28 de novembro de 2021
LÁ VAI O TEMPO
17 de novembro de 2021
O DANÇARINO
Jaé chegou agitado ao
botequim onde estávamos. Camisa cor de barro claro, botões dourados – apenas a
metade abotoada, deixando parte do peito à mostra –, cabelo enrolado brilhando
a gel, perfume popular invasivo, que deixou o ambiente empesteado com seu
cheiro, e um sorriso de cremalheira novinha. Foi saudado por boa parte dos que,
àquela hora, desfrutavam dos prazeres do paladar.
- Aí, Jaé!
- Fala, Jaé!
- Tudo em cima, Jaé?
Retornou os cumprimentos de
forma simpática e se dirigiu ao balcão daquele estabelecimento acanhado,
simples, sem a mínima sofisticação, mas capaz de regurgitar delícias das bocas
de seu fogão antigo, o que justificava a presença de tantos fregueses.
Logo pediu ao Marquinhos,
proprietário do local, um copo de 51 cheio e uma latinha de Coca. O copo é do
tipo americano, e a cachaça atingia a risca superior, quase palmeando a borda. Contou
reinações diversas, viagem a Grussaí, bailes variados, numa dicção um tanto
enrolada, parecendo segurar a dentadura, para que ela não pulasse da boca e
causasse lesões nos circunstantes. A seguir, abriu a lata do refrigerante,
acabou de encher o copo, apenas toldando a transparência da aguardente. Quando
me virei para pegar meu copo de cerveja – eu também estava com o umbigo
encostado ao balcão –, apenas percebi seu gesto de devolver o copo já vazio. Para
meu espanto, ele tomou de um só sorvo, num átimo, todo aquele conteúdo da
mistura que fizera. Marquinhos me olhou de soslaio, como a indagar se eu já
vira algo semelhante, e, pela minha expressão, teve a certeza de que era minha
primeira vez. Simples inocente eu era na arte de ingerir álcool.
Ele contou mais histórias engraçadas,
enquanto bebericava golinhos de Coca. Disse que estava indo para Laranjal, em
Minas, logo ali ao lado, para mais um dos bailes de fim de semana. Pediu ao
dono do botequim que lhe servisse mais pinga, agora apenas a metade do copo
americano. Despejou sobre a mardita o restinho de Coca, meteu a mistura para
dentro com o mesmo ímpeto, sem caretas e sem muxoxos, pagou os oito reais da
despesa e partiu em direção à van que o esperava na esquina junto ao posto de
gasolina, já com a lotação completa. Saiu falando "já é", razão do
apelido, em alto e bom som, para que todos se dessem conta de que seu destino
estava selado.
- Já é! Já é!
Os que ficaram bebendo
gabaram-lhe os dotes de dançarino mais do que requisitado: em vários bailes tem
o acesso liberado, sem necessidade de pagar ingresso. E também o fato de já
chegar calibrado aos salões, onde não gasta mais nada e consegue manter o corpo
esguio com aquela malemolência que o álcool produz, até o final da função. Se Jaé
não for, periga não haver dança. Nos rodopios e fricotes, como me asseveraram
os parceiros de libações, Jaé é insubstituível. Mais até do que no hospital da
cidade, onde exerce a nobre função de auxiliar de enfermagem, fazendo curativos
com esparadrapo e gaze e removendo espinho de laranjeira do pé de menino
imprudente.
Imagem colhida na Internet.
1 de novembro de 2021
A NOITE VAI SER BOA
É sábado. É dia de função.
Mal o sol começa a adormecer sua luz amarelada atrás dos
morros em torno da vila, a venda do meu pai começa a receber seus habituais
frequentadores. Daí a pouco a noite vai-se anunciando, e a débil iluminação
pública espanta um pouco da escuridão daqui e dali, dando a todos a orientação
pelas acanhadas ruas de paralelepípedo.
A venda está na esquina nobre de Carabuçu: Rua Cel.
Alfredo Portugal com Rua Cel. Antônio Olímpio de Figueiredo. É uma loja pequena
de três portas frontais e uma lateral, um balcão que fecha a passagem para a
parte interna, acessada através de um tampo que se abre para cima, deixando aos
fregueses um minguado espaço, com um banco de madeira encostado à parede, à
esquerda de quem entra.
Meu pai trabalha com secos e molhados, como se convencionava
chamar o comércio de gêneros de primeira necessidade para o sustento das
pessoas.
Muitos desses clientes vêm para comprar os mantimentos da
semana. Outros vêm pelo sabor do pé de moleque que minha mãe faz com maestria.
Todos, no entanto, estão ali para a conversa solta que anima aquelas noites sem
pressa do interior. Nada há de mais característico por esse tempo do que as
rodas de prosa de homens afeitos à luta diária, em seus momentos de
descontração.
Primeiro chega o riso franco do Azamor, acompanhado de
seus irmãos. Também os irmãos Romualdo – Antônio, Tião e Zé – chegam aos
poucos. Alcides Almeida, José Precisval, Dico Hilário, o ferreiro Jeremias, com
suas expressões sérias num rosto que denota o cansaço da lida; as mãos moldadas
à madeira do Aristides Lugão; a sabedoria esportiva do João Coleto, entre baforadas
de Liberty ovais; os causos extraordinários do João Dutra; a altura descomunal
do Gabriel e seus irmãos, nenhum com menos de um metro e noventa; a esperteza cigana
para negócios do Ferreirinha; as transações com passarinhos do Todinho, filho
do Custódio Quintal e beque de espera do Liberdade Esporte Clube. Tudo compõe aquele
espaço mítico da minha infância.
Aos poucos a venda vai ficando ainda menor, à medida que
o tempo passa e os frequentadores se somam.
Meu pai não vende bebida alcoólica, porque diz não ter
paciência para aturar enjoo de bêbado, fora as confusões que eles arranjam.
Aos poucos o vidro de pés de moleque começa a esvaziar, o
que faz minha mãe reabastecê-lo com outro tanto daquela delícia.
A cada história do João Dutra, dá-se a multiplicação das
gargalhadas. Até mesmo os mais sérios, como o Alcides Almeida e o Dico Hilário,
não resistem às histórias estrambóticas muito bem contadas pelo João Dutra, o
homem do relógio de bolso mais confiável do mundo.
Ferreirinha sempre tem uma oferta a fazer: ou troca, ou
vende, ou compra alguma coisa: cavalo, boi, passarinho. Todos conhecem bem a
sua astúcia para negócios. Só mesmo o Todinho entra na negociação de algum
pássaro que lhe interesse: um curió cantador, um coleirinho do brejo brejeiro,
um trinca-ferro barulhento. Pangaré, nem pensar, que Todinho bem sabe das artimanhas
do amigo e se acautela para não levar uma manta de entortar a espinha dorsal.
Enquanto segue o burburinho, outros personagens entram em
cena na ação da noite, todos na intenção de combinar a pescaria do domingo
cedo. É o Domingos Peçanha, é o Alcino Oliveira, que já com os outros
companheiros de varas e minhocas, Alcides Almeida, João Dutra e Aristides
Lugão, acertam horário e discutem os melhores pesqueiros, os peixes da época e
as iscas apropriadas.
Azamor, então, lembra aos amigos o caso do Saci Pererê
que andava assombrando as pessoas que se dirigiam muito cedo para aqueles lados
do Rio Itabapoana. Relata, inclusive, uma carreira que seu irmão ali ao lado, que
não o deixa mentir, tomou daquele bicho danado, quando, ainda com o escurinho
da madrugada, jogou seu anzol na curva do rio, já em terras do Jorge Assis.
Todos se espantam com a narrativa, até que o Azamor, com sua gargalhada
inconfundível, deixa o ambiente alegre e descontraído. Tudo fanfarronice para divertir
os presentes. Contudo, convém lembrar, sempre há alguém a acreditar nessas
visões noturnas, nesses bichos excomungados dos confins do mato. E é de bom resguardo
ter um trabalho, um patuá, uma guia benzida para se proteger deles.
Os Romualdos, sempre falantes, direcionam a prosa no rumo
das “dificulidades” no manejo de bichos de criação e na carpição de eitos de
terra seca e dura, a aguardar as primeiras chuvas benfazejas. Tião,
indefectivelmente, tem um palito de fósforo no canto da boca, embaixo do bigode
espalhado acima do beiço, o qual fósforo trepida à medida que ele conta sua
luta.
Dico Hilário e José Precisval são sempre sérios e só
riem, aliás, só sorriem se a história for muito engraçada, daquelas de
escangalhar o esqueleto. Caso contrário, ficam de prosa com o Alcides Almeida,
primo do meu pai e homem também de poucas palavras.
Gabriel e os irmãos, do último andar de suas pessoas, bem
acima dos demais, mantêm-se atentos a todas as conversas e patranhas daquele
grupo animado e não economizam riso. Quase sempre acrescentam histórias
hilariantes àquelas tantas já contadas durante a função.
Isso é quase uma peça teatral, sem texto prévio, sem
direção de elenco, sem iluminação cenográfica. Apenas os atores fazem os
improvisos que todos apreciam e transformam aquela noite em um acontecimento indelével.
Tais ações e falas ocorrem harmonicamente com a atividade
do meu pai em atender o pedido desse e daquele freguês: cinco quilos de arroz,
dois quilos de feijão, um quilo de farinha de mandioca, um quilo de sal grosso,
um quilo de macarrão goela de pato, dois quilos de banha de porco, trezentos
gramas de biscoito maria, mais dois quilos de carne-seca gorda. Ah! Ia me
esquecendo, põe também duzentos gramas de bicarbonato e uma latinha de fermento
em pó.
Quase nada se paga à vista. Há um borrador em que se
anotam as compras de cada um. Alguns têm caderneta, para seu controle, mas o
vendeiro é um homem correto e faz questão de mostrar tudo que foi anotado aos
que sabem ler. Ou repete, para os que não dominam o corcoveio esquisito das
letras, o rol de coisas que eles levam naquela noite. Mais dias, menos dias,
eles voltam com o dinheiro para quitar o débito e deixar o nome limpo na praça.
Mais para o fim da noite, por volta das dez horas, os
assuntos se vão esgotando, a tagarelice diminui, até que o último participante
daquele arremedo de teatro caboclo fecha o convívio com um boa noite ou um “inté”,
e o vendeiro cerra as portas do seu pequeno estabelecimento, dá a última
arrumação no que ficou fora do lugar, apaga a luz e vai para os fundos da casa,
onde mora com mulher e quatro filhos ainda crianças, que ouvem os últimos
acordes da Lyra de Xopotó, através das ondas da Rádio Nacional.
Aquela noite foi muito boa! E a pescaria do dia seguinte
promete abrandar todas as tensões da semana.