30 de setembro de 2013

SE NÃO VIERES

se não vieres por bem
de mim mesmo ou por mal
dos meus pecados
estarei sozinho
desencontrado
tresnoitado
desnorteado
procurando os rescaldos
do incêndio que me consome

se não me deres a mão
como na canção
with a little help from my friends
ficarei sem entender
e aí estarei
no maior sufoco
num beco sem saída
tomando a bênção a cachorro
e chamando urubu de meu louro



Imagem em nemper.deviantart.com.

23 de setembro de 2013

POTAMOGRAFIA LÍRICO-IRÔNICA

Rio comprido
Rio torto
Rio falho
Rio das ostras
Como se fosse o Itabapoana
Rio das antas
Dos energúmenos
Dos lacaios
Rio dos sinos e dos badalos
Como rio dos patos
Que caem no conto do vigário
E dos otários
Que se presumem um rio de espertezas
Rio dourado
Rio preto
Rio pardo
Rio da prata
Rio vermelho e amarelo
Conforme o estado líquido em que me encontre
Rio da ponte sobre o rio seco
Cuja água foi ontem
E hoje nada
Rio doce
Rio amargo
Politicamente incorreto
Rio das velhas
Assim como rio das mortes
E rio dos frades
Rio forte
Rio grande
Às gargalhadas
Com qualquer curso d'água
Que apesar dos homens
Ainda cumpre sua sina
De banhar as terras sôfregas às suas margens

Rio Itabapoana, na altura de Bom Jesus (foto do autor).

19 de setembro de 2013

PEQUENA HISTÓRIA

nas primeiras dores da manhã
o parto
e o sol nascente natimorto
o amor quedando roto
pelas barrancas do rio
o filho deposto sobre a grama
esteira de formigas

nas últimas cores da tarde
a morte
e o sol posto cadente
o corpo roxo de frio
sem sopro que impulsione
na correnteza do rio

pai e mãe insones

e longe
sobre os umbrais do vir a ser
nada
nem corpo nem alma
o amor restando inútil

e a vida essa colcha de retalhos inconsútil
mal cosida
esses remendos sem desvelos
esse horrível pesadelo

Cândido Portinari, Criança morta, 1944 (em candidoportinari.net).

16 de setembro de 2013

TERCEIRA IDADE É O CACETE!

Em dois momentos, nesses últimos dias, notei que estou realmente ficando velho. Ou que já estou velho, sem subterfúgios eufêmicos. Legalmente já o sou, embora não queira fazer muito uso dos benefícios que a lei me concede, a fim de que não me sinta, realmente, na tábua da beirada, à beira do abismo.

Um desses momentos foi o representado pela foto que minha amiga Laura Dutra fez durante o festival de gastronomia de Tiradentes, a fim de experimentar minha nova câmara fotográfica. Laura é exímia fotógrafa e quis conhecer minha nova aquisição. Até publiquei no Facebook o resultado daquele instante: eu e Jane em momento de fruição do festival. Não pude deixar de notar – foto é pior que promotor de justiça – que estou um tanto alquebrado pelo tempo.

E o ilustre leitor que me honra nessa leitura há de perguntar:

- E aí, Mané, não tem espelho em casa? Não se vê todo dia?

Pois é! Faço o maior esforço para não me ficar olhando ao espelho. Não gosto muito de mim mesmo. Nem de espelhos. Acho a Shakira e a Beyoncé mais bonitas. Sempre que tenho de me dirigir ao espelho só atento para o que de fato estou fazendo: a barba, os dentes, aquela mancha que precisa ser removida. Contudo não faço uma pesquisa de campo mais ampla. Ou melhor, não fico me admirando. Sou propriamente o anti-Narciso.

Na foto, contudo, isso fica evidente. Você se olha por inteiro, já que a foto o reduz a dimensões liliputianas. 

E lá estou eu já com o aspecto que deve ter um cara que chegou aos sessenta e seis anos. Sem choro, nem vela!

Já o outro momento ocorreu exatamente no dia 5 deste mês. Vejam que o troço me marcou de modo sério.
Fui para Bom Jesus do Norte visitar minha mãe, depois de deixar Jane em Miracema com a sua. Cheguei lá pelas três horas da tarde e tremi algumas vezes de frio, a temperatura não baixando mais que 21ºC. Até conferi no termômetro lá de casa.

Achei aquilo muito estranho. Só as pessoas idosas sentem frio com 21ºC. Até o dia anterior eu havia sentido calor com a mesma temperatura em Itaperuna. Alguns até hão de me dizer que em Itaperuna é sempre quente, não importa o que o termômetro marque.

Porém, até então, em toda a minha vida, jamais havia sentido calafrios com tal temperatura. Fiquei triste, porque percebi que os hormônios que nos fazem mais resistentes ao frio que as mulheres, por exemplo, podem estar indo embora, me abandonando de forma inapelável.

É, de repente, acho que desci um degrau definitivo na carga etária!

Mas, mesmo assim, não sou terceira idade, melhor idade, ou outros eufemismos idiotas com que tentam dizer para nós que ficamos velhos.

Fiquei velho, e pronto! Azar o meu!

Jane e eu, em foto tomada pela amiga Laura Dutra.

14 de setembro de 2013

A GLORIOSA PARADA QUE NÃO HOUVE


Sob o comando do subtenente Silva, servia eu o Tiro de Guerra nº 1, o TG1, em Bom Jesus do Itabapoana, no correr do morto e enterrado ano de 1965.
O rigor militar na disciplina, na ordem, na organização é ponto indiscutível, sabido por todos. E o subtenente fazia questão de manifestar isso a cada momento.

Nossa garbosa corporação recebeu o honroso convite de desfilar na festa anual da vizinha cidade de São José do Calçado, terra do meu amigo Zé Antonio Lahud, caracterizada por ruas de sobe e desce.
O subtenente Silva resolveu preparar uma apresentação de gala para o hospitaleiro povo calçadense. Por mais de uma vez, falou sobre a importância da nossa apresentação, que deveria ser um primor. Nós, no entanto, ficamos excitados, porque já nos imaginávamos conquistando os corações das garotas da cidade, após o irreprochável desfile que faríamos e também pelo apelo praticamente irresistível da farda.

No quadro negro da sala de instruções, traçou os planos para o desfile, que culminaria com uma salva de fuzil, em uníssono. Para tanto, combinou e recombinou, em sala, teoricamente, o que fazer. Com os fuzis carregados com um tiro de festim, ele daria a ordem, com a característica entonação militar, no compasso da marcha, a um bando de soldados meio atabalhoados:
- TG1, preparar armas! – o tom da frase sempre aumentando ao final.

Em seguida:
- TG1, homenagear Calçado! – no mesmo tom.

Então contaríamos até três, sempre no compasso. E quando o pé esquerdo marcasse o fim da contagem, começaríamos a gritar (soldado não fala, soldado grita!) compassadamente:
- Tê – gê – um – sa – u – da – o – po – vo – de – Cal – ça – do!

Contaríamos até o terceiro passo novamente e dispararíamos no número três, em uníssono, a salva de fuzil.
Treinamos em sala, ele no comando, a tropa marcando passo, apenas para sincronizar passo, frase e momento de disparo. Treinamos várias vezes, até que ele deliberou levar a tropa para a rua, em Bom Jesus, com o intuito de fazer uma simulação com os fuzis carregados.

A valorosa tropa da turma de 1965 formou em frente à sede do Tiro de Guerra, na rua Abreu Lima, e partiu em marcha rumo à praça Governador Portela. Assim que contornamos a praça e começamos a voltar para a Abreu Lima, o subtenente deu a ordem:

- TG1, homenagear Calçado!
- Tê – gê – um – sa – u – da – o – po – vo – de – Cal – ça – do!

- Um, dois, três: agora!
O que se ouviu, então, pareceu festa de São João! Cada soldado puxou o gatilho no seu próprio tempo. Aquilo era uma saraivada e não um estrondo. Pipocou tiro como se fosse uma caçada de rolinhas, ou a queima de um tipo de bombinha junina chamada estrepa-moleque, que estoura aleatoriamente várias vezes.

O subtenente ficou uma arara, ficou possesso! No meio da rua mesmo, nos chamou de bando de mariquinhas, de Carmens Mirandas, de Martas Rochas, que era como gostava de menosprezar nossa macheza. Falou que aquilo era mais um bando, do que uma tropa. E emendou exigindo que repetíssemos o treinamento, agora sem o tiro de festim, já que os fuzis foram carregados com apenas um cartucho.
Repetimos tudo e, ao final da contagem de três, ele gritou;

- Agora!
Para espanto geral, ouviu-se, na vastidão da Rua Abreu Lima, desobstruída de carros e de gente, um único e solitário estampido, produzido por um retardatário.

Soltando fogo pelas ventas, o subtenente quis saber, aos gritos, a jugular a saltar-lhe do pescoço:
- Quem foi o mariquinha que deu o tiro? Quero saber quem foi essa besta quadrada?

Soldado não se omite, não se esconde. Assume o malfeito, nem que pegue cadeia.
De um ponto qualquer da fileira à minha frente, o soldado número um, Adalberto, nome de guerra Assad, vulgo Manequim, topete em platibanda moldado a brilhantina Glostora, gritou:

- Fui eu, subtenente, soldado Assad, número um.
Como castigo, se não me falha a memória, Manequim foi cavucar um barranco atrás da sede do Tiro de Guerra, local que funcionava como uma espécie de pelourinho para toda trapalhada cometida por nós. A corporação, essa, nunca jamais foi desfilar em homenagem ao hospitaleiro e laborioso povo calçadense.

Todos os nossos projetos de paquerar as belas garotas de São José do Calçado foram, literalmente, de morro abaixo.

Recruta Zero, criação de Mort Walker.
 

10 de setembro de 2013

RORÁIMA OU RORÃIMA?



Publiquei em Gritos&Bochichos, em 23/4/2010, o texto abaixo, na rubrica Essa nossa rica língua.

Como nada mudou, repito-o aqui, na esperança de que mais alguns leitores conheçam a verdade dos fatos sobre a pronúncia que a Rede Globo teima em imprimir à palavra Roraima, nome de um dos nossos estados federativos.

De antemão, devo alertar os leitores de que tenho certa implicância com algumas pronúncias que o William Bonner faz de determinadas palavras. Mas o que expresso aqui não tem nada de pessoal - e nem haveria, pois ele não está nem aí para este que vos escreve. Mas é que há certas coisas que me incomodam muito. Então, é melhor escrever.
 

-o-o-o-o-o-o-o-


Temos ouvido  com frequência, todas as vezes que locutores e jornalistas da Rede Globo de Televisão, individualizados aqui pelo William Bonner, se referem ao estado do Norte brasileiro, fazerem a pronúncia aberta do /a/ tônico da palavra Roraima: /Roráima/.

Tal pronúncia é estranha ao linguajar no Sudeste, de onde partem as emissões da Rede. Também, pelo que sei, os jornalistas e locutores não são nativos daquele Estado, o que também não se justificaria. 

Incomodado com tal pronúncia, enviei mensagens eletrônicas para Bonner e para Evaristo Costa, do Jornal Hoje, sem que nunca houvesse mudança na pronúncia. Pretensão minha, não é mesmo? Mas lhes explico.

Não importa como, em Roraima, os roraimenses pronunciem quaisquer palavras da língua. Cada região irá pronunciá-las com o sotaque que lhe é característico. Ora, na pronúncia padrão brasileira, como ocorre em nossa região e em várias outras, é traço comum como que nasalar, com o fechamento do timbre, as vogais ou ditongos, após os quais apareçam as consoantes nasais /m/,  /n/ e /ŋ/. Por exemplo, não dizemos /andáime/, mas /andãime/, assim como fechamos o /a/ tônico de cama, cana, cânhamo, estamos, ficamos. Em Portugal, a pronúncia de todos esses /a/ é aberta. O mesmo ocorre com a vogal /o/: somos, sono, sonho, Antônio. Eis aí um traço distintivo entre os dois sotaques: em Portugal o /a/ e o /o/ são abertos, no Brasil são nasalados, fechados.

Imaginem se é possível a um falante de determinada modalidade regional saber como a população local pronuncia os nomes dos lugares em que vivem?

Há algum tempo, vi no sítio eletrônico do Millôr Fernandes a ponderação de uma teleleitora, como ele costuma dizer, sobre o assunto. Lá ela se expressa da seguinte forma: “Como nativa, devo afirmar que a pronúncia correta seria realmente Roráima; não fique enjúriado (sic) com o Bonner. O termo Roraima, assim como Pacaraima, Sorocaima e Maracaibo são palavras de origem caribe. O termo Roraima denomina um estado no Brasil e outro na Venezuela e, em ambos locais (sic) se pronuncia Roráima, e não Rorãima, como as pessoas falam na sua casa. William Bonner e a Rede Globo nada mais fizeram do que a gentileza de adequarem a pronúncia nasalada à pronúncia de que se valem os falantes da região. Manda a boa regra que se deve adotar o modo como os nativos falam palavras típicas do seu local”.

Também não importa a origem da palavra para pronunciá-la em nossa língua. Para esse caso, seja exemplo a palavra fogo (substantivo), que  em latim tinha o primeiro /o/ aberto (breve): fŏcu. Aproveitando a oportunidade, também não se justifica a pronúncia em /o/ fechado da palavra ioga, como querem os praticantes da filosofia, sob a alegação de que em sânscrito, de onde provém a palavra, o /o/ é fechado. Comparem-se: joga, toga, roga, voga, sogra, logra.

À luz da Linguística, não há boa regra que nos obrigue a pronunciar como os nativos de outras regiões. Seríamos, então, obrigados a pronunciar /Ricifi/, /Parri/, /London/, para Recife, Paris e Londres, já que é assim que as populações locais pronunciam os nomes de suas cidades. É possível saber como os locais pronunciam: København (Copenhague), 北京; (Pequim), Улаанбааτар (Ulan-Bator) ou Warszawa (Varsóvia)?  Foi esse, inclusive, o teor da intervenção que enderecei ao Millôr na época.

Além do mais, não há em Linguística (ciência) a noção de deferência linguística. Tentar falar como o outro soa mais como brincadeira.

Bonner não alterará sua pronúncia, tenho absoluta certeza. Assim como não alterou a de sem-terra, que ele faz como se sem fosse meramente uma sílaba da palavra composta e não um vocábulo preexistente na língua. A pronúncia da primeira sílaba da palavra composta formada por sem + terra é /seyn/ com uma semivogal /y/ e não /sen/, sem a semivogal, como se faz em centena, sentido. E olhem que para isso também já enviei várias mensagens, todas infrutíferas.

Mas a vida tem dessas coisas: uns, moinhos de vento; outros, Dom Quixote!

 

Primeira gramática da língua portuguesa, de Fernão d'Oliveira (séc. XVI).
 
 
PS: Vejam o comentário do amigo Alfredo Moreirinhas, logo abaixo, para atentar para as observações que faz acerca da pronúncia lusitana. Obrigado, Moreirinhas!
 


6 de setembro de 2013

RETOCANDO O COLESTEROL


Estive em Tiradentes, neste último fim de semana, retocando meu colesterol.

Vou sempre lá com a Jane e amigos. Desta vez, em petit comité, com Rogério e Laura. Mas já fomos em bando de mais de vinte amigos. Nunca há erro. Nunca há deslizes ou equívocos, e cada vez é sempre inusitada.

Tiradentes deve ser o meu destino preferido de viagem.  Até mais que Paris, porque mais acessível.

Já disse alhures que devo ter uma alma colonial, inconfidente; mineira, enfim. Ou não há outra explicação para esta identidade tão grande. Mesmo para mim que não acredito em almas. Deste ou do outro mundo. Mas é que há uma sintonia fina, em HD, sei lá, com a cidade. E, reparem, não tenho o mínimo interesse em morar lá: aquelas pedras do calçamento destruiriam o que ainda sobra de sadio em meus joelhos, já tão propensos à artrose.

Mas vou lá para retocar meu colesterol. Que meu endocrinologista não me leia! Contudo continuo tomando a droga que ele prescreve e entro de sola - ou melhor, caio de boca - em torresmos, costelinhas, lombinhos, linguiças, tutus, feijões tropeiros, movidos a cerveja e pinga. Que ninguém é de ferro! E, à noite, há libações enológicas de muito bom gosto, dentro dos limites que a economia nos impõe. Porque, se pobres ou minguados de pecúnia, somos soberbos em bom gosto.

A vida sem colesterol deve ser muito sem graça. Desde que nasci, no interior do Rio de Janeiro – em Carabuçu, para ser mais preciso –, ando de braços com o colesterol. Lá somos – ou éramos, pelo menos – criados à base de carne de porco e seus embutidos magníficos, o chouriço e a linguiça no topo da lista. Ainda hoje, em Bom Jesus do Norte, onde mora, minha mãe mantém nacos de porco mergulhados em gordura. Nunca falta carne numa emergência.

Aí vem a ciência médica e nos exige exames disso e daquilo, vampirismo em sangue alheio, e olha lá a taxa de colesterol gritando contra os abusos de dezenas de anos e um sedentarismo confortável. A gente se assusta. Eu, sem querer afrontar demais o progresso da ciência, me resigno a cuidar das (mal)ditas taxas, a fim de não sofrer um entupimento nas vias sanguíneas e fechar o paletó antes do tempo.

Entretanto não abro mão dos prazeres que aprendi a cultivar desde a mais tenra idade, quando era testemunha da matança de porco empreendida por minha saudosa avó Maína ou por minha tia Alda, que ainda está entre nós e não me deixa mentir.

Devo confessar que não tinha pena do bichinho, pelo muito de delícia que ele nos proporcionava. Ainda hoje também não tenho. Sobretudo quando se vai a Minas Gerais, onde o porco é o rei da culinária.

E em Tiradentes, no Bar do Celso, por exemplo, local a que nunca deixamos de ir, todas as vezes que chegamos à cidade, entramos na orgia gastronômica tão mineira, tão brasileira e tão carregada no colesterol. Mas quem há de resistir, tendo essa minha história gourmand, esse pedigree caipira que come carne sem constrangimentos? Não porque não tenha pena do bichinho, mas porque o ser humano só come outro ser vivo, como a couve, por exemplo, tão esquecida nesses argumentos politicamente corretos.

Voltei com o colesterol lubrificado. E a alma mineira – se é que ela exista – retemperada. No alho, na cebola, na pimenta-do-reino e no alecrim.
Imagem em gastronomirian.blogspot.com.br.

(PS: Em Miracema, utilizando o modem da Vivo, é impossível conexão decente com a Internet. Por isso, esta postagem vai sem ilustração. Tão logo seja possível, ela aqui estará.
PS2: Incluí a imagem, como podem ver aí.)