31 de janeiro de 2012

CONTOS CURTOS ENTRETECIDOS, MAS NEM TANTO

(Dedicado ao meu filho Pedro.)

1. Cheio de razões, disse aos amigos, no botequim do mercado municipal, que a mulher "pegou" Parkinson e, por isso, a trocou por outra. Com esta, no entanto, reclamou falta de entusiasmo no lesco-lesco. Faltou uma tremurinha, disse ele. Só se eu tivesse Parkinson, ironizou ela, inocentemente. Sem saber da doença da esposa.

2. Acometida pelo mal de Parkinson, embora ainda nova, foi deixada de lado pelo traste do marido, que vive na sua aba. Soube pela vizinha que ele anda de acochambrações com a moça da quitanda, após os bailes no clube onde canta. Botou-o para baixo da casa, para o porão onde se guardam trecos já sem serventia. Agora, nem em cima na casa, nem em cima dela, dois territórios proibidos.


3. Seu galo madrugador, cantador de muitas alvoradas, foi comido com macarrão pelo filho do vizinho aporrinhado, numa Terça-feira Gorda. A receita até saiu na Internet. Agora a sem-vergonha da sua galinha voa sobre a cerca, para pôr ovos no quintal do desafeto. Cortou-lhe as asas, mas a ingrata arranjou jeito de passar por um buraco entre os bambus, para continuar a contrariá-lo.


Retrato mal-falado da penosa, no momento
em que depositava o ovo no quintal do vizinho.
(em luizberto.com)

4. Ele, muquirana como o vizinho. Os dois se merecem. Aí a galinha do outro deu de pôr ovos num cantinho do seu quintal, atrás do galinheiro desativado. Um hoje, outro ontem, mais um anteontem. Já comeu quase uma dúzia: estrelado, gemada, omelete e até fez bolo. Manda a empregada dar apenas água à caridosa penosa e a enxota de volta, após a postura. O dono que lhe dê ração! Quem mandou?

5. Às quintas-feiras, emplastra o cabelo com brilhantina Royal Briar e vai soltar seus doridos trinados nos bailes do Clube Recreativo Operários Anarquistas, cantando boleros e dores de cotovelo diversas, acompanhado pelo Regional Sequazes de Bakunin. Não desafina, não atravessa e não transige nas notas musicais e nas orientações ideológicas. Só promove anarquia em sua vida!

6. Soube que a mulher o traía com o cobrador do ônibus que pegava todo dia de manhã, para ir ao trabalho na Praça São Salvador. Ele achava que a mulher ia despedir-se dele no ponto. Coitado, iludido! Aí botou fogo no barraco e cortou os pulsos com caco de vidro imundo. O fogo foi debelado, e ele, socorrido a tempo. De consumado mesmo, só a traição. O resto, tudo muito mal feito!

7. O padre da paróquia ficou horrorizado ao saber que o cantor de voz potente, brilhantina nos cabelos, que no coro da igreja entoa contrito a Ave Maria de Gounod, canta boleros cubanos no Clube Recreativo Operários Anarquistas, desfruta dos contornos da moça da quitanda e  abandonou a pobre mulher acometida de Parkinson. Só falta ser o dono bobão da galinha que põe ovos no quintal do vizinho!

8. Quando a mulher chegou tarde ao barraco, no Parque Bela Vista, o que não encontrou chamuscado encontrou encharcado. Os vizinhos correram com baldes d'água, que, contudo, não lavaram algumas manchas de sangue do chão. Quem foi, quem não foi? Mataram algum porco aí? Ai, meu Deus, quem queimou minha casa?  Só depois soube que fora o traste do marido, moedor de cana na lanchonete no centro da cidade. O cobrador do ônibus não faria um horror desses!

9. A galinha, depois que seu marido fora devorado com macarrão pelo rapaz do lado, resolveu pôr ovos no quintal do carrasco. Às outras colegas poedeiras disse que era vingança contra o dono, que incentivou o galo com os trinados de cantor de boleros, que ele ensaiava sempre às quintas-feiras. O pobre galo o acompanhava, até que irritou definitivamente aquele vizinho assassino, mas muito bom cozinheiro.

10. A moça da quitanda foi chamada ao telefone. Do outro lado da linha era a outra, ou melhor, a esposa do cantor de boleros, a voz trêmula. Ouviu muitas e péssimas! Calada ouviu, calada ficou. À noite, ao encontrar com ele, chamou-o disso e daquilo. Havia mentido para ela, dizendo que ficara viúvo e, como consolo, passara a cantar boleros no Clube Recreativo Operários Anarquistas, em frente à Praça Dona Ermelinda. Um traste mentiroso!

11. Sem uma e sem outra, resolveu pedir perdão à mulher que estava com Parkinson. Ela, dona de tudo: do canapé da sala à casa em que moravam, presente de seu pai, quando dera o mau passo de se casar com ele, contra todas as opiniões familiares (Até o cachorro dela rosnava quando ele entrava em casa.). A mulher não quis nem saber. Disse-lhe para procurar o advogado da família, que já estava com os papéis do divórcio para assinar. Em cima de mim e da casa, jamais! E mandou-o de volta para o porão de trecos inservíveis, até que fosse definitivamente removido de sua vida.

12. Ao reclamar com o empregado da casa que este estava gastando muitos palitos de fósforos para fumar, levou pelas platibandas ofensa não prevista na CLT, tal qual a de que “no dia em que você botar alguma coisa dentro de casa, pode reclamar; caso contrário, aguente”. Nem teve autoridade para dispensar o abusado, pois quem sustenta a casa é a mulher que “pegou” Parkinson, e sua galinha não anda pondo ovos que possa vender. O cachê de cantor de boleros gasta na mesma hora com a morena da quitanda e com potes de brilhantina Royal Briar.


30 de janeiro de 2012

GEOGRAFIA HUMANA (MULHER DESCRITA)

da cabeça aos pés não há limites
apenas transgressões e o belo
os olhos a cor da pele os longos cabelos
toques de pêssego maçã no cheiro.
as pernas são desejos.
nos lábios riso
sedução na boca
e o jeito altivo do porte
(às vezes menina sempre mulher).
os seios rijos vulcões ardentes
apontam o horizonte em frente
a praia em que se estende o ventre
até a fecunda fonte das tormentas
donde se sorve leite mel e néctar.
o dorso é o relevo insinuante
macio e amplo
a escorrer dolente pelos ombros
até a linha da cintura
e aí ainda que a imensidão não abunde
a mulher difunde uma beleza rara
porque de bruços é uma pintura
e de qualquer ângulo uma loucura.

Pisarev Gennadiy, Naked woman
(imagem em faber-niet.tumblr.com).

29 de janeiro de 2012

NEM TUDO É FILOSOFIA

Nem tudo em que eu acredito
É do jeito que eu penso
Às vezes penso que é isso
Às vezes não é o que penso
Por isso é que não acredito
Em tudo aquilo em que penso

Pois metade do que penso 
Penso que não seja fato
Me sobra a outra metade
Que está mais para boato
Assim essas duas partes
Vivem em constante distrato

É que uma vai pra um lado
Da outra tão diferente
E quando eu me dou por conta
Na cabeça está ausente
Todo tipo de ideia
Que devia estar presente

É por isso que me resta
No pensamento uma falha
Pois se aquilo que eu penso 
Rodin, O pensador, séc. XIX
(imagem em luizbueno.net).
Fizesse peso de tralha
Certamente faltaria
Carga na minha cangalha

Diante desta certeza
De pensar eu abri mão
Resolvi fazer poesia
Que falasse ao coração
Já que aquilo que eu queria
Fazer de filosofia
Com muito pouca mestria
Não me veio à razão.

28 de janeiro de 2012

A MISSA DE CURA

Encomendou missa de cura para seu pai de oitenta e tais, que andava atrás de periguetes na rua.

O velho havia ficado viúvo e, tresnoitado de sempre, saía depois do jornal televisivo da noite para tentar possibilidades, por dinheiro miúdo, com meninas que faziam ponto na pracinha semiescura, semiclara, perto da rodoviária.

Sempre havia algum motorista de táxi conhecido, cujo ponto era próximo dali, disposto a ligar para a casa da filha. Cidade pequena tem desses problemas: todo mundo se conhece e se julga no direito de se intrometer na vida alheia.

- Olha, seu Honorino já chegou aqui. Hoje botou um boné creme.

Pela cor do boné, ela sabia que a informação não era um trote. O velho tinha uma coleção deles, muitos dos quais ela mesma trouxera de viagens que fazia, pelo menos, uma vez por ano Brasil afora e mais alguns países por aí.

Aquele de cor creme – lembrava-se bem – era um que lhe trouxera de Madrid, quando lá estivera há cerca de quatro anos.

Seu Honorino foi um homem religioso até a missa de mês da finada esposa. Depois disso, desembestou na vida. Só queria saber de saliências. Passou a comprar a pílula azul, inclusive no mercado paralelo, via Paraguai, de um muambeiro que lhe fiava, quando necessário. Montado nesse afrodisíaco, julgava-se ainda jovem, capaz das maiores prosopopeias, que gostava de comunicar aos frequentadores do bar do Barrosinho, entre um cafezinho e outro.

- Olha, seu Honorino hoje está com o boné quadriculado.
Era o que ela trouxera de Glasgow, no início deste ano.

Sempre saía com o marido, para rebocar o pai para casa. O genro ia contrafeito:

- Deixe seu pai se divertir, mulher! É o único prazer que lhe resta na vida.

Porém ela estava sempre preocupada com a saúde do pai, não só a física, mas também a financeira. Embora tivesse uma boa aposentadoria – fora o que, antigamente, chamávamos fiscal de rendas –, o dinheiro é um bicho arisco, capaz de escapar por entre as frestas mais estreitas, os dedos mais apertados. Se a mão for aberta como a de seu Honorino, então se faz uma cachoeira incontrolável. E, algumas vezes, tivera de socorrê-lo para pagar a conta da farmácia. Por isso, a sua preocupação.

Aí, encomendou ao padre Herculano, pároco da igreja que frequentava, também próxima à pracinha, a tal missa de cura, a fim de cicatrizar as saliências em forma de ferida na alma e no corpo do pai.

Era uma sexta-feira, às dezoito horas, quando o padre Herculano começou por aspergir água benta sobre a cabeça dos fiéis, em preparação para o ritual da cura.

Seu Honorino, ao lado da filha, na parte interna do corredor central da igreja, levou, praticamente, um banho de água benta. Padre Herculano sabia que a limpeza ali tinha de ser em regra.

Na hora, ninguém percebeu, mas subiu da calva de seu Honorino um leve vapor da água, como a denunciar a fervura de safadezas que iam no interior da cachola do velho.

Ele aproveitou o banho tomado e espalhou nos frontispícios da sua pessoa o Pelo Sinal, com cruzinhas aqui e ali mal colocadas, mas que, enfim, Deus iria lá entender a sua boa vontade em estar ali, para agradar a filha.

Por ele mesmo, não queria. Já havia muito frequentado igreja, rezado ladainhas, acompanhado procissão, ralado joelho em vias sacras, levado a netinha para as coroações do mês de maio, quando a finada era viva. Julgava ter um crédito avantajado no livro de São Pedro e começara a gastá-lo em vida, a fim de que, quando abotoasse o paletó, não passasse como um foguete pela porta do céu e o santo tivesse o trabalho de lançar âncora, para segurar sua alma no paraíso.

E, nessas ponderações mentais, levou toda a missa, sem prestar a mínima atenção ao sermão do padre Herculano, que ameaçava com as penas eternas nas caldeiras e fogueiras do inferno as pessoas caídas na tentação da carne, nos pecados da concupiscência e da bandalheira, como chegou a bradar, a veia do pescoço dilatada, o carão vermelho entumescido.

Ao final da missa, a filha foi até ao pároco agradecer o vigor das palavras e manifestar a esperança de que seu pai, enfim, voltasse a ser o velho ajuizado que fora até alguns meses atrás. Beijou a mão do padre e se foi com o pai, de braço dado.

Instado pela filha, seu Honorino disse que gostara muito do que ouvira – de fato, não prestara atenção em nada – e ainda gavou os dons oratórios do vigário, “um homem de Deus, apetrechado com o dom da palavra”, segundo afirmou.

No domingo à noite, logo depois do Fantástico, toca o telefone na casa da filha:

- Dona Fátima, seu Honorino acabou de chegar na pracinha. Agora está com aquele boné marrom de veludo.

Era o boné que lhe trouxera de Gramado, no ano anterior...

Imagem em mastiz.net.

27 de janeiro de 2012

VIDA/MORTE



a vida não é uma estrada
           não é uma ponte
                     um belo horizonte
           nem outra metáfora
a vida
           para a maioria dos sem sorte
           é a agonia
que precede a morte
Tino Aime, Eclisse, 2008 (em commons.wikimedia.org).

26 de janeiro de 2012

FAÇA CHUVA OU FAÇA SOL

Faça chuva ou faça sol
O dia seguirá inapelavelmente para o fim
Ninguém deterá o desenrolar dos fatos
Nem a polícia nem o português da padaria
De fora da vida
Todos olham a prospecção que se faz do que virá
E ficam estáticos aguardando a solução dos problemas
Que goles de cerveja ou taças de vinho não resolverão
A incongruência estará ditando os rumos das coisas
E todos permanecerão à espera de um salvador
Como se fosse a indulgência de todos os pecados

Goya, Saturno devorando seu filho, séc. XVIII-XIX (em cgtbbva.net).

25 de janeiro de 2012

TIPO ASSIM (I): SEU JOÃO PITANGA

Morei em pensão, ao vir para Niterói em março de 1967.

Tinha completado os vinte anos e saí da minha Bom Jesus natal, para estudar e trabalhar aqui. Acompanhava meu amigo de Curso Científico, que àquela altura equivalia ao Segundo Grau, Antônio Carlos Lepre, do qual me perdi em todos os anos posteriores àquele, a não ser por uma única e fortuita vez em que nos encontramos em Icaraí.
Lepre vinha apenas estudar, porque sua família tinha mais posses e poderia mantê-lo aqui. Veio para fazer Engenharia. Aqui já estivera para encontrar lugar onde ficar e foi na pensão de dona Dinorah que reservara sua vaga.

Fiz minha bagagem, comprei passagem junto com ele e desembarcamos numa manhã de domingo, cheia de bons presságios, na rodoviária da cidade. Pegamos o antigo ônibus da linha Viradouro-Centro e, depois de acertar o sentido do trajeto, chegamos a Icaraí. Cheguei na cara de pau, como se diz comumente, mas dona Dinorah dispunha de vagas.

A pensão ficava na Rua Pereira da Silva, na primeira quadra da praia, em casa geminada de dois andares que já há muito desapareceu da paisagem urbana, dando lugar a um edifício.

Como já havia morado no internato do Colégio Bittencourt, em Campos dos Goytacazes (Eh, grafiazinha mais esquisita!), não me foi difícil dividir o espaço com desconhecidos.

Os rapazes moravam na parte superior da casa, enquanto as moças, dona Dinorah e uma filha casada, o genro e suas duas netas habitavam a parte térrea.

Entre os rapazes, nem todos estudantes, estavam também um senhor de certa idade, seu João Pitanga, com seu quartinho separado, e o italiano Pietro, sócio do extinto Supermercado São Francisco, também num quarto só seu e bem maior.

Num quarto coletivo grande, além dos estudantes, dormiam o italiano Ciro Firpo (já referido por mim em outra postagem*) e o paraibano Roberval, que teimávamos em chamar de Baiano, para seu desespero:

- Eu me chamo Roberval e sou paraibano! – respondia sempre de mau humor.

Seu João, que, se não me engano, era aposentado do extinto Instituto Brasileiro do Café, efetivamente morava na pensão, após o término de seu segundo casamento – diziam à boca pequena, por traição da mulher mais nova. Era um homem culto, refinado, com as manias inerentes aos mais velhos, e que recebia esporadicamente a visita de um filho sempre que este tinha necessidades financeiras, motivo por que os rapazes, que tinham em seu João uma figura paterna, cultivavam uma solene antipatia por ele.

Com frequência conversávamos sobre Literatura – ele mesmo cometia seus sonetos e dava pitacos sobre a métrica quebrada de alguns versos meus – e cultura em geral. Dos poetas, gostava sobretudo dos parnasianos, Olavo Bilac à frente, pelo rigor formal e o cuidado na escolha das palavras. Lia seus jornais diários e alguns livros, que sempre oferecia para os que quisessem.

Estava sempre bem vestido, bem barbeado e suavemente perfumado. Fumava cigarro com piteira – as unhas aparadas e lustradas em manicura – e lembrava, pelo porte, de longe, um lorde inglês em processo de decadência financeira (afinal, morava num quartinho de pensão!).

Tinha ele um irmão médico, doutor Osíris Pitanga, que sempre aparecia  por  lá,  para vê-lo, trocar uma prosa em que, às vezes, nos incluíamos, e durante as férias escolares fazia as refeições na pensão, na companhia do irmão, porque sua mulher e filha iam aproveitar as delícias de uma casa que tinha em Guarapari, no Espírito Santo, famosa por suas areias monazíticas.

Como a vida sempre cuida de aprontar das suas, certa vez, ao voltar de umas férias mais longas em Bom Jesus, fomos surpreendidos pela notícia da morte de seu João: o coração lhe pregara a fatal e derradeira peça, e, desta vez, de péssimo gosto, pior que todas as anteriores.

Paul Cézanne, O fumante, 1890
(em atractif.com).

----------
(* No texto Desse susto não se morre, em http://wp.me/p1oCVU-x )

24 de janeiro de 2012

CAFÉ DA TARDE

À tarde
O cheiro do café recém-coado
Perfuma a casa por toda parte
E invade minhas narinas descansadas.
Sigo a trilha do perfume que se esbate
Pelos cômodos
Até a cozinha
E sorvo goles generosos
Acompanhados de um prazer
Quase inenarrável
Constituído dessas minúsculas partículas do viver:
Um jeito assim tão simples
De ter a felicidade pela vida
Esparramada
Imagem em meridiano.com.br.
Na forma líquida
Do café da tarde.

23 de janeiro de 2012

PARA FERNANDA TAKAI

Sou encantado pela Fernanda Takai
Por aquele jeito sem jeito
Aquela beleza estranha
Aquela mineirinha de olhos puxados
Aquela voz que mia no contorno das canções
Resfolegando nas letras
Como o trenzinho a vapor de Tiradentes
Confortando meus tímpanos nervosos
Levando minhas preocupações
Para as montanhas de Minas

Minha mulher não sabe
(E também não desconfia)
Que sou maravilhado pela Fernanda Takai
Mas pode ficar tranquila
Porque esta minha paixão
Só se desvela vez ou outra
E em forma de música
Quando ouço Fernanda Takai
Mas assim mesmo
Ela não está nem aí para mim
E segue cantando suas canções
Fernanda Takai, em foto de Rafael
Motta (em cifraclubnew.com.br).
Com a dolência do velho trem   
Para São João Del-Rey

Ainda bem!

21 de janeiro de 2012

DEZ CONTOS URGENTES

1. Saía da última sessão de fisioterapia, com todos os movimentos recuperados, após o acidente com a moto, quando foi atropelado pela carrocinha de pipoca.
2. Desmontou todas as molinhas do cabelo a poder de escova japonesa. Entrou no saguão da Estação Dom Pedro, e os ventiladores umidificadores botaram a perder seis horas de trabalho e cerca de trezentos reais. As molinhas voltaram todas!
Imagem em leticiapriss.blogspot.com.
3. Na hora, quebrou o canino com o caroço da azeitona. Depois, teve piriri gangorra por causa do recheio de camarão estragado da empada, que comera no Bar Gruta do Bin Laden. Internado, pegou infecção hospitalar. Quem mandou?! Melhor ir para o Iraque.
4. Estava entre a cruz e a espada, mas retrocedeu no caminho, tomando direção contrária. Agora está entre a cruz e a caldeirinha. Ele que é agnóstico de carteirinha e tudo.
5. Cinco dias por semana, trabalha que nem um boi. Nos dois que sobram, bebe, fuma e joga, que nem um louco. O fígado não quer nem saber: anda cobrando seus direitos. Já o pulmão só tosse, tosse, tosse!
6. Plantou milho no morro nos fundos da propriedade e colheu pipoca. Tocou fogo na terra e passou a vender carvão. Dispensou os empregados inopinadamente e agora tem um cabeludo processo trabalhista nas costas.
7. Labaredas queimaram o colchão, a cama e o cobertor. Apagou-as com baldes d’água, que inundaram o quarto. Quando os bombeiros chegaram, ele tomava genebra na birosca em frente ao prédio, tira-gosto de tremoços.
8. Tentando fugir da má quadra de vida por que passava, sempre apostava os mesmos números na quina. Só jogava nos sorteios acumulados. Até que um dia, não se sabe por que motivos, ganhou no terno. O dinheiro foi tão pouco, que não deu para comprar um par de meias de qualidade.
9. Vivia de olho espichado na barraqueira da feira que vendia frango. Um dia, tomou coragem e chegou para ela e encomendou um peru para o Natal, com os olhos injetados de lubricidade. A feirante achou o pedido esquisito e o ameaçou com a faca de destrinchar penosas.
10. Leona sempre encantou os homens com sua beleza e sua inteligência. Muito seletiva, achava-os bobos, mal abrissem a boca. Passadas décadas, Leona está até hoje selecionando aquele que possa merecer um pouco de sua magnificência, que certamente sucumbirá sob sete palmos.

20 de janeiro de 2012

FIM DE TARDE

o sinal vacila e há um acidente,
há um morto no trânsito: transtorno.
há um patético correr de cada lado,
de cada esquina, de cada porto
em que nos metemos todos.
e quanto mais o sangue jorra
o grito do companheiro louco
vara nossos tímpanos cansados.

há uma poça estranha na esquina,
onde os carros impunemente
lambuzam seus pneus
no sangue de um humano desgraçado.

Adam Shaw, Heart outside the body, 2011 (commons.wikimedia.org).

19 de janeiro de 2012

MÁ COMPANHIA

quanto mais eu
me quero
menos eu
eu sou
quanto mais eu
me pretendo
mais eu
me perco
e sigo não comigo
mas com eu
perdido no meu tempo
assim perdido o eu comigo
que é a mesma coisa que me perder
com ninguém
e quanto mais eu
me convenho
mais me convenço
de que não me vou bem
porque estar comigo o tempo todo
caro amigo
não paga o mínimo gosto
não vale o mínimo anseio
o estar constantemente comigo
é para mim castigo
de mim mesmo eu ando cheio
Imagem em catedral.weblog.com.pt.

18 de janeiro de 2012

CAFÉ A ESTAS HORAS?

Chegou a casa lá pela meia-noite com bafo de anteontem e olhos de groselha. Cheirava a perfume barato no colarinho da camisa amarrotada.

A mulher, com cara de acompanhar enterro de parente querido, fingia limpar as unhas com alicatinho de manicura, a tevê ligada num programa qualquer de leilão de bois. Bóbis no cabelo e a má vontade de anos de um casamento chocho.
Ele falou um oi de lado, em direção à parede da televisão, para que ela não percebesse o bafo. Inutilidade pura. O azedume empesteou a sala pequena, com a brisa que entrava pela janela jogando contra ele, servindo de testemunha de acusação.

Ela não respondeu ao cumprimento, mas falou que o prato estava arrumado dentro do micro-ondas e que iria deitar-se.
O marido foi tomar um banho caprichado antes de engolir a gororoba. E ainda lambeu, como aperitivo, um cálice de conhaque de gengibre.

Quarenta minutos depois, deitou-se ao lado da mulher, que já ressonava de cansada. Ele pôde, então, observar-lhe as olheiras dolorosas e tensas. Pensou de si para consigo: mulher assim é um perigo; pior ainda se estiver nos dias das regras. Aí é um perigo só! É surucucu no choco!
Porém não chegou a arrepender-se da esbórnia, e ainda remancheou na cama por alguns minutos, tentando encontrar uma boa desculpa para o café da manhã, quando, necessariamente, haveria a discussão da relação, que já andava pela bola sete.

Por volta das três da manhã, ao se virar no leito, levou a mão para o lado da mulher, imaginando possibilidades perdidas na madrugada. O gesto foi inútil: ela não estava ali.
Olhou, então, no relógio de cabeceira e viu nos números iluminados: três horas.

Sobressaltou-se. Pulou da cama e não viu luz no banheiro. Caminhou pela meia escuridão da casa e a encontrou na cozinha, fogo ligado, caçarola com água quase à borda, prestes a ferver, as primeiras bolhas soltando do fundo.
- Que está fazendo, mulher?

Com cara de pastel, ela lhe diz que estava fervendo água para o café.
- Mas às três da madrugada, mulher?! – Espantou-se.

- Me deu vontade! – disse-lhe com a mesma pachorra de antes.
Acendeu-lhe o pisca-alerta. E, num átimo, diz para ela:

- Então vou à padaria comprar pão fresquinho.
Foi e não voltou até hoje!

Imagem em noisentranse.blogspot.com.

17 de janeiro de 2012

DESERDADOS

há procissões de incréus rondando o pátio
cheirando flores nos jardins de lixo
aspirando páramos e gases tóxicos
entoando frevos maracatus maxixes

há te-déuns de ateus comemorado o tédio
agradecendo as crises nacionais
reverenciando os mortos e os espertos
vociferando xingando soltando os bichos

há comunhões de miseráveis comungando o medo
repartindo o pão que o diabo amassou
bebendo o vinho amargo da discórdia
comendo pedra merda bosta e piche

há batismos de fogo
ressurreições de infernos
glorificações de incestos
aleluias letais
sob os viadutos as marquises
e na grama verde do aterro

Pieter Brueghel, o Velho, O triunfo da morte, 1562.

16 de janeiro de 2012

PROFÉTICO

vou contornar o teu sorriso lírico
com um lápis preto
e o teu olhar empírico
com alguns borrões de dedo
tua cabeça múltipla
com um espaço exótico
o teu corpinho cálido
com um abraço sólido
para que este tempo gélido
se torne mais erótico
quando num futuro pretérito
eu estiver somente histórico.
Vermeer, Alegoria da Arte, 1666
(em artemazeh.blogspot.com)

14 de janeiro de 2012

JOÃO SEM VOTO

Quando o TRE divulgou o resultado final das eleições, foi como se João Lemgruber, o Alemão, tivesse levado um balde de água gelada pelas platibandas de sua pessoa avermelhada e presunçosa. Tivera tão somente dezesseis votos para a vaga de vereador, num pleito conturbado e cheio de acusações entre os candidatos, em que, para pretender uma cadeira à câmara, precisaria de quinhentos votos, em contas econômicas.
Tão logo teve conhecimento da sua inexpressiva votação, pegou a falar mal dos eleitores, para ele, agora, um bando de gente sem consciência política, muito mais interessada em ganhar agrados dos candidatos, do que em construir um futuro melhor para a comunidade. Deslembrado ficou de todas as pequenas promessas feitas a quem pedira voto.
E desandou em sua peroração por todos os lugares que comumente frequentava: o salão de barbeiro; o bar da sinuca; a roda de cafezinho do bar do Salim, na rua do homem em pé; o posto de gasolina no Bairro Novo; as filas de banco; em volta da carrocinha de angu à baiana do Pelega, nos confins da madrugada, deteriorando o paladar daquele saboroso prato fumegante, movido a pinga e pimenta, com suas observações ressentidas.
Nessas oportunidades, todos que o ouviam garantiam ter digitado seu número na urna eletrônica. Seria bom que ele verificasse isto muito bem, porque esse tal de computador, há alguns anos, tinha armado uma trairagem das grossas para cima do Brizola. Pusesse o Alemão isso na sua conta de desconfiança, como alertou Moreninho, ao lhe fazer a barba. E, justo no momento em que passava a navalha na altura da jugular, ainda lhe perguntou:
- Alemão, você duvida do meu voto? E, depois, Alemão, só de parentes seus há pra mais de cinquenta! Como é que você vai ter só dezesseis votos, cara?! Se fosse eu, pedia recontagem.
Com a navalha rondando espaço tão desacautelado de sua pessoa, Alemão concordou e encheu sua cabeça de nove horas e minhocuçus desconfiados.
No diretório do partido, aonde chegou cheirando a Aqua Velva, com muita má vontade do secretário, conseguiu que o ajudassem a requerer a tal recontagem.
Melhor não tivesse feito!
Imagem em routenews.com.br.

Quando saiu o resultado do recurso, trinta dias depois, viu que a votação diminuíra para apenas quinze votos. Foi como se Napoleão, seu ídolo, sofresse punhalada pelas costas de um de seus generais de confiança, em plena campanha da Rússia czarista.
Aí chamou a mulher às falas, no meio de chouriço com angu molinho pelo almoço e um mau humor a que nem chá de losna daria jeito. Pediu-lhe que convocasse a família – sobretudo a dela – no intuito de apurar as falsidades de costume. Durante a campanha, vinha a parentagem comer seus churrascos e suas feijoadas e arrotar que a eleição "já é nossa, Alemão", como falava aos brados o cunhado Militão, empanturrado de caipirinha e maminha de alcatra, coadjuvada por mandioca amarela no vapor.
Cunhado, quando tem alguma serventia, é para emprestar dinheiro a juro de poupança e oferecer cerveja gelada nas visitas contumazes que recebe. Militão nem para isto servia, pois era ele quem sempre vinha dar suas facadas no bolso do Alemão. Militão também iria ouvir poucas e boas, que ele, Alemão, não estava aí para encher barriga de gente folgada e traiçoeira.
Só não marcou uma cabritada, a que, com certeza, todos aqueles mortos de fome compareceriam, porque não havia motivos: estava era vendendo azeite. Mas procurou falar com um e outro parente, do mais chegado ao mais distante, e não houve um que, sob juramento de ver a mãe mortinha, mortinha, desgarantisse ter digitado o número do Alemão naquela televisãozinha miúda do TRE: o 666.
Jurandir, que vinha a ser seu contraparente, porque casado com a prima Lindaura, de um grau quase perdido na parentela e com quem ele, Alemão, tivera alguns entreveros amorosos às esconsas, levantou a hipótese de que o número não ajudava. Era o tal número da besta do “poscalipso”, como ele disse.
- Que “poscalipso”, que nada, Jurandir! Fui vítima é da trairagem de vocês! Na hora de comer da minha feijoada, de se fartar do meu churrasco, todo mundo estava lá, com a boca cheia de dentes, prometendo mundos e fundos. Até arroto espaventoso tive de aturar durante a campanha! Teve gente que até me pediu vaga de assessor, contando com o ovo no cu da perua. Agora você vem com esta história de “poscalipso”. Tenha dó, Jurandir! Foi trairagem das grossas! Militão é outro: veio com desculpa esfarrapada de que a vista turvou na hora agá e possa ser que o dedo tenha escorregado para outro número. Isso é desculpa, Jurandir?! Que possa ser, mané possa ser, Jurandir?! Vocês são é um bando de traíras! Parente é serpente, Jurandir! Quer saber? É isso que é: serpente! Pega no calcanhar da gente, quando estamos desprevenidos. O tal calcanhar de aquilo, como se diz. E tem outra, Jurandir, vou me mudar pra Barra de São Francisco, em terras do antigo Contestado do Espírito Santo, parede-meia com Minas Gerais. Dizem que lá é terra de gente braba, mas tudo de palavra. Se falar que é, é porque é! Se falar que não é, nem Santo Expedito muda a opinião deles! Vou é pra lá, Jurandir!
Jurandir não respondeu. E Alemão deu a volta sobre os calcanhares, tal qual recruta do tiro de guerra, em exercícios militares pesados, visando a possível guerra estrangeira.
Quinze dias depois, estava a mudança triste de Alemão e dona Carminha, sua mulher, no caminhão-baú do Candico, atravessando a ponte sobre o rio Itabapoana.
Era uma manhã comum de janeiro – o bico do maçarico solar já ligado – e o caminhão começou a subir a serra de São José do Calçado. Passou pela Volta Fria, mas não passou da curva de Palmital: o velho motor bateu biela, sem dó, nem piedade, e refugou continuar viagem.
Alemão teve de ir a pé até a sede do município requerer ajuda do amigo Tonico Lahud, que lhe enviou caminhão para rebocar a tralha toda de volta a casa, e decidiu enfrentar a situação como Napoleão no seu exílio da Ilha de Elba. Porém não saiu mais de casa, porque passou a ser conhecido por João Sem Voto. E não queria saber de intimidades com merda de rei inglês nenhum.
E humilhação maior na cidade só houve, quando seu time perdeu para o Ordem e Progresso Futebol Clube, da cidade vizinha, por placar que este narrador tem até vergonha de registrar aqui.

13 de janeiro de 2012

O QUE É AMAR-TE?

O que é amar-te?
Um estilo de vida?
Uma forma de arte?
Um acaso um delírio
Uma ferida ou um corte?

O que é amar-te?
É um porto seguro
Ou uma nave que parte
Num mar tenebroso
Que nos espera com a morte?

O que é amar-te?
É uma dor que aniquila
Ou um prazer que reparte
Uma parcela de sonho
Que a mim reconforte?

O que é amar-te?
É uma paz duradoura
Ou a vontade de Marte?
É um jogo fatal
Ou um mero esporte?

O que é amar-te
Senão querer-te
Caleidoscópico sorvete
Que a um toque derrete
Minha fraqueza tão forte
E se escorre em meu corpo
E se agiganta em teu porte
De mulher de donzela
De novíssima estrela
Que cintila na tela
Dos meus olhos cansados
De imagens tão velhas?

O que é amar-te?
Talvez um pouco de sorte.
Certamente um bocado de arte!

Eliseu Visconti, Moça no trigal, c. 1916 (em eliseuvisconti.com.br).