17 de maio de 2020

CHEIRO DE CAFÉ


Estou à varanda
Exposto aos raios do sol de maio
E enquanto leio Sophia de Mello Breyner Andresen
Sobe um cheiro de torra de café

De imediato
Como um Proust caipira
Sou levado à minha pequena vila
À minha casa simples
À minha infância

Hoje é dia de torrar café
Minha mãe se prepara
Cobre os cabelos com inusitado pano branco
Para que não recendam a café por dias seguidos
Pendura no gancho sobre o fogão a lenha
O improvisado torrador
Feito de meia lata de gordura de porco
A que meu pai acrescentara cabo de uma vassoura
E cujo fundo perfurara geometricamente com prego

Eu miúdo
Cujos pés não tocam o chão da cozinha
Fico sentado ao lado
Não muito próximo ao fogão
E acompanho a faina da minha mãe
Balançando em vaivém
Aquela geringonça engraçada feita por meu pai
Enquanto ouço histórias de nossa família da Bíblia de bichos que falavam
Quando eu ainda não havia nascido

E vai assim minha mãe
Um pouco depois do almoço
Por um tempo enorme
Até o finzinho da tarde
Perfumando a casa com o cheiro inebriante do café torrado
Esse mesmo cheiro
Que agora sobe até a varanda
Onde aguardo o tempo de voltar à vida
Momentaneamente enclausurada de medo


7 de maio de 2020

CADA UM GOSTA DO QUE GOSTA II


Minha mãe gostava/gosta de rezar e ver a família reunida em torno de uma mesa farta.
Onair gostava de se fantasiar de baiana no Carnaval e sair no bloco pelas ruas da vila.
Darcy Modesto gostava de vender cachaça.
Isaías Bonga gostava de partir como um foguete pela ponta esquerda do Liberdade Esporte Clube e cruzar a bola sobre a área.
Tio Inácio gostava de dirigir seu velho caminhão Ford Gigante atabalhoadamente pelas estradas de chão.
Nico Dutra gostava de camisas de linho branco passadas à perfeição e dar tacadas estrambóticas nos jogos de sinuca.
Romeu, Renato e Antônio Milton gostavam de ganhar nos jogos de sinuca de quem os desafiasse.
Zezé Peçanha gostava de cuidar da pracinha recém-reformada com uma disposição de leão de chácara.
Tia Edith gostava de ir às missas na capela e zelar por sua extensa prole.
Tio Tônio Pinto gostava de sorrir meio sem jeito, como um Figueiredo, e fazer sorvetes cremosos.
Heitor Barroso gostava de fazer peças em metal e liderar o grupo de escoteiros que criou na vila.
Paulinho Sucanga gostava de pilhérias e de jogar futebol com a maestria dos grandes craques brasileiros, apesar do seu jeito franzino.
Tio Cícero gostava de aplicar vacinas nos habitantes de vila com uma pena de caneta tinteiro quebrada, com que escalavrava a pele do braço.
João Dutra gostava de contar histórias hilariantes e gabar as qualidades inimitáveis do seu relógio de bolso.
Nego Souza gostava de dar boas gargalhadas e fazer uma barba bem escanhoada nos fregueses.
Deco Manhães gostava de contar causos engraçados e chamar os amigos de Campeão: Aí, campeão!
Alcides Relojoeiro gostava de consertar relógios e permanecer recluso em casa.
Messias gostava de sua cachorra Certeza, de remendar sapatos e tocar trombone na Furiosa.
Juca Jacó gostava de pilar arroz e zelar por sua família numerosa.
Lulu gostava de pilar arroz e fazer fubá e canjiquinha.
Jair Pasarelo gostava de dar boas gargalhadas, enquanto cuidava dos cavalos em sua cocheira.
Roldão gostava de atender seus fregueses no bar, sempre com uma cerveja gelada e um bom tira-gosto.
Laura gostava de receber e entregar correspondência, no postinho dos Correios em sua residência.
Felisberto gostava de fazer seus sermões na Igreja Presbiteriana e cuidar de sua loja comercial.
Antônio Miranda gostava de manipular suas poções e cuidar da saúde dos moradores da vila.
Mansur gostava de dirigir caminhão, durante a colheita da cana, e fazer excelente comida árabe em seu bar.
Seu Amim gostava de cuidar de seu automóvel, que servia de carro de praça nos idos de 50 e 60 na vila.
Tio Tieca gostava de, a cada verão, alugar casa em Guaxindiba e lá passar um bom tempo, levando consigo vários agregados.
Mané Gibaita gostava de consertar motores e construir alguma máquina que o fizesse voar.
Zé Caiana gostava de gaguejar e fazer pães e roscas na padaria.
Joaquim Eletricista gostava da família numerosa e de zelar pelo serviço de fornecimento de energia da vila.
Dona Zulmira gostava de plantar verduras e temperos em sua horta caprichada.
Cirilo Braz gostava da sua venda sempre animada nos fins de semana.
Dona Nega gostava de sua coleção de miniaturas de Coca-Cola e de fumar seu cigarro tranquilamente.
Elias Penudo gostava de manter seu bom humor e sua máquina de pilar funcionando.
Eu gosto de recuperar essas memórias, para que o tempo não as deixe no limbo para sempre.