31 de janeiro de 2011

NUNCA NOS CANSAMOS DE APRENDER

(Dedicada a meu pai, Argemiro de Assis Mello.)

alguns anos, já homem feito, pai de filhos, numa das visitas periódicas à terrinha, trocava dedos de prosa com meu querido pai, lembrando coisas, atualizando notícias, botando a conversa em dia.

Por um ou outro motivo, disse a ele, comentando sobre as frutas que consumia na cidade grande, que elas não tinham mais o sabor de outrora, pois a mim pareciam colhidas antes do tempo, amadurecidas de forma não natural, o que lhes tirava o paladar que provava quando menino.

Lembrei-me, então, das laranjas que ia chupar no pomar do tio Alcides Almeida, acompanhado de meu primo Carlinhos. Sentávamos à sombra das laranjeiras, canivetes à mão, e nos fartávamos a valer. Apreciava, sobretudo, a laranja-Bahia. Reclamei com meu pai a diferença de paladar entre aquela laranja e esta atual, que compro nas feiras e nos mercados.

Com a sabedoria que os pais parecem ter – e que não sei se repito com meus filhos –, me disse com as palavras mais singelas possíveis:

- Meu filho, o paladar da laranja não mudou. O que mudou foi o seu paladar. Aquele da infância não volta mais. A laranja continua a mesma, mas nós mudamos.

S. Dali, Persistência da memória, 1931, MoMA.
Aliás essa sua lição estava já contida em Soneto de Natal, do genial Machado de Assis, em forma de indagação, no verso que fecha o poema:

                “Mudaria o Natal ou mudei eu?”

E, então, pude me dar conta de quanta água já passou por sob a ponte através da qual venho atravessando a vida. Hoje, apesar de não ser um homem saudoso do passado, parece que sou outra pessoa, bem diferente daquele garoto que corria pelas ruas da vila, brincando com os amigos de infância.

No entanto, diante do espelho, que procuro nunca usar com excesso, pois nele jamais vislumbrei um Alain Delon ou um Tom Cruise, a pessoa que vejo é sempre a mesma, a não ser por uma devastação capilar que envergonha todo o lado Machado da família. Reconheço sempre quem eu vejo: sou eu mesmo, sem tirar nem pôr, a despeito de tudo, das marcas que o tempo imprime em nosso corpo. Entretanto sei que, ao ser reencontrado na rua por conhecidos que não vejo há anos, ex-alunos que tomaram caminhos diversos, a impressão que têm de mim é a mesma que deles tenho: como está envelhecido!

A distância entre o menino e o coroa de agora, para mim, só fica bem evidente ao rever velhas fotografias em preto e branco ou mesmo algumas coloridas um tanto esmaecidas em seus tons: eu já fui bem jovem, talvez até uma criança inocente a correr pelas ruas da minha infância, na minha querida vila de Carabuçu (ou Liberdade, como querem os mais velhos). Mas isso não me dói, como doeu em nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, em Confidência do itabirano, em seus dois últimos versos:

“Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!”

É que, de certa forma, aprendi a não chorar sobre o leite derramado. Se possível, passo a língua sobre o filete que escorra e aproveito até a última gota.

30 de janeiro de 2011

CRER DESCONFIANDO

não se confia em presidente governador prefeito
em ministro e secretário de estado
em administradores diretos e públicos
em árbitro de futebol
em juiz de pendência
em polícia guarda rodoviário e fiscal
em vendedor
em camelô
em médico advogado professor psicanalista economista sociólogo
                                               [filósofo padre pastor e dentista
em sujeito cheio de boas intenções.
todos erram propositadamente
todos iludem com a maior desfaçatez.

acredita-se ao contrário
 em reza forte
em banho de cachoeira
em amuletos figas e imagens
em descarrego e encomenda
em corpo fechado e cabeça feita
em despacho de esquina com cachaça vela galinha preta farofa
                                               [pipoca fitas patuás e dinheirinho 
Colhido em heartjoias.com.
em promessas e juras
em novenas dezenas e trezenas
em centenas e milhares
em palpites simples duplos e triplos
em sonhos visões e vozes
em milagres simpatias e jeitinhos
em quebrantos
em mau olhado
em praga e bênção
em adivinhações quiromancia cartomancia búzios bola de cristal
                                               [trabalhos e consultas
em horóscopo oriental e ocidental
em tarô e mapa astral.

pobre e desesperado povo!

29 de janeiro de 2011

A FELICIDADE BATE À SUA PORTA


(Van Gogh, Homem com a cabeça entre as mãos.)
a felicidade bate à sua porta
mas você não abre
teima em ficar enfurnado no seu pequeno mundo
prefere remoer todas as dores do passado
a descortinar outros rumos
mantém suas frustrações sobre a mesa
em que se alimenta dia a dia

a felicidade bate à sua porta
empunhando revólver e escopeta
e você recalcitrante e teimoso feito um burro empacado
se atira sobre o sofá em abandono
o penúltimo copo de uísque na mão

a felicidade bate à sua porta
escancara-a com um aríete de luz
e encontra sua carcaça corrompida em decúbito dorsal
– matéria para a gula dos jornais
investigações policiais
piedade e compaixão dos semelhantes

a felicidade bate à sua porta
estupidamente desconhecendo
o seu direito inalienável ao sofrimento

28 de janeiro de 2011

CHIFRES INOXIDÁVEIS


(Imagem colhida em emule.com.br.)
Instalou um par de chifres inoxidáveis na testa do marido, de não ser arrancado em prazo menor do que cinquenta e tantos anos, isto é, enquanto o desinfeliz ainda pudesse viver. Bem feito! Ele fez por merecer! Tratava-a como a uma vassoura de piaçava gasta, quase sem serventia, deixada no canto do banheirinho de empregada virada para cima. Aí foi só o moço da quitanda repetir a entrega na mesma semana, que ela resolveu liberar os escondidos e mal amados. A fornicação varou a hora do almoço, quando o traste deveria estar na folga do expediente, e valeu por duas entregas de pepinos e abobrinhas. O arroz chegou a sapecar na trempe do fogão. Ela nem ligou. Podia queimar até a panela toda, porque não arredaria corpo de debaixo daquele mulato suado, que sabia mexer os quadris, nem por todas as berinjelas do mundo. De nabos e rabanetes, passou a fazer compras na mesma quitanda, exigindo entrega quase imediata do mesmo moço, que sabia, por uma discreta piscadela de olhos, estar o caminho aberto, as concessões liberadas.

O marido vendia confiança às carradas, imaginando que a mulher jamais teria a coragem de traí-lo. Ela tinha um nome a zelar e também certo receio de seus modos um tanto abrutalhados. Era só ver como arrotava e palitava os dentes depois de comer. Imaginava-se um viquingue, se bem que nunca vira um viquingue após o almoço. Talvez por influência dos quadrinhos de Hagar, o Horrível! Até o porte físico sugeria a personagem. E assim dormia e acordava, sem se dar conta de que, em sua ausência, o pau comia em casa de Noca. E comia feio, dentro dos estatutos do corneamento geral.
Quando chegava a casa, depois do trabalho, não percebia o ar de candura estampado no rosto da mulher. É que dificilmente olhava no rosto dela. Aliás, há alguns anos não notava nada nela, nem para o bem, nem para o mal. E isso é a pior coisa que pode suceder em uma relação, sobretudo quando o outro lado é feminino. É o que mais magoa a mulher! Até uma traição passageira é mais tolerada pelo espírito feminino que a indiferença. Mas há um agravante, no caso: a indiferença gera frutos azedos, difíceis de suportar.
E foi o que aconteceu. Foi só o olho do entregador brilhar um pouco mais naquele dia, que ela viu ali a chance de dar o troco, com juros e correção monetária. No que ele depositava as frutas, verduras e legumes na mesa da copa, notou um olhar um tanto sequioso sobre si. Voltou-se para ela, que respondeu com um sorriso franco e acolhedor. O que se deu dali em diante é bom não contar, para não aumentar o opróbrio do marido, que no justo momento destrinchava rabada com polenta e agrião, num restaurante perto do trabalho no centro da cidade. E vejam que a comida desceu gostosa, sem obstruções, sem causar embuchamento.
Agora observem como é o mundo. O marido juraria de pés juntos que nada demais acontecia em sua casa durante o dia, a não ser o choro da mulher, diante da tevê, na repetição da novela vespertina, em que a escrava apanhava do feitor. E agora passeava um par de chifres descomunais, brilhante à menor lasquinha de luz, porém invisível a seus olhos.
Quando, certa tarde, tiveram de ir ao enterro do diretor da empresa em que ele trabalhava, chegaram de braços dados ao velório, numa descompostura apenas percebida pelos demais. Ele figurava uma segurança inexistente, num bigode mal aparado, de tintura duvidosa, enquanto a mulher distribuía compungidos boas-tardes, arredondados num vestido colado ao corpo, um pouco impróprio para a ocasião. Do contínuo ao presidente, todos os colegas de trabalho sabiam das estripulias da sua patroa, como se habituara a referir-se a ela em conversas no trabalho. E, não se sabe por que motivo, a notícia da traição chegara à sala do cafezinho. Pronto: daí em diante a difamação correu solta! Varou corredores e diretorias, seções e recepção. Sua fama de chifrudo tinha chegado à mais baixa cotação no mercado dos casados.
E continuou vivendo assim, sem se aperceber de nada, polindo os chifres a cada entrega da quitanda, até que o fogo da mulher se apagasse qual chama de cotoco de vela, num dia qualquer de São Nunca, em hora incerta e não sabida.

27 de janeiro de 2011

DEBAIXO DAS PONTES


debaixo das pontes
vivem serzedelos
correm veias de mangue
obscuros esgotos
ratazanas humanas
paquidermes de cana.

debaixo dos viadutos
vivem os putos e
deserdados da vida
zés manés marias
raimundas imundas
infestando a avenida.

ao lado do mam
Pieter Brueghel, Mendigos, séc. XVI.
quase toda manhã
há corpos deitados
compondo um quadro
além portinari
ou mesmo dali.

em cada esquina
a paisagem repete
um velho refrão
que nos dá desespero:
“criança, não verás
nenhum país como este”.

26 de janeiro de 2011

SORTE

sorte não ter nascido roto maltrapilho
como todos os que dormem nas ruas nas calçadas
e chafurdam no lixo
e comem migalhas
e sonham não se sabe com quê

sorte não ter como horizonte
apenas a barra da baía de guanabara
o mar aberto de copacabana com as cagarras
e a ilha rasa
o céu pesado que apavora os morros

sorte não ter como amor devotamento
o ódio e a indiferença que passeiam nos ônibus
no metrô
nos apertados trens urbanos
ou o terror das ruas da cidade

(Cândido Portinari, Dudas mulheres, duas crianças.)
sorte não ter como corpo
esse desconforto de carne e músculos
que os famintos carregam como fardo
leve e maldito
a que devem acrescentar doença e desejo
delírio e paixão
como qualquer um

sorte não ter como consciência o nada
e calar diante de todas as injustiças




25 de janeiro de 2011

A MIRACULOSA LOÇÃO CURATIVA DO ROBÉRIO

A infestação de pulgas na pensão provocou uma série de problemas nos rapazes que moravam no segundo andar do estabelecimento. Ninguém ficou livre de levar ferroadas por todas as partes do corpo, sobretudo nas chamadas partes pudendas, também conhecidas vulgarmente como países baixos. Por isso, quando foi a Bom Jesus passar a Semana Santa daquele ano, ele se dirigiu à farmácia, na Rua Tenente José Teixeira, e relatou ao amigo boticário a novidade. Seu sacro escrotal estava em petição de miséria. Não aguentava mais o incômodo. Segundo ele, a coceira já estava até abrindo brechas na pele da região do entorno do dito cujo.
O amigo riu muito e prometeu-lhe um remédio poderoso, desses de não deixar pedra sobre pedra, ou melhor, pulga sobre pulga. Foi lá dentro, no laboratório, e, após cerca de meia hora, voltou com um vidro escuro com uma loção de uso tópico, a ser aplicada na zona infestada, logo após o banho. Recomendou ainda que enxugasse bem o local, a ser lavado com sabão de coco, e aplicasse o líquido em seguida com um algodão bastante empapado. Seria tiro e queda!
- É garantido mesmo?
- Tou falando: é tiro e queda, cara!
Pegou o remédio, pagou e foi-se embora.
Imagem em emule.com.br.
Chegou à casa dos pais, mas não comentou nada sobre o problema. Tinha lá seus pudores a preservar.
A mãe, no momento, preparava o jantar, quando foi para o banheiro, ao lado da cozinha da casa simples.
No banho, até cantou Martinho da Vila: “Felicidade! / Passei no vestibular/ Mas a faculdade / É particular...”, que fazia um baita sucesso Brasil afora. Ao fim do banho, passou enrolado na toalha pela cozinha e foi para o quarto, onde deixara a loção milagrosa, a esperança para todos os males que o assolavam. “Particular! / Ela é particular/ Particular! / Ela é particular...” Secou bem as partes como recomendado. Preparou um chumaço de algodão e empapou com uma porção generosa daquele líquido cor de âmbar, de cheiro agradável de remédio manipulado. Com vontade e disposição, esfregou o chumaço na zona conflagrada. Em seguimento, o urro que saiu de sua garganta foi coisa de se ouvir do outro lado da rua, até por cidadão auditivamente prejudicado, talvez mesmo do outro lado do rio Itabapoana, lá para os lados da charqueada. De imediato o saco murchou, embutindo as duas bolotas que ficam penduradas nas adjacências. Mais rápido que uma Ferrari Testarossa, saiu em disparada pelado casa afora, até chegar, de novo, ao banheiro, onde abriu o chuveiro com vontade e se lavou com sabão de coco, o tempo necessário para minorar um pouco a sensação de queimação que se abateu sobre aquela pobre região corpórea, quase tudo reduzido a proporções microscópicas, talvez só acessíveis naquele instante por pinças de tirar sobrancelhas de mulher.
Eneko, El grito, colhido em diaadia.pr.gov.br.
A mãe assustou-se com o estardalhaço e perguntou ao filho o que estava acontecendo, que desatino súbito era aquele, que possessão diabólica seria isso, Deus do céu!
Deixando a água fria aplacar a sensação horrível, explicou à mãe o sucedido: tinha sido o maldito remédio que o Robério lhe receitara o causador daquele furdunço todo.
Ao final de mais uns vinte minutos embaixo d’água, pediu à mãe que lhe levasse a toalha, esquecida no quarto no atabalhoamento de voltar ao banheiro.
No dia seguinte, foi até a farmácia reclamar com o amigo sobre o resultado da aplicação de tão malsinado remédio e a falta de aviso sobre isso, coisa de poder ser reclamada em repartição judiciária, com petição assinada por advogado de banca estabelecida.
Robério riu solto e esclareceu:
- Se eu lhe dissesse o que aconteceria, você não teria coragem de usar o remédio. Mas garanto que não terá mais coceira. Garanto só, não! Até aposto um dinheiro!
Dito e feito. Nunca mais a coceira voltou, escorraçada que foi por um remédio que era parente próximo da bomba de Hiroshima, mas o efeito colateral do encolhimento das partes foi um trauma para lá de recalcitrante. De durar dias!
Esse povo de botica inventa cada remédio, que Deus me livre!

24 de janeiro de 2011

SONETO PRETENSIOSO

Queria ter, inteira ao meu dispor,
Aquela dor contida em tua pele
E o dissabor que cada poro expele,
Como se fosse diário desjejum.

Alimentar-me, então, com tal sabor,
Do frio intenso que teu corpo exale,
Calar-te a voz, ainda que não fale.
Ou, se falasse, fosse qualquer um.

E, à noite, a ceia, que assim sorvesse,
Pudesse ter, em cada sorvo estranho,
As amarguras que por tuas veias

Correram tanto, por tempo tamanho.
E assim o sangue que eu, enfim, bebesse
Me libertasse dessas tuas peias.
Almeida Júnior, O descanso do modelo, 1882.
Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

23 de janeiro de 2011

MARIA, MARIA


Namoradeira, por Rosilene Miranda,
em telejm.blogspot.com
 Maria nasceu com a estranha mania de ter fé na vida. Desde muito pequena acreditava em tudo que lhe diziam, por mais estapafúrdia que fosse a versão apresentada. Por isso não é estranho que tenha passado a, diuturnamente, consultar horóscopo, ler bula de homeopatia, fazer todas as simpatias que ouvia nos programas de rádio matutinos, sem o que não punha os pés fora de casa.

Acreditava tanto que acreditava em político, videopastor, em previsão de tempo, em resultado de consulta a cartomante, quiromante, e, o mais grave, no papo-furado do Marivaldo, aplicador de injeções da Farmácia Santa Isabel, estacionada na Rua Direita, pertinho da Praça das Mães.

Isso aconteceu num dia em que precisou de injeção que lhe curasse forte gripe pega de surpresa, numa noite friorenta de São João.

Marivaldo, quando recebeu a visita de Maria na farmácia onde espalhava sua competência de furador de braços, veias e popas, logo se entusiasmou em atender a moça que chegava com o incômodo da gripe. Ele mesmo receitou a injeção, mas ponderou que, a par de ser muito eficaz contra a doença, doía que só ela, pelo que recomendou que a zona em que deveria ser aplicada fosse mais abastecida de carnes do que o magrelo braço de Maria.

Ela ficou muito acanhada com a situação, mas acabou cedendo suas partes para que Marivaldo ali depositasse o remédio milagroso.

Quando a ingênua e crédula moça suspendeu o vestido e baixou a calcinha, mostrando sua popa morena, coberta por uma penugenzinha suave como a brisa de maio, Marivaldo olhou para cima e agradeceu aos céus a oportunidade que se apresentava em sua vida. Visse ela a cara do aplicador de injeções e teria saído desembestada da botica, sem tempo de se recompor. A sanha dos olhos de Marivaldo, sem querer desmerecer outros monstros, era a de Nosferatu em seus piores dias.

O algodão embebido em álcool que passou sobre o murundu de Maria provocou na moça uma friagem gostosa e estranha. Era como se Di Cavalcanti estivesse retocando pintura de mulatas, tal foi a habilidade no serviço. Em seguida, com a mão nua, sem ajuda de luva, segurou de mansinho parte do tesouro que se lhe oferecia e teve pena de chuchar agulha em região de delicadezas tão vastas. Mas teve de levar adiante sua profissão, o que fez com tanto jeito, com tanto carinho, que a pobre Maria quase não sentiu. Ainda lhe disse:

- , Marivaldo, doeu só nadica de nada.

- É que minha mão tem zelo, tem cuidado no serviço.

E aproveitou a oportunidade para desfilar na mimosa concha do ouvido da morena, em feitio de louvação da sua beleza, dezenas de frases de efeito, recheadas de palavras doces e açucaradas, que ficariam perigosas em ouvidos diabéticos.

Maria encantou-se com tanta exaltação e predispôs seu coração desavisado à língua visguenta do auxiliar de farmácia. Sem medir esforços e consequências, Marivaldo lançou sobre a moça, nos dias que se seguiram à agulhada, petardos românticos de derrubar muralhas de fortaleza medieval, que dirá de ingenuidades caboclas. E, aí, quem há de resistir?

Maria soçobrou, por assim dizer, aos maremotos produzidos pela lábia de Marivaldo nos dois meses que se seguiram, e não houve conselho de avó, reprovação de mãe que a demovessem da determinação de ir viver seu caso de amor com o ensaboado.

Marivaldo montou casa simplória, provida de coisa pouca, mas com uma cama bonita, larga, capaz de segurar os arroubos que pretendia empreender pelo corpo intacto de Maria. Ela não fazia ideia do que seria sua vida. De ingênua e tímida jovem, crédula em tudo que se possa imaginar, a mulher do furador da farmácia.

Marivaldo desfrutava na cidade de reputação de mulherengo. Nenhum marido, em pleno gozo de suas faculdades mentais, permitia a entrada dele em casa, nem para entrega de envelope de Cibalena, quanto mais para aplicar injeção. Essa atividade era exercida sob rigorosa vigilância dos maridos, convencidos de que qualquer descuido era sinal de perigo iminente. Algum marido até requeria força policial para ficar de plantão.

Assim estranharam o fato de o ajudante de farmácia se dispor a viver com uma só mulher, quando tinha um pasto aberto a sua frente, todos os dias da semana. Porém começaram a dormir descansados a partir de então.

Os dias se sucederam entre gemidos e sussurros, entre suores e exaustões, a cama resistindo aos repuxos noturnos. Até que Marivaldo resolveu almoçar em casa todos os dias. Aproveitava, então, aquela hora e meia de folga para liberar seus lúbricos instintos pelo corpo jovem de Maria, que mal tinha tempo de desligar o fogo com que preparava o almoço. Enlaçada pela cintura, era arrebatada para a cama, onde aconteciam coisas que o pundonor aconselha omitir. Nada queimava no fogão, mas na cama os lençóis calcinavam e, do quarto acanhado, subia um cheiro forte de fumeiro.

Maria começou, assim, a gostar das brincadeiras e passou a exigir a presença do companheiro também na hora do café da tarde. Os embates se sucediam com tal frequência e entusiasmo, que Marivaldo principiou a definhar com o passar dos dias. Sua mão, antes firme na furação do corpo alheio, iniciava caminho sem volta na tremelicação involuntária, por falta de sustança nos músculos. Sua força estava esvaindo-se, exaurindo-se, desvanecendo-se.

não conseguia mais acordar cedo para o trabalho, sempre arranjando desculpa para os atrasos. Os olhos afundavam-se nas covas debruadas por um roxo macilento, as pálpebras quase insustentáveis. A marcha até a farmácia parecia feita com passos de paquidermes cansados. Um dia, teve de descansar sob a árvore da pracinha, para recobrar o fôlego faltante e atingir seu objetivo.

Por seu lado, Maria lavava a roupa, varria a casa e o terreiro, cozinhava ainda com mais disposição. Parecia com mais energia do que antes. O que faltava em Marivaldo sobrava nela.

E assim foi até que o auxiliar de botica, desfeito de toda a seiva corporal, exaurido até a última gota, extinguiu-se do mundo dos remédios e passou a ser apenas uma evaporação, um eflúvio, uma emanação etérea.

A partir de então, Maria perdeu fé na vida e viu seu mundo desmoronar com os calhaus de terra lançados sobre ataúde triste de Marivaldo, num dia melancólico qualquer de uma primavera sutil, que é melhor esquecer.

22 de janeiro de 2011

BOBAGENS IMPUBLICÁVEIS


José Sócrates, Pensador, in
Blog de Caricaturas.
Dia desses, entrei na Livraria da Travessa, na Travessa do Ouvidor, no Centro do Rio de Janeiro, e me deparei com uma banca imensa logo na entrada, abarrotada de livros de autoajuda. Esse filão editorial é uma das maiores empulhações pseudointelectuais dos últimos anos. O livro só é autoajuda para seu autor, que vende milhares de exemplares e fatura gordos direitos autorais. Ou o prefixo auto- de origem grega perdeu seu sentido. Quem lê esses livros e se sente ajudado tem ajuda externa. Para ser autoajuda, só a própria pessoa trabalha, senão não é autoajuda. Tenho muita birra desse tipo de literatura. Porém, imediatamente ao ver aquela montanha de livros, veio-me à mente, já completamente formada, a paródia de um velho dito popular brasileiro. Então pude ver que, só de olhar a capa, talvez aqueles livros tivessem esse poder de que muito duvido. Eis a frase, com o destaque que ela merece:

Muito autoajuda quem não se atrapalha.
Como cabeça de aposentado pode trabalhar com as bobagens que quiser que não estará perdendo tempo, já que tem todo o tempo disponível, assaltou-me a possibilidade de pensar outras versões e formas de ditos e expressões da rica fraseologia brasileira, com o viés (Essa palavra anda na moda e não posso perder a oportunidade de a utilizar aqui. Confesso que é a primeira vez que o faço. Só para ser moderno!) do humor.
Lembro-me, também, do grande professor José Albano Nolasco e sua verve ferina, que dizia, ao referir alguma situação aplicável:
                       Quem se mistura com farelo, porcos o comam.
a marcar a mais baixa condição a que tinha chegado o sujeito de suas observações: não era ele nem mesmo o porco, mas a comida do animal.
O Pasquim, em seus áureos tempos, vez ou outra, trazia brincadeiras com os provérbios populares. Lembro-me, por exemplo, de ter lido lá, como corolário de uma piada:
                                   De grão em grão, a galinha enche o Papa.
Outra versão também já conhecida de todos é
                                   Quem confere ferros com ferro será conferido.
Todo esse preâmbulo é para introduzir a relação das bobagens que me passaram pela cabeça. Pode ser que outras venham, pois diarreia mental é coisa praticamente incurável.

1.       De grau em grau, a galinha esquenta o papo.
2.       Cada mania com seu doido.
3.       Em casa de malandro, vagabundo só perde emprego.
4.       O arquiteto está cheio de projetos para o Ano Novo.
5.       A faxineira passou o rodo no filho adolescente do patrão.
6.       O escoteiro chutou o pau da barraca e foi expulso do acampamento.
7.       O granjeiro afogou o ganso antes de comê-lo.
8.       Tropeiro que amarra o burro normalmente vive contrariado.
9.       O podólogo tomou pé da situação precária em que vivia.
10.   Quem tem bunda fria não esquenta lugar.
11.   Noca comeu pau em sua casa, porque faltou carne.
12.   O engenheiro incompetente não calcula a falta que a mulher lhe faz, desde que ela partiu.
13.   O músico cantou pra subir na carreira, mas morreu antes do sucesso.
14.   O alfaiate abotoou o paletó do cliente defunto na capela mortuária.
15.   O treinador passou sebo nas canelas do maratonista vencedor.
16.   O menino descabelou o palhaço de pano que sua irmã ganhou de presente.
17.   O sitiante soltou a franga no despacho de macumba.
18.   O apostador marcou bobeira no palpite da mega-sena.
19.   O passageiro dormiu no ponto e perdeu a viagem.
20.   Depois de apanhar muito, o briguento foi-se catar, mas faltaram alguns pedaços.
21.   O defunto morreu de rir da cara do papa-defuntos, que levou o cano para o bombeiro consertar.
22.   A linha saiu de fininho do novelo de lã, para não virar um suéter.
23.   Em terra de rei, que tem um olho não gasta dinheiro com binóculo.
24.   Alfajores são alfabetos argentinos feitos de maisena, farinha de trigo, açúcar, manteiga, ovos, fermento em pó e essência de baunilha por confeiteiro iletrado.
25.   Quem ri por último é porque não entendeu a piada a tempo.
26.   Quem mata a cobra e mostra o pau é descarado exibicionista.
27.   Cão que chupa manga sente falta de osso.
28.   Quem lava a égua não pode se esquecer do balde, do sabão e do esfregão.
29.   Quem se mete a besta pode se deparar com um garanhão fogoso logo à frente.
30.   Lobo com pele de cordeiro teme retaliação da PETA.
31.   É mais difícil pegar um mentiroso que tenha imunidade parlamentar.
32.   Macaco velho não quebra o galho do outro.
33.   Ao curtumeiro epicurista é fácil curtir a vida.
34.   Cágado não vive de bunda suja apenas por causa de um acento.
35.   Quando galinha tiver dente, dentista não dará conta do trabalho.
36.   Cachorro amarrado com linguiça deve ser vegetariano.
37.   Chupa cana e assobia quem não tem nada melhor a fazer.
38.   Cavalinho que se tira da chuva é feito de papel machê.
39.   Quem tem faca de dois gumes pode descascar dois abacaxis ao mesmo tempo.
40.   Se você não é ginecologista nem urologista, não me venha dar toque.
41.   Quem mama nas tetas, se não é político, é bezerro novo.
42.   Se você vive dando o pinote das paradas é porque, certamente, tem sangue de cabrito nas veias.
43.   Quem vive numa boa só pode ser absorvente higiênico de mulher gostosa.
44.   Quem entra em fria seguramente pega pneumonia galopante.
45.   E quem tira você de uma fria, com certeza, é o entregador de gelo.
46.   Para sair do armário, o marceneiro nem precisou assumir.
47.   Mentira de pescador é dizer que não pegou nada.
48.   Gato escaldado não dá bom guisado.
49.   Para bom entendedor, meia palavra bas.
50.   Padeiro que queima rosca não faz pão bengala.
51.   Caolhos e banguelas, na roleta, perderam olho por olho, dente por dente.
52.   Vidente que não vê o presente fica com o futuro incerto.
53.   Deficiente visual só sabe dar nó cego?
54.   Os EUA, na década passada, chegaram à beira do abismo. Ali construíram um mirante de aço e vidro muito bonito.
55.   O agrimensor não media esforços no trabalho, porque tinha perdido a trena.
56.   Seleiro, quando fica noivo, não dá o anel de couro na cerimônia.
57.   Minha amiga séria perguntou por que só escrevo abobrinhas. É porque choveu na minha horta, respondo.
58.   Quem morre de rir não vai para o céu, pois lá é um lugar muito sério.
59.   Rapadura não é mole, porque a cana é dura, disse o delegado ao prender o rapadureiro criminoso.
60.   Quando uma notícia vem a furo, é menos um furúnculo no jornalista.
61.   O político faltou com a verdade, para se encontrar com a mentira esfarrapada.
62.  Atropelar os fatos é quando um caminhão desgovernado invade a feira livre e destrói a barraca de miúdos de porco.
63.  Ri Millôr quem ri primeiro.
64.   Humor com humor se paga.

21 de janeiro de 2011

CHEIO ITABAPOANA

(Para minha irmã Cristina, que motivou o poema com seu torpedo.)

Como furtivo amante que surpreende
a amada na madrugada aflita
com a cheia de seu leito de chocolate
a penetrar a casa que se habita
o rio foge de manhã no entanto
Cheia do Itabapoana, em bomjesus.rj.gov.br.
maculando a cama
deixando lama
fazendo estrago
sorvendo a alma
plantando o pranto
dos que ficaram
com suas lágrimas a lavar
o limo das calçadas
como se não fosse nada


PS: Os estragos que o rio Itabapoana causa jamais chegaram aos níveis do que ocorreu na Região Serrana do Rio de Janeiro, mas é sempre um incômodo a sobressaltar a população às suas margens, a cada temporada de chuvas.

19 de janeiro de 2011

O AMOR

O amor é, sem dúvida,
Um mal necessário.
O morrer de amor, uma consequência natural
Desse processo degradante.

Fede-se de amor, quando se ama.
E, quando não se ama,
Simplesmente existe-se
Na tranquilidade modorrenta e quieta dos dias claros.
O amor, por isso mesmo,
Provoca um revolução interna
A começar pelo intestinos, os prosaicos intestinos,
E acaba por subverter o senso comum da realidade.
Aniquila a autossuficiência.
Espezinha, por fim
E até mesmo,
O paladar.
Amando-se, o gosto é diverso.
Malamando-se, sente-se na maçã a maçã, no vinagre o vinagre.

E mais se ama e mais se morre,
Porquanto a entrega é maior.
Mas não se entrega na única e mera preocupação de entregar-se.
Entrega-se para que se apodreça no outro ser.
E, nesse acabar vexatório e repugnante,
É que se consegue o nada absoluto.
Aprendem-se aí as novas possibilidades
Do inexistir sozinho.
Treinam-se novas modalidades de se rebaixar,
De transigir,
De se deixar subornar, que amor é suborno.
Experimenta-se, então, o inefável sabor do desamparo
H. Van den Broeck, Vênus e Cupido, séc. XVI.
Sabendo-se múltiplo;
A indescritível idiotice galopante,
Sentindo-se sábio;
A intangível fraqueza diária,
Fingindo-se forte.

O amor, enfim, mistura alhos com bugalhos.
Mas, sobretudo, ferve
Ferve num quentinho gostoso
No fundo do nosso ser escrachado.