30 de abril de 2013

MINHA MÃE (Oração profana)

(Para minha mãe, no seu aniversário.)

Minha mãe esculpiu a vida aos poucos
Sem pressa
Tateando entre as dificuldades dos tempos
: Quando não havia carne
Fazia angu
Fritava os lambaris que meu pai pescava

Contou os filhos aos cinco
Encarreirados os três primeiros
As duas últimas bem devagar

Minha mãe zelou a prole e o marido                                            
Rezou por eles
E ainda reza as orações que sabe de cor
E aquelas outras tantas que o coração lhe dita

Minha mãe é uma rocha em meio às vagas infindas
Que quebram à porta de casa
E ameaçam sua plantação de gente
Espalhada por netos e bisnetos
Desde o mais galalau até o mais pequetito

Minha mãe está lá
No seu canto
Silente
Debulhando o terço entre os dedos cansados
Na esperança de que nenhum dos seus
Se perca da trilha da luz
O seu maior medo na vida

E está em paz porque sabe que cumpre sua lida
Desde antanho até então
Com a tenacidade exigida aos determinados
E aos que não se entregam nunca
Porque a fé que a move é infinita

Pietà - El Greco
El Greco, Pietà, 1592 (em wikipaintings.org).

29 de abril de 2013

LUGARES DISTANTES

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em 11/3/2010.)

Ando pensando umas coisas cá comigo já há algum tempo. Porque há coisas que vêm de supetão e você tem de pôr pra fora rapidamente, senão dão indigestão. Outras, ao contrário, se insinuam sorrateiramente na gente e ficam encruadas, crescendo devarinho. Penso muito no banheiro, que acho o lugar mais apropriado para isso, principalmente ao tomar banho.
Todos os meus amigos sabem que sempre fui interessado por línguas, não propriamente o órgão do corpo humano, mas o produto de comunicação ali gerado e que faz com que nos entendamos ou desentendamos. Por causa desse meu interesse, que começou bem cedo na minha vida, desisti de um emprego no Banco do Brasil, lá pelo meio dos anos 60, para vir para Niterói estudar Letras.
Assim, sempre as questões da linguagem ficam futucando minha cabeça, sugerindo-me interesses, pesquisas (que quase nunca faço, porque dão um trabalho danado) e curiosidades.
Uma dessas curiosidades é a respeito da noção adverbial de lugar. Se lembrarmos bem das aulas de Português, virão à nossa memória os vocábulos que denotam a noção de lugar, de espaço físico, em relação ao falante: aquialiacolá, gradativamente do mais perto ao mais longe, e os de uso mais raro atualmente: algures e alhures, que, embora não sejam palavrões, parecem muito. Mais esses dois, por exemplo: perto e longe, que às vezes são exagerados ao dizermos pertíssimo e longíssimo, à semelhança dos adjetivos.
No entanto, a psicologia humana sempre tem necessidades de expressão que ultrapassam o limite do que a norma gramatical prevê. Então o falante lança mão de outros recursos linguísticos e estilísticos para expressar, com maior ênfase, aquilo que tem em mente.
Com relação à noção de lugar, vejam algumas expressões, às vezes acompanhadas pelo verbo de movimento ir: 1) onde o vento faz a curva - lugar distante, mas que pode ser imaginado a uma boa distância; 2) onde Judas perdeu as botas - esse sim um pouco mais longe que o anterior; 3) lá na Cochinchina - um pouco mais perto que o Japão, mas que é muito longe, convenhamos; 4) no caixa-prego - expressão muito usada no interior até algum tempo atrás, que sempre me pareceu muito bem humorada; 5) pras cucuias - também uma expressão mais antiga e que não nos dava a noção exata do lugar para onde nos mandavam; 6) no meio do inferno –  essa denota lugar nem tão longe assim e de localização certa e sabida; 6) no cu-do-conde – lugar que sempre me pareceu mais distante no tempo do que no espaço; 7) na puta-que-o-pariu – com localização exata para o destinatário da mensagem, tanto longe quanto perto.
Algumas denotam lugares muito próximos, que todos conhecem, mas que são de uma confusão só: a casa da Mãe Joana e a casa de Noca.
Outras expressões há, todavia, que me parecem denotar lugares muito distantes e nem sempre agradáveis. Um deles é a casa do cacete. O outro é pior ainda: é a casa do caralho, às vezes abreviada na forma em frases do tipo: “Vai pro caralho!”. Taí um lugar longe pra car… e que não deve ser nada bom para turismo ou negócio.
Até breve e em algum lugar auspicioso!

Meteora, Grácia (imagem em umabrasileiranagrecia.com.






26 de abril de 2013

VAI QUE...


Vai que eu te perdoe hoje e tu não me perdoes
E que eu te cante antigas loas e tu me tomes por tolo
Eu te receba uma vez mais
A porta aberta
E numa boa tu tenhas por certo
Aquele oásis ensombrado no deserto
Em que possas repousar quando quiseres

Vai que eu me encante por teus encantos
E tu me desencantes
Como se fosse assim a coisa mais à toa
A coisa mais simplória a haver no mundo
Um ogro encantado por uma fada

Vai que um dia e nada do que querias
Ter construído pela vida
Tenha ocorrido
E como a cigarra do conto com a formiga
Batas à minha porta
Aquela sempre aberta
A procurar o abrigo à sombra no deserto
Ou o agasalho ao frio excessivo

Vai que...
Vai que nada!
Pode entrar - a fechadura ausente o cadeado aberto –
Entra que a minha alma desalmada
Estará sempre armada para o afeto.

Still Life with Begonia - Pyotr Konchalovsky
Pyotr Konchalovsky, Natureza morta com begônias, 1916 (em wikipaintings.org).

24 de abril de 2013

1 ALMEIDA, 2 E 3

ALMEIDA 1
- Almeida, encoste a porta antes de entrar e não deixe as meias na pia do banheiro!
Toda noite era a mesma coisa, e Almeida, praticamente incorrigível. Se ela não falasse, ele deixava aberta a porta do quarto, por onde entrava um ventinho frio no meio da madrugada, capaz de atiçar a asma encruada da Zuleica, e suas meias usadas ficavam disputando espaço com os inúmeros potes de cremes da mulher.
O formalismo de Almeida, apesar dessas duas pequenas falhas de comportamento, se refletia até mesmo no sacrossanto recesso do lar: sua própria esposa o chamava pelo nome comercial: Almeida. Como se fosse a marca de algum produto de limpeza, de um leite UHT.
Almeida se passava por uma empresa prestadora de serviços de contabilidade, embora ele mesmo não fosse proprietário de empresa nenhuma. Porém era o contador sênior da Seabra & Seabra há vinte anos. Lá reinava com seus números e suas vírgulas, pesquisando centavos ao fim dos balanços, como se procurasse trufa negra.
Contudo, em casa, era um homem de modos antigos, de não saber fritar um ovo, nem passar um café. A mulher, Zuleica, que só não foi registrada com K porque o tabelião, à época, era um nacionalista ferrenho e não grafava nenhum nome de recém-nascido com letras estrangeiras, já se adaptara a ele. Talvez isso – a falta do K – tenha feito com que Zuleica se casasse com um tipo como o Almeida, que não cheirava nem fedia, mas era correto com ela.
A única coisa realmente esquisita que a mulher achava nele, dentre todas as esquisitices que um contador esquisito e metódico pode ter, era de, a cada quinze dias, ir fazer obrigação de santo num terreiro depois de Vilar dos Teles, de onde voltava só na manhãzinha seguinte, todo estropiado por ter passado a noite em vigílias e trabalhos espirituais.
Invariavelmente chegava a casa, nesses momentos, trazendo um frango assado com farofa, sobra do dia anterior, que comprava na padaria em frente do ponto de ônibus a preço de promoção.
Zuleica, então, se levantava, fazia-lhe um arroz fresco, bem molhadinho, carregado no alho e no azeite extravirgem, como de seu gosto, e o via devorar a metade do galináceo requentado no forno micro-ondas.
ALMEIDA 2
Almeida era o Almeidão para os seus colegas de trabalho da Seabra & Seabra, empresa de assessoria contábil, com um razoável portfólio na praça de Madureira e adjacências, prestadora de serviço para a maioria das lojas, quiosques e boxes do Mercadão.
Embora fosse tido como um cara correto profissionalmente, recebera o apelido de Almeidão pelo seu porte físico e, sobretudo, por seu bigode da largura do beiço superior, aparado de forma quadrada, o que lhe dava ares de sujeito antigo, severo e disposto a um balanço complicado.
Almeidão não deixava que seu adereço piloso ficasse sem uma tinta negra encorpada, de modo que, de longe, se podia perceber a chegada do dono só pelo brilho da bigodeira. Aquilo chegava a ser uma ostentação na empresa.
Quase certo como dois e dois são quatro, na primeira sexta-feira do mês, após o pagamento dos salários dos funcionários da empresa, Almeidão comandava uma rodada de chope com seus colegas, ocasião em que aproveitava para dar uma relaxada, contar umas piadas antigas e rir de modo travado, como deveria ser do feitio de um contador sênior, cheio de responsabilidades.
Nessas oportunidades, tomava duas ou três tulipas de chope e ia embora para casa, porque a “patroa estava esperando para as compras do mês no mercado”, como gostava de dizer.
Os colegas mais chegados, então, gritavam em uníssono, quando ele saía porta do bar afora, em direção ao ponto do ônibus que o levaria para casa:
- Vai, Almeidão!
Ele, um tanto envergonhado, levantava o braço desocupado da valise, sem olhar para trás, e sumia no meio da multidão.
Tinha cumprido sua tarefa mensal de Almeidão.
ALMEIDA 3
Quando Almeidinha chega à casa de Vanúsia, a cada quinze dias, sempre às sextas-feiras, sabia a vizinhança que a reinação iria entrar noite adentro.
Vanúsia era sua colega de trabalho na Seabra & Seabra e se dispôs a dividir lençóis e travesseiros, em forma de concubinato consentido, pois sabia do estado civil de Almeida. Tudo começou depois de uma noite que tiveram de dobrar à procura de alguns centavos perdidos nos registros do balanço anual do Talho Capixaba, açougue bem estabelecido pelos lados do Mercadão.
Ao voltar da copa, onde fora pegar um cafezinho para a colega de procuras minuciosas, chegou seu bigodão indecente no cangote moreno dela e liberou alguns haveres futuros e salientes, de modo que Vanúsia achou por bem abrir uma firma paralela com dona Zuleica, com caixa dois e tudo, mas sem registro nos anais da Junta Comercial.
Aí o Almeidão passou a ser o Almeidinha, que chegava sempre com uma garrafa de vinho tinto, uma pastilha azul, e a disposição que não tinha nem em Seabra & Seabra, nem em sua casa na Travessa Natal, quase esquina da Carvalho de Souza.
A noite, então, não tinha horas para terminar, pois não acabava senão aos primeiros alvores do dia, quando, com um beijo nos lábios carnudos de Vanúsia, ia em direção ao ponto de ônibus que o deixaria em frente à padaria, onde compraria o frango assado que sobrara da sexta-feira e iria matar a fome de uma noite de esbórnia, encoberta por devoções inexistentes.
E Zuleica, sem K, o recebia cedinho, arrozinho fresco para acompanhar o frango assado, pesarosa dos graves deveres de filho de santo de seu devotado marido Almeida, sisudo contador sênior de Seabra & Seabra, há mais de vinte anos.



Imagem em rubylane.com.



22 de abril de 2013

NO PORTO (O cão do morto)

No porto
O cão fareja o morto
Espichado sobre a pedra fria do cais
Não resta ao cão senão cheirar
O ser que jaz em decúbito dorsal
Fitando estrelas que não existem mais
A não ser que vê-las seja
Um mero tropo expressional

Ao morto e ao cachorro
A vida se resume agora
Apenas ao pressuposto de que um respira
E cheira
Enquanto o outro em condições finais
Começa a feder sobre as pedras frias do cais
Obliterado tudo o que faz
Um ser vivo e o outro ser jamais.


Laurent de La Hyre, Adonis mort et son chien, séc. XVII. Museu do Louvre (em www.art.com).


19 de abril de 2013

SONETOS PARA OS NETOS


Eu vou fazer muitos sonetos
Para os meus netos
Com seus quartetos e tercetos
Desconexos
Para dizer-lhes em incertos versos
Escolhidos ao prazer de um só momento
Em vez de precisa prosa inequívoca
O quanto ser avô
É uma beleza
Que não cabe na medida de uma métrica
Avessa ao balanço da canção
Que dita coisas
Tão improváveis e diversas
Como aquelas que provêm do coração


Gabi, Francisco e Bruno com a avó (foto do autor).

17 de abril de 2013

GABRIELA, POR MIM E POR ELA


GABRIELA POR MIM

Este poema foi feito em 2006. Publico-o hoje, no dia dos oito anos da minha querida neta Gabriela, a quem, obviamente, é dedicado.


GABRIELA

Qual é a estrela
Que brilha bela
No céu de abril
Pintando em cores
De aquarela
A vida extensa
Que se anuncia
Em passarela
De luzes mil
Senão uma só
Fúlgida estrela
Que se nomeia
Por Gabriela?

Qual é a diva
Que me encanta
Com o canto-choro
Que não espera
E exige rápido
A solução
De seus problemas
Bem que simples
Mas tão singela
Sorri um riso
Que desmantela
Senão a diva
Que é Gabriela? 

Qual é a moça
Que se anuncia
Em frágeis passos
De uma pequena
Bem tagarela
Que mais parece
A pretensão
Que todos temos
De que seja ela
A só doçura
A só quimera
Do que virá
A ser Gabriela?

É Gabriela!

Gabi, em foto de Juninho Roots.




GABRIELA POR ELA MESMA
Gabi e seu irmãozinho Bruno estiveram aqui em casa há alguns dias. Dentre seus muitos afazeres e peripécias, deixou alguns textos no computador e no tablet, que tive o cuidado de salvar. Transcrevo, a seguir, um trecho do que ela deixou no tablet, com seu autorretrato em palavras. Apenas corrigi a ortografia e acertei a pontuação.
É bom dizer aqui que, com dois anos e pouco, ela, olhando-se ao espelho, me perguntou:
- Vô, eu não sou malavilhosa?
Agora ela, por ela mesma:
"Sou uma menina inteligente, carinhosa, cheia de ideias, bonita, judoca e etc. Eu sou assim do jeito que eu sou. Todo mundo me conhece. Aliás, pensa que me conhece. Um dia, eu sou roqueira; outro, fashion; final de semana, pop; outro dia qualquer, sou vocalista e, outro, não paro de cantar. Sou muitas pessoas ao mesmo tempo. E, se pensa que me conhece, pode tentar, mas não vai descobrir."

15 de abril de 2013

MINHA MÃE


Minha mãe, dona Zezé, sempre gostou de um bom papo. De contar histórias.
Seus cinco filhos foram criados ouvindo histórias. Da família, dos habitantes da vila, da Bíblia, histórias da Carochinha. Histórias exemplares ou bem humoradas.

E gosta muito de conversar. Sempre nas noites frescas do interior, quando ainda morávamos em Carabuçu, levava a cadeira para a calçada da Dona Flor, nossa vizinha, e ficava conversando longamente com ela e outras que se juntavam ao grupo, enquanto nós brincávamos por perto.
Quando me cansava de correr pelas ruas mal iluminadas, vinha ficar com ela e, às vezes, me deitava sobre a calçada, ouvindo a conversa e olhando o céu, coalhado de estrelas tremeluzentes.

E tem muito gosto por ler. Ficção, poesia, livros religiosos, livros sobre atualidades, biografias. Através dela, li os primeiros livros de poesia, ainda menino: Casimiro de Abreu (Canção do exílio e outras poesias de Casimiro de Abreu) e Raimundo Correia (Poesias). Semanalmente comprava de seu Osório a revista O Cruzeiro, de que mantinha uma grande coleção.
E esta sua predileção por poesia a levou a também ser poeta. Lançou, inclusive, em agosto de 2010, seu Reino dos sonhos.

Também sempre gostou de cinema, que não tinha oportunidade de ver, pelos encargos de mãe, pelas vicissitudes de morar numa pequena vila do interior e, talvez, pela economia que deveria fazer, para controlar as finanças minguadas da família.
Mas estava sempre antenada, por suas leituras e pelo noticiário radiofônico, dos lançamentos no Rio de Janeiro, que tempos depois certamente apareceriam por lá.

Em Bom Jesus havia um bom cinema, o Cine Monte Líbano, do libanês Merhige Hanna Saad, que, mais cedo ou mais tarde, traria os grandes filmes. E, com certeza, seus irmãos mais novos – Paulinho e Cate – os veriam, para depois, ao lado do fogão em que preparava nosso almoço ou fazia os pés de moleque famosos na vila, contar-lhe toda a trama, do início ao fim, ao the end. Às vezes eu também participava desse cinema falado, oportunidade em que observava o grande interesse que ela tinha pela narrativa dos irmãos.
Algumas poucas vezes, ela foi assistir a um filme no salão do Liberdade Esporte Clube, quando sazonalmente havia exibições da Sétima Arte em Carabuçu. Um deles, lembro-me bem, pois a acompanhei, foi  O cangaceiro, de Lima Barreto, com Milton Ribeiro no papel de Lampião. O filme é de 1953, como apurei na Wikipédia, porém não me recordo do ano em que foi levado à tela na vila. Talvez um ou dois anos depois.

Outro dos seus gostos era por teatro. Na vila, rarissimamente havia algo parecido com teatro, embora não se possa dizer que estivéssemos virgens nesta arte. Os circos mambembes que por lá apareciam sempre terminavam seus espetáculos com um drama. Mas seu desejo era ver uma peça feita em moldes profissionais. E me pediu que, quando viesse a Niterói, eu a levasse a um espetáculo. Porém com a recomendação expressa de que não houvesse palavrões.
Deveria ser a década de 80. Eu e Jane íamos muito a teatro, até porque ela se formara no curso de ator da Escola Martins Pena. Aliás, devo confessar, foi por Jane que passei a gostar desta arte. Dentre as várias peças que naquele ano tínhamos visto, escolhemos uma estrelada por Sônia Braga, Gracindo Júnior, Osmar Prado e Norma Blum, Weekend, se não me trai a memória, em que não notamos palavrões.

Levamos lá minha mãe, e qual não foi nosso espanto ao verificar, na segunda audição, que a peça era repleta de palavrões, porém todos tão bem encaixados no texto que, da primeira vez, não os percebemos. Na saída, ela, irônica como sempre, nos disse:
- Agora vocês me levem a uma que tem palavrões, para ver como é!

Há cerca de dois meses, nós a levamos para conhecer a nova Livraria Cultura, instalada no antigo Cine Vitória, na Rua Senador Dantas, no Centro do Rio de Janeiro. E pudemos observar como seus olhos brilhavam diante daquela infinidade de livros.
E, certamente, um dos presentes que mais aprecia é livro.

Hoje mesmo, está ela ainda sofrendo o luto pela perda de seu companheiro de mais de sessenta e seis anos, em janeiro, fazendo das tripas coração, como se costuma dizer diante das adversidades, mas com a força das mulheres que sabem seu papel na família e, apesar de tudo, ainda aproveitam o que lhes aparece de oportunidade, para tornar a vida um fardo mais leve.
No fim de abril, ela completa 87 anos, e esta crônica é em sua homenagem.

Bença, mãe!
Dona Zezé fazendo seus famosos pés de moleque (foto do autor).

13 de abril de 2013

ZOO


Não costumo dar bom dia a cavalo
Nem chamar urubu de meu louro
Não toco porcos na estrada
Assim como não amarro cachorro
Não falo como papagaio
Não futuco onça com vara curta
E não lavo a égua dos outros
Muito menos penteio macaco
Ou amarro burro no toco
Sou igual a galinha no choco
Quando posso passeio no zoo
E solto os bichos que estão no sufoco

Meu louro (imagem em regnanaturae.blogspot.com).

11 de abril de 2013

UM TIRO


Um tiro
No muro
Faz um furo
Que não perfura
A parede dura
Do muro

Uma bala
Na água
Não esmaga
Nada
Não atrapalha
Senão a quem nada
Como a arraia
Mergulhada

Um tiro
Na cara
Não apaga
O ódio
De quem deflagra
A bala
A cápsula
Desgraçada

Uma pena
De nada

A vida
Tirada
Vale menos
Ou nada
Que a da arraia
Arpoada


Imagem em falandodeviagem.com.br.

9 de abril de 2013

CARLINDA CHUTOU O PAU DA BARRACA


Carlinda chutou o pau da barraca, como se diz naquele beco estreito do bairro fofoqueiro da Vila Coreia.
Carlinda abandonou os três filhos com o marido, Diomedes, e fugiu com o palhaço do circo que viera instalar-se no terreno baldio de sempre, cedido por seu Fulgêncio, sob módico aluguel.

Quando, antes da primeira luz da manhã, o caminhão do circo levantou a última poeira no Morro do Mato, deixou no ar um peso terrível nas costas do Diomedes.
Mas Carlinda sempre fora desembestada na vida.

Quando criança pequena, como todas as crianças de sua idade, brincava de boneca. Ao chegar aos nove anos, começou a brincar de médico e doente com os meninos da vizinhança. Aos quinze já se deitava com os mais espertos. Ao se casar, houve um zum-zum-zum na vila, porque mais da metade das fofoqueiras já não esperavam que ela encontrasse quem a quisesse, difamada e reprovada por línguas ferinas das vizinhas dos quintais de cerca de arame farpado.
Diomedes a quis. Fez que não sabia de nada, deu-se por desentendido – ou paspalho, como diriam os homens da sinuca e do cisprandi – e providenciou tudo, desde o padre, até o vestido de cor creme, para que não desse mais motivos para as línguas de trapo.

Vieram três filhos de carreirinha, um mais velho que o outro cerca de um ano apenas: Dionísio, Deoclécio e Diomedes Júnior, o qual, segundo as mesmas péssimas línguas, era a cara do rapaz que cortava tecidos na loja do Cid. Até uma pinta escura sobre a sobrancelha esquerda, o menino tinha. Valha-me Deus!
Diomedes nunca se fez de entendido. Gostava da brincadeira.

Carlinda era uma mulher avultada nas carnes: coxas grossas, ancas volumosas, sem exagero, platibandas superiores de fazer vista. Era isso que ele queria. Não sabia muito bem o que seria um casamento com Carlinda, possuída de um fogo entre as pernas famoso na vila. Tanto grande e saliente, que ela procurou acalmá-lo muitas vezes antes de tomar estado com Diomedes. E, possivelmente, também depois.
Nunca fizera muita questão nessa coisa de casamento, marido e filhos. Casa para cuidar, com todos os seus encargos sem salário. Contudo percebeu, por volta dos trinta, que começava a ficar estranha no meio de tanta gente de sua idade já casada. Por isso não relutou em aceitar a intermediação de sua mãe viúva para as pretensões de Diomedes, levadas até ela após a missa de um domingo ensolarado, na pracinha da vila.

A mãe, dona Lucinda, ouviu as ponderações de Diomedes, seus planos, suas promessas, e viu naquilo a salvação da honra da filha, tão difamada, tão espezinhada. E chegou para ela com argumentos fortes, contundentes.
Ia ser difícil, depois do pai morto e da previsível sucumbência de sua velha mãe – Deus a guardasse por mais tempo – manter-se vida afora, sustentar-se.

Carlinda não trabalhava fora. Vivia, se é que se pode dizer, de fazer paninhos e bordados, marcas e ponto em cruz, que vendia a uns e outros. Tudo coisa de pouca monta, sem valor maior para o sustento de uma casa.
Passou quase uma semana avaliando a proposta de Diomedes.

O pretendente era proprietário do bar da esquina da praça, onde havia uma mesa de sinuca. Seu estabelecimento sempre estava com fregueses. Quando as bolas não rolavam sobre o pano verde, alguém tomava uma cerveja, um refresco de groselha, ou comia um pastel de carne moída com batata picadinha, um bolinho de mandioca. No verão, a venda de picolés era grande.
Mas Carlinda impôs uma condição: não iria para o fogão fazer frituras para o bar. Podia, sim, ficar ao balcão atendendo os fregueses, nos momentos em que ele não pudesse.

Condição aceita, os dois marcaram o casamento para três meses depois. E foi o tal zum-zum-zum na vila. Agora, inopinadamente, na calada da madrugada, quando Diomedes se levantou para ir ao banheiro e verificar se os filhos estavam protegidos do friozinho de maio, encontrou a janela da sala aberta, a cortina de tule balançado e um perfume de traição recendendo no ambiente.
Carlinda pulara a janela, pois as dobradiças da porta, por velhas, iriam denunciar a fuga. E, como uma menina arteira, colocou o canapé encostado à janela, a fim de lhe facilitar ultrapassá-la.

Sobre a mesa, um bilhete, em letra caprichada – naturalmente feito com todo o cuidado –, em que se despedia dele e dos meninos e explicava que havia encontrado, finalmente, a paixão nos braços do palhaço Rapadura. Não a procurasse mais, não fosse desesperado atrás dela, pois até já tinha aceitado a função da moça assistente do atirador de facas.
Diomedes, que nunca rezara em sua vida, entre lágrimas, pediu a Deus que desnorteasse a mão do miserável atirador de facas e o fizesse acertar uma delas bem no coração da ingrata, no dia da sua estreia triunfal no Gran Circo Pan-Americano.
Imagem em pt.dreamstime.com.

7 de abril de 2013

BICHO HUMANO


Beber um cálice de abandono
Viver por anos achando-se sub-humano
Nutrir-se de raízes vícios incríveis
Julgar-se um lixo
Comer como um bicho num festim mundano
E no entanto ter planos
Traçar rotas por oceanos largos
Vias de voos transoceânicos
Em céus de nuvens titânicas
E lá no fim de todas as incertezas
Antever a luz que valerá a travessia inteira
Como um Ulisses à casa retornando
A despeito do canto das sereias
Na certeza de que tudo terá valido a pena
O bicho humano


Hebert James Drapper, Ulisses e as sereias, 1909 (em commons.wikipedia.org).

5 de abril de 2013

POEMA DA SOLIDÃO NÚMERO N


A solidão é uma casa deserta
Com as paredes pejadas de prego

Em cada um penduras tuas dores
Que pesadas vão ao chão com um estrondo

Os teus vizinhos não ouvem nada
Nem mesmo o barulho das marteladas
Com que tentas recompor os quadros doloridos
Que pintas com cores sombrias

Tu estás só
E o mundo inteiro à tua volta
Parece sorrir zombeteiramente
Fingindo alegrias em profusão

Todos estão acompanhados
E passeiam pelos parques pelas ruas e avenidas
Suas vidas de harmonia e festa

Da fresta da janela
Teu olhar solitário não percebe
Que tudo lá fora não passa de mera ilusão fugaz

Imagem em pontispopuli.blogspot.com.
 

3 de abril de 2013

O PANARÍCIO E OUTROS UNHEIROS


Imagem em dreamstime.com.
Sempre fui assombrado pelo panarício.
Quando criança, tinha entre meus pesadelos a ameaça de que um dia teria panarício. E ficava de espírito prevenido para quando isso ocorresse.

Na vila, havia sempre alguém com a mão para cima, o dedo enrolado num curativo, e a cara desenxabida de quem era presa desse mal, que, me parecia, tinha certo componente espiritual.
Era como se o panarício visse das profundas de um lugar inominável, para assombrar as pessoas com algum tipo de pecado a purgar. Seu padecente dizia horrores das dores sofridas, do latejamento constante do dedo, da impossibilidade de se fazer qualquer coisa. A mão ficava imprestável. Não podia ser tocada.

E, o pior, a fatalidade inerente a todo panarício: ele passava para o dedo diametralmente oposto da outra mão. Assim, caso lhe aparecesse o panarício no dedo médio da mão direita, aguardasse o surgimento no dedo médio da mão esquerda, tão logo o primeiro sarasse. Era mais certo que a moira da tragédia grega. Pior que o leão do Imposto de Renda.
Renato, por exemplo, grande jogador de sinuca apareceu no bar do Mansur, certa vez, com o dedo em molde de múmia de faraó da quinta dinastia. Ele, que quase não tinha adversário à altura no taco, fora para o estaleiro sucumbido pelo panarício. E ficou para mais de mês inativo, esperando que a doença completasse seu vicioso ciclo de malvadeza.

Lá em Carabuçu, assim, vivíamos todos assombrados pelo panarício.
- Sabe quem está de panarício? Não? O Filhinho sapateiro, coitado! Não pode tocar nas sovelas. A meia-sola que lhe encomendei, só para depois do São João.

Só não me lembro se havia época propícia ao andaço da doença. Na minha idade de então, não prestava muita atenção ao calendário. Mas, de vez em quando, ela saía contaminando as pessoas, como se fosse nutrida por um verme excomungado. Eu mesmo, quando sabia que alguém estava com o dedo afrontado, nem chegava perto. Até evitava pronunciar o nome da pessoa, com medo de pegar o mal.
- Xiii, rapaz! Agora é Tatão Florindo que pegou o troço!

Talvez medo semelhante por que passava, também envolvendo dedo, era um dia ter de arrancar a unha do dedão do pé.
Antônio Milton, irmão de Renato e também exímio jogador de sinuca, teve qualquer problema de infecção na unha do dedão e a providência sanativa tomada foi extirpá-la. Zé da Farmácia mesmo fez o serviço. Para piorar as coisas, Antônio Milton disse que a anestesia não pegara, por causa da infecção. E foi na base do urro que a unha se desalojou da tampa do dedão, puxada com firmeza pelo farmacêutico, munido de um tipo de torquês inoxidável, que mantinha no esterilizador.

Quando isso ocorria nos pés, dizíamos unheiro. Que, afinal, não era tão assustador. O panarício o era muito mais! Pelo menos na minha cabeça de menino.
Não sei bem por que, mas essas afecções dos dedos sempre me chamaram muito a atenção e me metiam medo. O próprio Antônio Milton, com intuito de assustar, me disse que, quando eu ficasse rapaz como ele, também iria ter de arrancar a unha do dedão. Era como um rito de passagem, para que virasse rapaz. Fui crescendo sempre nessa expectativa assombrosa.

Um dia deixei cair um martelo justo na unha do dedão direito. Saiu sangue, ficou arroxeado, a unha bambeou, e eu pensei que minha vez havia chegado antes do tempo. Mamãe cuidou da unha e ela nunca caiu. Até hoje está logo ali mais abaixo – até dei uma olhada para ela, a fim de confirmar sua presença. Ao longo desses anos, cresce meio estropiada, cheia de veios estranhos, mas não precisou ser removida.
Depois que vim para Niterói, nunca mais ouvi falar em panarício. Parece que é coisa do interior. Como saci-pererê e mula sem cabeça.