da minha mãe, mais uma vez surgiu a referência ao tal sapato. Nem me lembro de quem puxou o assunto. Até mesmo meu primo José Manuel, mais novo do que eu dezessete anos, lembrou a chamada da novela e algumas coisas que a identificavam.
Estranhei o assunto voltar à tona. É que isso é coisa de somenos importância. Talvez seja porque estejamos de saco cheio do noticiário político, então tentamos desanuviar as conversas lembrando de coisas assim.
Agora, de volta à pensão da Dona Dinorah, naquele sábado de estreia dos anos 70, me vejo outra vez descendo a escada de madeira do andar superior, onde os rapazes se hospedavam, e o térreo da velha casa geminada, hoje inexistente. O barulho produzido pelo salto volumoso nas tábuas já chamava a atenção. Era o Saint-Clair estreando o Cavalo de Aço!
Saí pela noite de Niterói e, ao voltar, já passada a meia-noite, tive o cuidado de remover dos pés aquelas ferraduras duplas de couro maciço, a fim de não acordar os moradores do andar de baixo.
Foi um alívio! Pois, além de tudo, comprimia os pés com uma sem-cerimônia infernal!
No dia seguinte, domingo, voltei a usar – tinha-me custado caro –, e agora pela última vez, aquela espécie de tanque de guerra minúsculo, adaptado – mal, diga-se de passagem – ao pé humano.
Alguns sábados depois, estamos Michel e eu sentados no parapeito da varanda, numa tarde fresca, jogando conversa fora e vendo a vida passar em forma de moças bonitas, quando chegou um senhor, vestido humildemente, de chapéu à cabeça e bigode quadrado sobre a platibanda do beiço, a nos solicitar ajuda:
- Será que os meninos não têm uma muda de roupa e um par de sapatos fora de uso para me dar?
Michel, também meu conterrâneo de Bom Jesus do Itabapoana, disse que tinha uma calça e uma camisa que já não usava. Eu então me lembrei do maldito Cavalo de Aço e disse ao homem que tinha o tal par de sapatos.
- Que número o senhor calça?
- Quarenta.
Era o meu número! Pedimos que aguardasse e subimos para pegar as doações. De volta, entregamos a muda de roupa e o par de sapatos, todos ainda muito bem conservados, sobretudo o sapato, usado apenas duas vezes.
O homem ficou tão feliz, que quis saber nossos nomes.
- Qual o seu nome? – dirigindo-se ao Michel.
- Michel.
- Muito obrigado, seu Michel! Gostei muito! E o seu? – agora dirigindo-se a mim.
- Saint-Clair.
- Checré?! Que nome esquisito, sô!
- Me devolve o sapato agora! – disse em tom de falsa ameaça – O senhor me pede um par de sapato, pergunta meu nome e diz que ele é esquisito! Pode me devolver!
- Desculpe, seu Checré! É que é muito difice falar ele!
O homem saiu levando seus presentes, e eu e Michel demos boas gargalhadas com a história.
Agora estou eu aqui compondo este texto, motivado pelo sapato Cavalo de Aço. É ou não é um conluio astral para nos levar a até fazer uma fezinha no bicho?
- Põe dez mangos aí no cavalo!
Vai que dê cavalo na cabeça!

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