Tomava o café da tarde numa caneca de ágate aqui e ali descascada, encostado ao caixonete da porta da cozinha, joelho esquerdo ligeiramente projetado à frente, cigarro enrolado na outra mão, quando falou com a mulher, sem rodeios:
- Zefa, vou largar mão desse negócio de fazer mesa e banco, que isso já deu o que tinha de dar.
Havia pensado muito em como abordar assunto tão delicado com a mulher e entrou, assim, de sola, como nos tempos de beque central do Liberdade Esporte Clube. E continuou:
- Agora já vem tudo pronto, muito mais barato do que eu consigo fazer e ainda comprado à prestação. Madeira anda cara e difícil. Tava pensando, aqui com meus botões, que melhor seria a gente caçar rumo pruma cidade grande, que eu não tou vendo mais jeito de sobreviver na vila.
-Que é isso, homem?! Perdeu o juízo? Que é que nós vamos fazer numa cidade grande, com a idade que nós temos? Já passamos dos quarenta! - E pôs certa ênfase na palavra quarenta. E continuou. - Morar aonde? Viver sobressaltado, com medo de tudo? - Espantou-se a mulher, que naquele instante entretia-se em marcar uma toalha de mesa.
- Sou carpinteiro dos bons, mulher! Se esqueceu? Posso muito bem trabalhar em qualquer obra. Cidade grande tá cheia de obra. É um prédio atrás do outro. Lá não falta trabalho pra quem quer. E disposição eu tenho, e você sabe muito bem disso!
- Eu sei, Tonico, mas tenho tanto medo de sair daqui, da nossa vidinha sossegada, tranquila, e ir aventurar em lugar estranho, cheio de gente ruim.
Tonico tinha oficina que trabalhava com madeira: carpinteiro, carapina, marceneiro, não havia função que não exercesse com certa competência. Ultimamente, no entanto, viu o volume de trabalho diminuir drasticamente. A tal da modernidade cobra, por vezes, valor muito alto de certas profissões. Por exemplo, a vila não tinha mais os antigos sapateiros, os tradicionais cocheiros, nem mesmo os necessários barbeiros, com seus salões modestamente montados, o cheiro das loções se espargindo porta fora, a entrar no nariz dos passantes.
Tudo tem seu tempo marcado, e agora chegara sua vez. A vila não mais oferecia meios de sobrevivência para Tonico e Zefa. O carpinteiro de mão cheia, como tinha orgulho de dizer, fora derrotado pelas pinceladas da modernidade que, com seus borrões sedutores, acaba por atingir a mais remota vila perdida no interior do país.
Por essa época, o rádio já despejava sobre aquelas lonjuras os poderosos acordes do roquenrol. E Tonico percebeu que as coisas estavam mudando inexoravelmente. É difícil escapar ileso ao progresso, que facilita a vida de uns e sacrifica a de outros.
Por isso ali estava. Sem perspectivas, ficava matutando possibilidades em terras estranhas, talvez com as mesmas dúvidas da mulher. Apenas não as externava, para não deixá-la ainda mais insegura. No entanto, qual era a saída que se apresentava? O que não podia era ficar esperando as coisas melhorarem. Era como doença ruim: dali, só para pior. E, antes que seus poucos recursos se evaporassem no ar, tinha de procurar novo rumo para suas vidas. Ele era, afinal, o cabeça do casal. Sempre fora e não podia fraquejar exatamente agora.
Já tinha até conversado com o amigo Joanico, durante uma partida de bilhar no bar do Mateus, que ficava pelos lados da Coreia, depois do cemitério, antes um pouquinho de sair da vila, na rua que se bifurcava em demanda ao Jacó e à Vala, direção diametralmente oposta à que tomaria para sair dali. Naquela direção, as coisas só piorariam. O bar do Mateus era o limite máximo que se permitia para o que considerava atraso e retrocesso.
Apesar da opinião contrária de Joanico, que tinha as mesmas ponderações de Zefa, ele já se decidira. Aquilo se havia transformado quase numa obsessão. Conversara com Joanico apenas para trocar ideias, e não ficar dando tacadas, mudo como uma porta. Afinal talvez estivesse jogando com o amigo dileto a última partida de suas vidas. Nunca se sabe. O mundo tem a péssima mania de alterar os itinerários constantemente: atalhos, trilhas e veredas cada vez mais tortuosos e sombrios. As estradas largas e pavimentadas são para alguns poucos. Para a maioria, restavam os caminhos intransitáveis. Talvez, um dia, até voltasse à vila, mas apenas para visitar parentes e amigos como ele. E ninguém seria capaz de demovê-lo deste propósito.
Joanico ainda tentou uma última cartada, como que a reforçar as ponderações já alinhavadas:
- Pense bem, Tonico! Pense bem, para não fazer besteira!
E foram as frases que ficaram em seu ouvido.
Tonico foi para casa, olhando o desenho impreciso dos paralelepípedos da rua. Falou com a mulher para ajeitar as coisas, dar um jeito na mudança, que o caminhão do Mansur Turco, que era como na vila se chamava o descendente de libanês, não sem protesto veemente dele, já estava contratado para o frete.
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Manhãzinha do dia seguinte, tudo em cima do bruto, Mansur no comando da tropa de cavalos aboletada no motor do Ford Gigante, o casal na boleia, o ronco potente a sair pelo escapamento, uma golfada de fumaça escura, e lá vão eles saindo da vila pela estrada que leva ao desconhecido.
Zefa ainda olhou a última casa do seu lado direito, a casa do Dorival, antes de subir o Morro do Marta, enxugou uma lágrima que escorregava dos olhos, quando ouviu a ordem do marido para o motorista:
- Mansur, toca pra não sei onde, que aqui na vila eu não fico mais. Vou morrer à míngua onde ninguém me conheça. Essa vergonha eu não passo na minha terra.
E o motorista, assustado, acelerou ainda mais o Ford Gigante na curva do morro, a exigir do velho motor forças descomunais.
Para trás ficava uma vida sem perspectivas. À frente, apenas uma incógnita, uma vida ao Deus dará.
Um primor, nós que saímos de nossa terra, sabemos o quanto dói.
ResponderExcluirComovente. É como descartar um pedaço da gente, mesmo sabendo que é isto ou a inanição.
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