25 de junho de 2016

ANUNCIAÇÃO


Há velórios e velórios. Assim como há mortos e mortos.

Há aqueles velórios empertigados de mortos ilustres, merecedores de toda consideração, discursos, avaliações de sua vida laboriosa dedicada à causa da comunidade.

Há aqueles outros velórios, de gente mais morrível, mais simples, cheia de afeto dos amigos e parentes. Nesses não há discursos. Há causos, piadas, lembranças de acontecimentos engraçados em que o defunto esteve envolvido. Forma, talvez, de querer segurar sua memória, marcar a passagem para o desconhecido com as boas referências de quem nessa vida se limitou a viver, esquecido de que se multiplicou aos olhos de todos. Meras recomendações dos que ficam para aquele que vai atravessar o rio da morte, sem o dinheiro para o barqueiro. Nesses velórios, a viúva chora inconsolável, enquanto as amigas coam café, fervem leite, passam a bandeja de broa e rosca, e os homens, no alpendre da casa, na varanda, no terreiro, falam baixo, dão gargalhadas, raspam a garganta de um pigarro comprido. A noite alta não pega ninguém no desaviso. Por isso, os mais chegados ficam ou se revezam, para não deixar que as velas se apaguem e o finado fique sem luz. No finzinho da madrugada, a luz já embabadando os morros ao longe, costuma passar um prato fumegante de mingau de fubá ou uma boa caneca de café com leite, para matar a ressaca da noite indormida. E o finado lá, todo feliz, porque sabe que, embora não tenha levado absolutamente nada para pagar ao barqueiro do rio da morte, percorre o caminho inverso da anunciação do Salvador: a sua carne se fez verbo e continuou habitando entre nós.


Caronte (imagem em espiraisdotempo.blogspot.com).


6 de junho de 2016

TRÊS BÊBADOS

Argeu, Caburé e Pedro Moranga tinham em comum algumas coisas: trabalhadores rurais, pobreza, calos nas mãos, mocotós inchados e uma verdadeira paixão pela pinga. O trabalho da semana era todo sorvido em goles de branquinha, no mais das vezes sem acompanhamento de tira-gosto, porque o gostoso era o gosto da gostosa. Eta, calibrina boa! Eta, cachacinha dos diabos! Nem davam pro santo: podia faltar pros pecadores.
Invariavelmente chegavam à vila nas minúsculas tardes de sábado, cada um por um caminho: Argeu, dos lados da Fazenda da Liberdade; Caburé, dos lados do Izamor; Pedro Moranga, dos lados da Vala.
Entortavam na camulaia até domingo, cada um atirado em uma calçada: Argeu, em frente à máquina do Elias Penudo; Caburé, diante da venda do Cirilo; Pedro Moranga, próximo ao bar do Manuel Ribeiro. Ou sabe-se lá, onde! Rodizio constante.
Se um moleque implicasse, sempre a mesma resposta: Vai à puta-que-te-pariu! A diferença só na impostação da voz pastosa da bendita.
Nas infindas noites de domingo, cada um pegava o cambaleante caminho de volta - Que estrada estreita, sô! -, trocando pernas, cuspindo balebas, chapéu enterrado na cabeça, a sujeira das calçadas nas roupas. Às vezes um saco alvejado às costas, com os mantimentos para uma semana de trabalho duro. Às vezes uma leveza no corpo, a cabeça esbarrando no clarão da lua. Às vezes o peso dos séculos sobre os ombros tão doídos, tão banhados de sol...
  
Vincent Van Gogh, Os bebedores, 1890 (em museodelarte.blogspot.com).