Ouvir com o mar O rugido das ondas A quebrarem flácidas Sobre as pedras rígidas. Espumas efêmeras Na areia. O sol impõe No céu seu hálito Abrasador. Na água Pinguins humanos Sobre pranchas A desafiar A imprevisibilidade das vagas. O Sudoeste A entrar pela barra Com vigor. E sobe no ar A maresia anunciando Que há ressaca.
Chovera por aqueles últimos dias, e a pequena baixada do
Barro Preto, na estrada que vai da vila ao Jacó, estava cheia d’água, formando
um pequeno charco, cuja profundidade subia um pouco além dos tornozelos dos
dois meninos.
Eles iam a pé em direção à fazenda onde morava o Zé Luís,
um ano mais novo que seu primo, morador da vila. Ao entrarem na curva da
estrada, Zé Luís percebeu o coaxar de rãs e chamou a atenção do primo, a quem
convidou caçarem algumas delas. Como o primo nunca o fizera, Zé Luís deu as
instruções:
- A gente entra devagarinho no brejo, sem movimentar
muito a água. Aí observa, nas moitinhas de capim, se tem ajuntamento de bolhas.
Aí vai estar a rã respirando. Você estica o braço rápido e segura com força.
Vai pegar a rã pelo pescoço.
O primo, embora inexperiente na atividade, captou as
orientações perfeitamente.
E lá foram os dois, de mansinho, os pés descalços pisando
com cuidado o baixio encharcado ao lado da grande pedra arredondada, que dava a
identidade daquela curva da estrada, a meio caminho entre o Jacó e a Rua, nome
por que era identificada a vila. Em silêncio e medindo as passadas, mas com
gestos rápidos e firmes, os braços, como flechas ligeiras, projetavam-se em direção
à coroa de bolhas na pequena touceira de capim e dali tiravam uma gorda rã
distraída. Ao cabo de pouco tempo, os dois acumulavam nas mãos uns dois pares
daquele bicho carnudo e feioso, que esperneava vigorosamente para se libertar. No
entanto os meninos tinham as mãos como torqueses poderosas e mantinham os
anfíbios bem presos.
Quando já não conseguiam segurar mais daqueles batráquios
escorregadios, gosmentos, de pernas fortes, retomaram o trajeto em direção à
fazenda. Se algum passante por eles cruzasse, certamente estranharia aqueles
dois meninos, com seus dez-onze anos, a caminharem pela estrada levando quatro
rãs pelas mãos.
Duzentos metros à frente, no início da subida da estrada
em curva, localizava-se a entrada da propriedade do Lourinho Azevedo, cuja sede
se escondia atrás do morro. Um pouco após a porteira de entrada, no morro
pelado de vegetação alta, sobrelevava a casa humilde da Neguinha, sitiante do fazendeiro.
Zé Luís teve, então, a ideia de oferecer os bichos à
mulher pobre, que tinha filhos pequenos e muitas carências no viver. Ele
gritou, antes que transpusessem a porteira:
- Ô, Neguinha! Está em casa?
Neguinha chegou à janela, como a responder com sua figura
a pergunta do menino, que logo emendou:
- A gente pegou essas rãs. Você quer para o almoço?
Neguinha abriu um sorriso e respondeu afirmativamente. Naturalmente
ela não tinha nenhuma carne para dar às crianças naquele dia.
Os dois meninos subiram até a casinha de pau a pique –
cobertura de sapé já envelhecida -, levando as rãs capturadas. Com um
sorriso de felicidade estampada no rosto, Neguinha as pegou, colocou numa lata
grande e, de imediato, tampou com uma tábua. Todo o cuidado era pouco, para
que elas não fugissem.
Zé Luís quis saber do primo se ele já vira a rã pular na
panela, depois de morta e esquartejada. Claro que o primo nunca vira aquilo.
Assim resolveram esperar Neguinha matar os bichos, tirar-lhes o couro,
esquartejá-los, temperá-los com alho, sal, pimenta do reino e uma folha verde
que eles não identificaram, mas que parecia alfavaca.
Neguinha pegou sua panela de barro grande, deitou um
pouco de gordura de porco e esperou que o fogo principiasse a fazer seu
serviço. Assim que percebeu que a quentura estava adequada, começou a colocar
com cuidado os pedaços de rãs temperados na panela. Foi então que o primo, pela
primeira vez, viu com admiração a carne de rã tremelicando, desesperada como se
viva estivesse, ao contato com a gordura quente. E lhe passou pela cabeça o
sofrimento das bruxas que eram jogadas em óleo fervente, como nas histórias que
ouvia dos mais velhos.
Assim que as rãs se deram por vencidas e cessaram toda a
bulha, Zé Luís e o primo se despediram da Neguinha e seguiram caminho até a
fazenda, lá onde as brincadeiras davam o tom da vida normal daquelas crianças.
Bandeira Poeta Como quem conversa Conversa sem paletó E gravata Conversa de pijama De bermuda cáqui E camiseta regata Puída no colarinho Bandeira Poeta Como quem fala com o amigo Durante o cafezinho Ou ao ver a moça se banhar Distraidamente Encantadora O coração a lhe sair pela
boca Bandeira Poeta Como se prosa Sobre aquilo Que nos interessa Ou que presta E mete um bocado de vida No que se torna poesia.
Caricatura de Manuel Bandeira por Carlos Drummond de Andrade (colhida na Internet).
Toleba acabou de ajeitar as cangas, atou as brochas sob o pescoço dos bois e os chamou à lida. Com o garruchão comprido, de chocalho de anéis na ponteira, atingia desde a primeira junta até a terceira, a mais forte, que se prendia ao cabeçalho, junto à mesa.
Todos os bois tinham seus próprios nomes, por que eram chamados e pelos quais atendiam ao comando do carreiro. Na primeira junta, Dengoso e Bendito; na segunda, Fumaça e Malhado; na terceira, Maciste e Noturno, estes chamados bois de coice, os que sustentam o carro no nível e dão o primeiro arranque no momento da partida.
Toleba nunca entendera direito, por que o dono pusera esse nome esquisito no Maciste. Mesmo o seu apelido, Toleba, que ganhou na adolescência, ele entendia, já que era um homem atarracado, forte, massudo. Mas depois descobriu que fora por causa de um filme a que o patrão assistira no cinema do Zezete, quando menino, sobre um homem muito forte, capaz de mover com a força dos braços coisas descomunais, que dera o nome ao boi. Maciste, na verdade, era um boi dobrado, desses que metem medo por seu tamanho e musculatura, não fosse ele um animal manso e dolente, que não parecia em nada, no seu proceder, com o nome que o patrão lhe dera. Todos os outros nomes estavam completamente adaptados a cada animal. Era só vê-los e com eles conviver, para perceber que eram nomes justos. Por exemplo, o Noturno, de porte semelhante ao Maciste, era mais escuro que o Fumaça, que tinha o pelo cinza escuro, enquanto ele era de um pelo preto brilhante e bonito. Até o do Maciste, depois da explicação do patrão, passou a fazer sentido.
Nesse dia, Toleba ia fazer o carreto dos teréns do Manuel Firmino, que estava de mudança da Fazenda da Forquilha para a Fazenda da Boa Esperança, um pouco mais acima na serra do mesmo nome. É que o patrão tinha acabado de comprar esta última e resolveu deslocar o empregado para lá, onde ele assumiria a função de capataz. Manuel Firmino ia se mudar, coisa que não apreciava por ser um homem apegado a suas rotinas, mas ia com alegria, porque fora promovido, como recompensa por tantos anos de trabalho.
O carreiro, cheio de disposição, chegou cedo à casa do companheiro e tratou logo de carregar o carro com os pertences da família do Manuel Firmino que levaria para a Boa Esperança. Antes de começar, porém, verificou se os fueiros estavam ajustados e firmes na mesa e se a esteira estava bem amarrada aos fueiros, para que nada caísse durante a viagem serra acima. Era preciso que tudo chegasse direitinho ao seu destino.
Manuel Firmino, a mulher e os filhos, ainda pequenos, ajudaram a transportar os trecos até o carro de boi estacionado no terreiro. Toleba, sobre a mesa do carro, recebia de Manuel Firmino cada peça, que ia acomodando da melhor maneira possível, para que tudo coubesse em uma só viagem. É que gente da roça nunca tem muitas coisas a carregar, quando muda de pouso. Fogão, por exemplo, não se carrega, já que é uma peça moldada em tijolo e barro, fixado num canto da cozinha. A casa nova certamente teria também o seu. As camas são desmontáveis. Só um e outro móvel segue inteiro, sem partes, alojados com maestria na mesa do carro, de modo a caber tudo o que nele se transporta. A mesa da cozinha, por exemplo, foi colocada de pernas para cima, com os dois bancos acomodados entre elas. Por fim, sobre os poucos móveis rígidos, as roupas da família e os colchões, enchidos com capim e bem leves de levar. Por riba de tudo já arrumado, Toleba joga uma lona cáqui, já com algum puído na trama, amarrada bem firme com uma corda de juta, a fim de proteger a carga de poeira e chuva. As criações de terreiro – galinhas e patos - iam em gaiolas feitas de bambu e dependuradas nos fueiros laterais. Os dois capados roliços, cevados para o Natal daquele ano, foram colocados, sob protestos veementes, como é costume desses bichos, num espaço na traseira do carro, numa espécie de cercado improvisado, com piso de folhas de bananeira, para que não sujassem por demais o restante da carga. Mas o coleirinho do brejo cantador, bichinho da mais alta estima, era o próprio Manuel Firmino quem levava na mão desocupada da rédea, com todo o cuidado possível.
- Tudo certo, compadre Firmino? – pergunta o carreiro.
Manuel Firmino confirma que tudo está nos conformes e se prepara para deixar a casinha humilde onde morou até então com a mulher e os quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Ainda ao sair, num gesto de agradecimento, como reverência, levantou o chapéu de palha em direção à casa que serviu de lar para eles durante tantos anos.
Um pouco mais cedo, ele já arriara os dois cavalos de que dispunha. Logo ajuda a mulher a montar no malhado e instala uma das filhas na garupa. Monta no piquira e puxa a outra filha para sua garupa, enquanto Toleba coloca os dois meninos menores sobre o assento frontal à mesa do carro. O carreiro mesmo vai a pé, candiando os bois morro acima. Os trechos planos são bem curtos. O mais que se faz é subir, e isso requer perícia e arte no conduzir os animais e a carga.
Atendendo seus aboios iniciais, os bois se põem em movimento, e começa a viagem.
Ao mesmo tempo em que chama pelos bois, vibra o garruchão, que tine as argolas do chocalho. Era o sinal para começar a marcha.
Os dois meninos repetem os gritos do Toleba, no chamado dos bois, já transformando a mudança numa divertida aventura.
Aos primeiros metros percorridos, o carro começa a emitir o som choroso característico, produzido pelo atrito das peças de madeira com o eixo, que vai azeitado, de modo a produzir a melodia que o carreiro mais estima e que o identifica dentre os demais carros de boi que circulam pelas estradas de chão do interior. A dolência do canto estimula a marcha, abranda a dureza da lida, embala as pessoas que vão junto à comitiva em busca de novos desafios.
Daí a duas horas, a família já estará na outra casa, na outra fazenda, retomando a labuta de um ponto além do que deixara para trás. Tudo dentro dos planos da vida que se toca serenamente, feito marcha de carro de boi candiado com perícia e refinamento.
Hoje trago aqui este conto escrito por meu filho Pedro Neiva de Mello, publicitário de profissão e danado para escrever bonito.
Aí está!
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LET DIE
Pedro Neiva de Mello
- Parei com o rock, bicho! Saco! Não tem mais rock bom
agora. Se é novo e é bom, é porque é de um disco novo de artista velho e, ainda
assim, é difícil pra cacete de encontrar. Senão é rock ruim!
Esse é o Carlão. Um camarada que fiz estes dias aqui. Carlão
faz aquele estilo coroa gatão. Grisalho, forte e falastrão. Deve ter aí seus
58, 59 anos.
- Quantos anos você tem, Carlão? – pergunto.
- Cinquentinha!
Porra!... Carlão tá meio acabado. Não é tão coroa e,
logo, não é tão gatão. Mas tá lá ele com suas tatuagens no braço direito. Uma
tribal e uma guitarra com uma flâmula escrita “Live and Let Die”. Tá lá ele
revirando a memória pra lembrar do último rock novo e bom de que se lembra,
enquanto reclama da vida.
Conheço o Carlão há seis dias. Quando cheguei aqui, ele
já estava ali no mesmo lugar de agora. Reclamando. Acho que a falta de rock fez
muito mal a ele. Parece ansioso e, à noite, grita umas palavras soltas assim do
nada! Na primeira noite, eu tomei um susto e quase caí daqui. Ele gritou “Boa
noite, Circo Voador!”. Eu estava meio dormindo e meio acordado. Daquele jeito
que os remédios deixam a gente, sabe? Porra!... foi um susto danado. Olhei pra
esquerda, e estava lá ele com seu braço direito tatuado socando o ar e
dormindo. Depois parou e dormiu. No dia seguinte contei a ele o que tinha
acontecido.
- Tá de sacanagem... Isso aí é coisa de maluco, bicho. – rebateu
o Carlão, muito convicto e com um certo ar de deboche pra mim.
Achei até que era eu quem estava vendo coisas, até porque
a gente não está aqui à toa. Ou ele ou eu podíamos ser o louco da conversa.
Na segunda noite, acordei novamente de supetão, porque o
Carlão fazia muito barulho. Olhei pro lado esquerdo do quarto, em direção à sua
maca. Só havia nós dois naquele quarto. Então toda a minha distração vinha
dele. Não podíamos ver tevê, celular, ouvir música e nem nada naquela fase do
tratamento.
- O que tá rolando, cara? – perguntei.
Ele se surpreendeu que eu estivesse acordado. Olhou pra
mim com os olhos arregalados, se virou. Fez uma enorme força com os braços pra
se sentar, mesmo sem permissão. Conseguiu e sentou-se do lado direito de sua
maca. Ainda tinha o ar de surpresa intacto na sua cara. Nessa hora eu reparei
que Carlão tinha uma secreção saindo da boca. Sem parar. Uma baba espessa.
- Que foi, cara? Quer que eu chame alguém? O que você
precisa? – perguntei pra ele - O que você quer?
- Eu queria ter uma bomba. Um flit paralisante qualquer
pra poder me livrar do prático efeito. - respondeu com os olhos dentro dos meus
e com a voz áspera citando Cazuza e se debatendo sentado do lado da cama.
Foi quando o Gérson entrou correndo no quarto, sem seu
uniforme, desesperado. Trazia com ele um segurança da clínica. Os dois
seguraram aquele homem forte de volta na maca. O Carlão seguia gritando, quando
Gérson aplicou algo no braço tatuado dele e o acalmou.
- Acho que desta vez o Carlos Roberto não sai mais
daqui... - refletiu o Gérson, depois que o Carlão finalmente dormiu e o quarto
se acalmou.
Carlão era um frequentador assíduo. Ia a voltava de
tempos em tempos. Aquela era sua quinta passagem por ali nos últimos quatro
anos. A cada retorno parecia mais fraco e solitário. Era filho de um casal de
músicos setentões. Viveu a vida na estrada com os pais e se apaixonou pelo rock
desde moleque. Uma paixão que virou patológica, com o passar do tempo e com o
passar das fraquezas do corpo e da mente. Fraquezas iguais às minhas. Fraquezas
que justificavam a nossa vizinhança naquele quarto.
Acostumado, na noite passada eu nem levei susto. Já
esperava a resenha da madrugada acordado. Pedi ao Gérson para reduzir a minha
dosagem naquela noite. Ele concordou. Disse que eu estava fazendo progresso, e
que o Carlos, em todas as suas idas e vindas, nunca tinha interagido com outro
parceiro como desta vez. E concluiu com um sorriso e com o sinal de metal na
mão direita – Rock and roll!!
Carlão começou a falar lá pelas 3h20. Calmo e de olhos
fechados, seguiu deitado. Parecia consciente desta vez. Não estava agitado como
na segunda noite ou incompreensível como na primeira. Não estava raivoso como
na quinta noite e nem grogue como na terceira e na quarta. Estava sereno.
- Quem é ele, esse tal de rock and roll? – ele disse.
- O rock errou. Errou comigo. – ele disse.
- O rock acabou, cara. – ele disse - Acabou!
Van Gogh. O quarto em Arles (1889; imagem colhida na Internet).