14 de dezembro de 2023

RESSACA

Ouvir com o mar
O rugido das ondas
A quebrarem flácidas 
Sobre as pedras rígidas.
Espumas efêmeras
Na areia.
O sol impõe
No céu seu hálito
Abrasador. 
Na água
Pinguins humanos
Sobre pranchas
A desafiar 
A imprevisibilidade das vagas. 
O Sudoeste
A entrar pela barra
Com vigor. 
E sobe no ar
A maresia anunciando
Que há ressaca. 

Foto do autor.








3 de dezembro de 2023

INSANUS CANIS

No convívio dos vizinhos
Há contendas 
No cessar-fogo anunciado 
Há tiros 
Na trégua pactuada 
Há bombardeios 
Na paz pretendida 
Há guerra 
No planeta desvalido 
Há o bicho humano

Imagem colhida em revistaesquinas.casperlibero.edu.br.


24 de outubro de 2023

NO BARRO PRETO

                        (Dedicado ao primo José Luís Azevedo)


Chovera por aqueles últimos dias, e a pequena baixada do Barro Preto, na estrada que vai da vila ao Jacó, estava cheia d’água, formando um pequeno charco, cuja profundidade subia um pouco além dos tornozelos dos dois meninos.

Eles iam a pé em direção à fazenda onde morava o Zé Luís, um ano mais novo que seu primo, morador da vila. Ao entrarem na curva da estrada, Zé Luís percebeu o coaxar de rãs e chamou a atenção do primo, a quem convidou caçarem algumas delas. Como o primo nunca o fizera, Zé Luís deu as instruções:

- A gente entra devagarinho no brejo, sem movimentar muito a água. Aí observa, nas moitinhas de capim, se tem ajuntamento de bolhas. Aí vai estar a rã respirando. Você estica o braço rápido e segura com força. Vai pegar a rã pelo pescoço.

O primo, embora inexperiente na atividade, captou as orientações perfeitamente.

E lá foram os dois, de mansinho, os pés descalços pisando com cuidado o baixio encharcado ao lado da grande pedra arredondada, que dava a identidade daquela curva da estrada, a meio caminho entre o Jacó e a Rua, nome por que era identificada a vila. Em silêncio e medindo as passadas, mas com gestos rápidos e firmes, os braços, como flechas ligeiras, projetavam-se em direção à coroa de bolhas na pequena touceira de capim e dali tiravam uma gorda rã distraída. Ao cabo de pouco tempo, os dois acumulavam nas mãos uns dois pares daquele bicho carnudo e feioso, que esperneava vigorosamente para se libertar. No entanto os meninos tinham as mãos como torqueses poderosas e mantinham os anfíbios bem presos.

Quando já não conseguiam segurar mais daqueles batráquios escorregadios, gosmentos, de pernas fortes, retomaram o trajeto em direção à fazenda. Se algum passante por eles cruzasse, certamente estranharia aqueles dois meninos, com seus dez-onze anos, a caminharem pela estrada levando quatro rãs pelas mãos.

Duzentos metros à frente, no início da subida da estrada em curva, localizava-se a entrada da propriedade do Lourinho Azevedo, cuja sede se escondia atrás do morro. Um pouco após a porteira de entrada, no morro pelado de vegetação alta, sobrelevava a casa humilde da Neguinha, sitiante do fazendeiro.

Zé Luís teve, então, a ideia de oferecer os bichos à mulher pobre, que tinha filhos pequenos e muitas carências no viver. Ele gritou, antes que transpusessem a porteira:

- Ô, Neguinha! Está em casa?

Neguinha chegou à janela, como a responder com sua figura a pergunta do menino, que logo emendou:

- A gente pegou essas rãs. Você quer para o almoço?

Neguinha abriu um sorriso e respondeu afirmativamente. Naturalmente ela não tinha nenhuma carne para dar às crianças naquele dia.

Os dois meninos subiram até a casinha de pau a pique – cobertura de sapé já envelhecida -, levando as rãs capturadas. Com um sorriso de felicidade estampada no rosto, Neguinha as pegou, colocou numa lata grande e, de imediato, tampou com uma tábua. Todo o cuidado era pouco, para que elas não fugissem.

Zé Luís quis saber do primo se ele já vira a rã pular na panela, depois de morta e esquartejada. Claro que o primo nunca vira aquilo. Assim resolveram esperar Neguinha matar os bichos, tirar-lhes o couro, esquartejá-los, temperá-los com alho, sal, pimenta do reino e uma folha verde que eles não identificaram, mas que parecia alfavaca.

Neguinha pegou sua panela de barro grande, deitou um pouco de gordura de porco e esperou que o fogo principiasse a fazer seu serviço. Assim que percebeu que a quentura estava adequada, começou a colocar com cuidado os pedaços de rãs temperados na panela. Foi então que o primo, pela primeira vez, viu com admiração a carne de rã tremelicando, desesperada como se viva estivesse, ao contato com a gordura quente. E lhe passou pela cabeça o sofrimento das bruxas que eram jogadas em óleo fervente, como nas histórias que ouvia dos mais velhos.

Assim que as rãs se deram por vencidas e cessaram toda a bulha, Zé Luís e o primo se despediram da Neguinha e seguiram caminho até a fazenda, lá onde as brincadeiras davam o tom da vida normal daquelas crianças.


Imagem em pt.wikipedia.org.




2 de agosto de 2023

RELENDO BANDEIRA

Bandeira
Poeta
Como quem conversa
Conversa sem paletó
E gravata
Conversa de pijama
De bermuda cáqui
E camiseta regata
Puída no colarinho
 
Bandeira
Poeta
Como quem fala com o amigo
Durante o cafezinho
Ou ao ver a moça se banhar
Distraidamente
Encantadora
O coração a lhe sair pela boca
 
Bandeira
Poeta
Como se prosa
Sobre aquilo
Que nos interessa
Ou que presta
E mete um bocado de vida
No que se torna poesia.



Caricatura de Manuel Bandeira
por Carlos Drummond de Andrade (colhida na Internet).


14 de julho de 2023

SAUDADES DO CINE MONTE LÍBANO

Pegar 
Um cineminha às seis 
E lá encontrar 
Velhos companheiros 
Das antigas matinês.

Interior do Cine Monte Líbano
(imagem da PM de Bom Jesus do Itabapoana, através da pág. acervobji.blogspot.com)


28 de junho de 2023

O TREM DO VAIVÉM

Lá está o trem nos trilhos, 
Minúsculo no além. 
É o trem que vai? 
É o trem que vem? 
Não importa a direção 
Que vai tomando tal trem. 
Um dia nele viemos 
E no outro dia iremos, 
Segundo a orientação 
Que tomam seus trilhos tortos, 
Imprecisos, ignotos, 
Cujo destino se encontra 
Na derradeira estação.

Imagem em Freepik.


16 de junho de 2023

A LUA

A lua é leve 
A lua boia no céu 
Sem nuvens 

Em céu nuvioso 
A lua afunda 
Como uma pedra 
Num rio fundo 

Mas quando a porta se abre 
Da nuvem com seu negrume 
A luz que brota da lua 
Inunda o vale cá embaixo 
Com seu fulgor de penumbra

Lua entre nuvens (foto do autor).

                                                 





7 de junho de 2023

MUDANÇA

Toleba acabou de ajeitar as cangas, atou as brochas sob o pescoço dos bois e os chamou à lida. Com o garruchão comprido, de chocalho de anéis na ponteira, atingia desde a primeira junta até a terceira, a mais forte, que se prendia ao cabeçalho, junto à mesa.

Todos os bois tinham seus próprios nomes, por que eram chamados e pelos quais atendiam ao comando do carreiro. Na primeira junta, Dengoso e Bendito; na segunda, Fumaça e Malhado; na terceira, Maciste e Noturno, estes chamados bois de coice, os que sustentam o carro no nível e dão o primeiro arranque no momento da partida.

Toleba nunca entendera direito, por que o dono pusera esse nome esquisito no Maciste. Mesmo o seu apelido, Toleba, que ganhou na adolescência, ele entendia, já que era um homem atarracado, forte, massudo. Mas depois descobriu que fora por causa de um filme a que o patrão assistira no cinema do Zezete, quando menino, sobre um homem muito forte, capaz de mover com a força dos braços coisas descomunais, que dera o nome ao boi. Maciste, na verdade, era um boi dobrado, desses que metem medo por seu tamanho e musculatura, não fosse ele um animal manso e dolente, que não parecia em nada, no seu proceder, com o nome que o patrão lhe dera. Todos os outros nomes estavam completamente adaptados a cada animal. Era só vê-los e com eles conviver, para perceber que eram nomes justos. Por exemplo, o Noturno, de porte semelhante ao Maciste, era mais escuro que o Fumaça, que tinha o pelo cinza escuro, enquanto ele era de um pelo preto brilhante e bonito. Até o do Maciste, depois da explicação do patrão, passou a fazer sentido.

Nesse dia, Toleba ia fazer o carreto dos teréns do Manuel Firmino, que estava de mudança da Fazenda da Forquilha para a Fazenda da Boa Esperança, um pouco mais acima na serra do mesmo nome. É que o patrão tinha acabado de comprar esta última e resolveu deslocar o empregado para lá, onde ele assumiria a função de capataz. Manuel Firmino ia se mudar, coisa que não apreciava por ser um homem apegado a suas rotinas, mas ia com alegria, porque fora promovido, como recompensa por tantos anos de trabalho.

O carreiro, cheio de disposição, chegou cedo à casa do companheiro e tratou logo de carregar o carro com os pertences da família do Manuel Firmino que levaria para a Boa Esperança. Antes de começar, porém, verificou se os fueiros estavam ajustados e firmes na mesa e se a esteira estava bem amarrada aos fueiros, para que nada caísse durante a viagem serra acima. Era preciso que tudo chegasse direitinho ao seu destino.

Manuel Firmino, a mulher e os filhos, ainda pequenos, ajudaram a transportar os trecos até o carro de boi estacionado no terreiro. Toleba, sobre a mesa do carro, recebia de Manuel Firmino cada peça, que ia acomodando da melhor maneira possível, para que tudo coubesse em uma só viagem. É que gente da roça nunca tem muitas coisas a carregar, quando muda de pouso. Fogão, por exemplo, não se carrega, já que é uma peça moldada em tijolo e barro, fixado num canto da cozinha. A casa nova certamente teria também o seu. As camas são desmontáveis. Só um e outro móvel segue inteiro, sem partes, alojados com maestria na mesa do carro, de modo a caber tudo o que nele se transporta. A mesa da cozinha, por exemplo, foi colocada de pernas para cima, com os dois bancos acomodados entre elas. Por fim, sobre os poucos móveis rígidos, as roupas da família e os colchões, enchidos com capim e bem leves de levar. Por riba de tudo já arrumado, Toleba joga uma lona cáqui, já com algum puído na trama, amarrada bem firme com uma corda de juta, a fim de proteger a carga de poeira e chuva. As criações de terreiro – galinhas e patos - iam em gaiolas feitas de bambu e dependuradas nos fueiros laterais. Os dois capados roliços, cevados para o Natal daquele ano, foram colocados, sob protestos veementes, como é costume desses bichos, num espaço na traseira do carro, numa espécie de cercado improvisado, com piso de folhas de bananeira, para que não sujassem por demais o restante da carga. Mas o coleirinho do brejo cantador, bichinho da mais alta estima, era o próprio Manuel Firmino quem levava na mão desocupada da rédea, com todo o cuidado possível.

- Tudo certo, compadre Firmino? – pergunta o carreiro.

Manuel Firmino confirma que tudo está nos conformes e se prepara para deixar a casinha humilde onde morou até então com a mulher e os quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Ainda ao sair, num gesto de agradecimento, como reverência, levantou o chapéu de palha em direção à casa que serviu de lar para eles durante tantos anos.

Um pouco mais cedo, ele já arriara os dois cavalos de que dispunha. Logo ajuda a mulher a montar no malhado e instala uma das filhas na garupa. Monta no piquira e puxa a outra filha para sua garupa, enquanto Toleba coloca os dois meninos menores sobre o assento frontal à mesa do carro. O carreiro mesmo vai a pé, candiando os bois morro acima. Os trechos planos são bem curtos. O mais que se faz é subir, e isso requer perícia e arte no conduzir os animais e a carga.

Atendendo seus aboios iniciais, os bois se põem em movimento, e começa a viagem.

- Vem, Dengoso! Vem, Bendito! Vamos, Maciste! Força, Noturno!

Ao mesmo tempo em que chama pelos bois, vibra o garruchão, que tine as argolas do chocalho. Era o sinal para começar a marcha.

Os dois meninos repetem os gritos do Toleba, no chamado dos bois, já transformando a mudança numa divertida aventura.

Aos primeiros metros percorridos, o carro começa a emitir o som choroso característico, produzido pelo atrito das peças de madeira com o eixo, que vai azeitado, de modo a produzir a melodia que o carreiro mais estima e que o identifica dentre os demais carros de boi que circulam pelas estradas de chão do interior. A dolência do canto estimula a marcha, abranda a dureza da lida, embala as pessoas que vão junto à comitiva em busca de novos desafios.

Daí a duas horas, a família já estará na outra casa, na outra fazenda, retomando a labuta de um ponto além do que deixara para trás. Tudo dentro dos planos da vida que se toca serenamente, feito marcha de carro de boi candiado com perícia e refinamento.

                                  Imagem colhida na Internet (coisasdaroca.com).

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos.

16 de maio de 2023

INFÂNCIA

Era domingo
E chovia. 
No céu
A nuvem em pranto
Sobre o domingo caía.
E enquanto a chuva molhava
O chão batido
Da rua
Fazendo um tímido rio, 
Os pés
Daqueles moleques
Desinquietos, vadios
Pisavam 
O barro vermelho
Que entre os dedos
Espargia 
E tingia de infância
A roupa nova do dia. 

Era domingo
E chovia.
     Imagem colhida em telegraphindia.com.

28 de abril de 2023

BICHO

Bicho, 
A nossa vida 
Foi um luxo 
Ou um lixo? 
E o que nos resta 
Agora, 
Bicho, 
É só isso? 
Já ficaram no limbo 
Os compromissos, 
As virtudes, 
Os vícios
E todos os rocks 
Que curtimos. 
O que fazer 
Então 
Do tempo que nos resta? 
Estamos de prévio 
Aviso 
Contando os dias, 
Até que tudo 
Seja extinto 
E os sinos de Bandeira 
Soem lúgubres 
Por ti e por mim, 
Num futuro sem fim, 
Quando tudo será pretérito.


                                                            Foto do autor.

4 de março de 2023

PALAVRA

Estou imbuído
Do sentido mí(s)tico 
Da palavra 
Que cria deuses
Forja mitos 
Alardeia fatos
Fabula mentiras
Declara guerras 
E institui o amor
A palavra e seus engodos 
A palavra e seus deslizes
A palavra e seus precipícios
A palavra e seus matizes.

                         Foto do autor.

10 de fevereiro de 2023

LET DIE, por Pedro Neiva de Mello

 Hoje trago aqui este conto escrito por meu filho Pedro Neiva de Mello, publicitário de profissão e danado para escrever bonito.

Aí está!

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LET DIE

Pedro Neiva de Mello

- Parei com o rock, bicho! Saco! Não tem mais rock bom agora. Se é novo e é bom, é porque é de um disco novo de artista velho e, ainda assim, é difícil pra cacete de encontrar. Senão é rock ruim!

Esse é o Carlão. Um camarada que fiz estes dias aqui. Carlão faz aquele estilo coroa gatão. Grisalho, forte e falastrão. Deve ter aí seus 58, 59 anos.

- Quantos anos você tem, Carlão? – pergunto.

- Cinquentinha!

Porra!... Carlão tá meio acabado. Não é tão coroa e, logo, não é tão gatão. Mas tá lá ele com suas tatuagens no braço direito. Uma tribal e uma guitarra com uma flâmula escrita “Live and Let Die”. Tá lá ele revirando a memória pra lembrar do último rock novo e bom de que se lembra, enquanto reclama da vida.

Conheço o Carlão há seis dias. Quando cheguei aqui, ele já estava ali no mesmo lugar de agora. Reclamando. Acho que a falta de rock fez muito mal a ele. Parece ansioso e, à noite, grita umas palavras soltas assim do nada! Na primeira noite, eu tomei um susto e quase caí daqui. Ele gritou “Boa noite, Circo Voador!”. Eu estava meio dormindo e meio acordado. Daquele jeito que os remédios deixam a gente, sabe? Porra!... foi um susto danado. Olhei pra esquerda, e estava lá ele com seu braço direito tatuado socando o ar e dormindo. Depois parou e dormiu. No dia seguinte contei a ele o que tinha acontecido.

- Tá de sacanagem... Isso aí é coisa de maluco, bicho. – rebateu o Carlão, muito convicto e com um certo ar de deboche pra mim.

Achei até que era eu quem estava vendo coisas, até porque a gente não está aqui à toa. Ou ele ou eu podíamos ser o louco da conversa.

Na segunda noite, acordei novamente de supetão, porque o Carlão fazia muito barulho. Olhei pro lado esquerdo do quarto, em direção à sua maca. Só havia nós dois naquele quarto. Então toda a minha distração vinha dele. Não podíamos ver tevê, celular, ouvir música e nem nada naquela fase do tratamento.

- O que tá rolando, cara? – perguntei.

Ele se surpreendeu que eu estivesse acordado. Olhou pra mim com os olhos arregalados, se virou. Fez uma enorme força com os braços pra se sentar, mesmo sem permissão. Conseguiu e sentou-se do lado direito de sua maca. Ainda tinha o ar de surpresa intacto na sua cara. Nessa hora eu reparei que Carlão tinha uma secreção saindo da boca. Sem parar. Uma baba espessa.

- Que foi, cara? Quer que eu chame alguém? O que você precisa? – perguntei pra ele - O que você quer?

- Eu queria ter uma bomba. Um flit paralisante qualquer pra poder me livrar do prático efeito. - respondeu com os olhos dentro dos meus e com a voz áspera citando Cazuza e se debatendo sentado do lado da cama.

Foi quando o Gérson entrou correndo no quarto, sem seu uniforme, desesperado. Trazia com ele um segurança da clínica. Os dois seguraram aquele homem forte de volta na maca. O Carlão seguia gritando, quando Gérson aplicou algo no braço tatuado dele e o acalmou.

- Acho que desta vez o Carlos Roberto não sai mais daqui... - refletiu o Gérson, depois que o Carlão finalmente dormiu e o quarto se acalmou.

Carlão era um frequentador assíduo. Ia a voltava de tempos em tempos. Aquela era sua quinta passagem por ali nos últimos quatro anos. A cada retorno parecia mais fraco e solitário. Era filho de um casal de músicos setentões. Viveu a vida na estrada com os pais e se apaixonou pelo rock desde moleque. Uma paixão que virou patológica, com o passar do tempo e com o passar das fraquezas do corpo e da mente. Fraquezas iguais às minhas. Fraquezas que justificavam a nossa vizinhança naquele quarto.

Acostumado, na noite passada eu nem levei susto. Já esperava a resenha da madrugada acordado. Pedi ao Gérson para reduzir a minha dosagem naquela noite. Ele concordou. Disse que eu estava fazendo progresso, e que o Carlos, em todas as suas idas e vindas, nunca tinha interagido com outro parceiro como desta vez. E concluiu com um sorriso e com o sinal de metal na mão direita – Rock and roll!!

Carlão começou a falar lá pelas 3h20. Calmo e de olhos fechados, seguiu deitado. Parecia consciente desta vez. Não estava agitado como na segunda noite ou incompreensível como na primeira. Não estava raivoso como na quinta noite e nem grogue como na terceira e na quarta. Estava sereno.

- Quem é ele, esse tal de rock and roll? – ele disse.

- O rock errou. Errou comigo. – ele disse.

- O rock acabou, cara. – ele disse - Acabou!



Van Gogh. O quarto em Arles (1889; imagem colhida na Internet).


15 de janeiro de 2023

EM TESE

Em tese 
Prevalece a tese 
De que quem não tem tese 
Não se meta 
Em discussão besta 
Acerca de coisas incertas 
Como o sexo dos anjos 
Ou as ideologias políticas 
Dos nossos partidos. 
Porque então 
Fica tudo dito 
Pelo não dito 
Como sói acontecer 
Neste país aflito
Neste país atípico 
Carente de exegese. 
Pelo menos 
Em tese!

Salvador Dali, O enigma sem fim (1928; imagem colhida na Internet).