27 de julho de 2017

A MORTE DE UMA ESQUINA

Até a construção de Brasília, não se entendia cidade brasileira sem esquina. Por maior ou menor que fosse, por mais ou menos importante, cidade, para ser cidade, tinha de ter suas esquinas. Havia até um dito, lá pelo meado do século passado, de que se identificava a cidade como brasileira por um bar na esquina e um cartaz da Coca-Cola, com tudo o que isso já trazia de submissão econômica.
Por isso é que, com a construção de Brasília, sem esquinas, dizia-se que a vida na cidade não teria graça, a cidade seria praticamente inabitável. O governo federal, inclusive, teve de oferecer um capilé a mais aos servidores públicos que transferiu para a nova capital. Nenhum deles, que vivia no Rio de Janeiro, cheio de esquinas famosas, se disporia a ir para uma cidade desesquinada. O cala-boca serviu como motivação financeira para muitos trocarem o Rio por Brasília.
Mesmo em Carabuçu, minha vilazinha natal lá no norte do estado, tinha sua esquina especial: era o cruzamento das Ruas Coronel Alfredo Portugal e Coronel Antônio Olímpio de Figueiredo. Nela estavam as vendas do meu pai, de um lado, e do seu Cirilo Braz, do outro. Em frente à nossa venda, estava o armarinho do João Mestre e, do lado de lá, o do tio Nalim. Contudo, a mais festeira, era a próxima. Ali estavam os bares do tio Tônio Pinto, do Barrosinho, do libanês Mansur Sabino e o armarinho do Enéas Lírio, que depois transformou seu comércio de tecidos em negócio de beberagens e tira-gostos. Até hoje, mudados os proprietários, alterada um pouco a arquitetura, melhorado o urbanismo, com a inclusão de um calçadão de pedestres, a esquina ferve em determinadas ocasiões.
Há esquinas que até ganham nome especial, como em Bom Jesus do Itabapoana dos anos 60 a Esquina do Pecado, na confluência um tanto destrambelhada, fora do esquadro, das ruas Tenente José Teixeira, Vinte e Um de Abril e Carlos Firmo.
Toda esta introdução é para levar o leitor ao meu foco principal.
Quando cheguei a Niterói, em março de 1967, fui morar na pensão da Dona Dinorah, no número vinte e nove da Rua Pereira da Silva. Na esquina desta, com a Moreira César, a trinta metros da pensão, já estava estabelecido de alguns anos o bar do Joaquim e do Zé Português, que se tornaria meu amigo fraterno e colega de pensão e, posteriormente, de apartamento. Desde então e até o início deste ano, o local sempre foi bar. Ao seu lado já houve boate, outro bar, loja de roupas, o diabo a quatro. Mas o bar da esquina resistia ao tempo. O imóvel continua pertencendo ao meu amigo, embora ele não toque mais o empreendimento.
Nessa esquina, apenas o bar era o estabelecimento aberto ao público. Em dois cantos estão prédios residenciais e no último, uma escola pública de ensino fundamental. Assim a presença do bar sempre animou a esquina, onde também havia uma banca de revista e outra de flores. Os frequentadores que, por acaso, exagerassem nas doses e nos belisquetes tinham uma farmácia ao lado onde se socorrer. Vê-se que era um empreendimento muito bem localizado. E a apenas um quarteirão da praia. Certa manhã de domingo de verão, quando bebia lá uma cerveja e vendo a excitação do jovem lusitano João, recém-chegado da Ilha da Madeira, para o serviço de garrafas e copos, disse ao meu amigo Zé Português, patrão dele:
- Zé, se eu fosse o dono da firma, não pagaria salário ao João. O pagamento dele seria curtir as garotas bonitas que por aqui passam em direção à praia.
O João babava ao admirar o desfile sensual das meninas em seus trajes de banho.
Pois muito bem! A última empresa que ali explorou o ponto tinha o nome de fantasia de Bar Fragatas. Espalhando mesas e cadeiras na calçada larga, ganhou o apelido jocoso de Queima-Filme, já que os beberrões ficavam expostos aos olhares dos passantes.
Numa certa manhã, há alguns meses, encontrei o bar fechado, já sem os letreiros. Minha mulher, preocupada, ligou para a casa do Zé e falou com sua esposa, Agostinha, que ficou até mesmo envergonhada de dizer o montante da dívida que os ex-donos do Fragatas tinham com eles. Há muito não pagavam o aluguel e foram despejados, por ordem judicial.
O local, daí a alguns dias, entrou em obras. Terminados os trabalhos, abriram-se as portas de mais uma farmácia de uma rede da cidade. E, o pior, sem nenhum charme, sem nenhum trabalho mais elaborado de arquitetura de interiores que atraia, pelo menos, os olhares dos passantes. A farmácia é feia como purgante para matar lombriga, como a rasgadura da lanceta em postema de bicheira. Eu lá não entro.
A esquina está um deserto! Está morta!

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18 de julho de 2017

O SENHOR ESTÁ DE MAU HUMOR HÁ MILÊNIOS


O bom humor do Criador durou até o episódio da maçã. O que, convenhamos, foi por muito pouco tempo! Após uma sentença de rito sumaríssimo, Ele determinou a um de seus oficiais de justiça, célebre por seu pavio curto,  executar a ação de despejo daquela dupla de inadimplentes. Daí para cá, foi uma sequência estarrecedora de punições, maldições, pragas, furacões, terremotos, dilúvios e o escambau. Quando percebeu que havia exagerado, mandou seu Filho como embaixador da boa vontade, da política da boa vizinhança, o qual, no entanto, também perdeu as estribeiras e andou metendo a gurumbumba no lombo de uns e outros que apenas queriam sobreviver à margem do governo, fazendo seus biscates, vendendo suas traquitanas. Mas aí o gênero humano já tinha virado genérico. E nunca mais deu certo.
Hoje, para tentar recuperar a desumanidade, tratamos com pachorrenta benevolência tudo quanto é tipo de bicho, mas nos esquecemos de outra parte substancial do gênero desumano que não tem nem o que comer. Não sei se isso dará certo. Se daqui a alguns anos estivermos prontos para viajar pelo espaço sideral como quem vai a Miracema e Bom Jesus, será, então, que levaremos nossos dessemelhantes humanos ou nossos semelhantes animais? Vi, por exemplo, em Paris, restaurantes que aceitam de bom grado a presença de bichos: Votre pet est bienvenu. Já, pobre, não sei bem se seria recebido com tanta sympathie, como dizem os descentes de Asterix, o gaulês.
E, depois de tanto tempo, parece mesmo que o Senhor nos deixou de lado. Cada um faz o que quer. Cada estado se arranja do jeito que as guerras e as cobiças permitem. Ele não está nem aí para o que sua criação anda fazendo. Até criação de galinha tem mais atenção. Senão, como explicar a duração do conflito entre judeus e árabes até hoje? Reparem que eles são primos – se não forem irmãos – e se digladiam ferozmente por uma terra seca, sem floresta, sem cachoeiras, sem praias paradisíacas – sem um bando de gente corrupta, também –, a qual, lá por volta de dois mil antes de Cristo, um visionário saído de Ur resolveu chamar de Terra Prometida.
O que pode explicar tudo isso, isto é, ser a Terra Prometida aquele areal em torno de uma lagoa de águas mortas, só pode já ter sido a má vontade e o péssimo humor do Criador para com a criatura. Caso contrário, ele teria prometido os verdes campos da Toscana, a aprazível Provença, ou mesmo a costa baiana cheia de resorts de luxo e coqueiros onde pendurar uma rede.
E, pelo que sinto hoje da Natureza – delegada imediata Dele junto ao genérico humano –, posso dizer que não adianta ficarem inventado religiões, a três por quatro, que os Seus maus bofes não se aplacaram e só tendem a piorar. Terremotos, tsunamis, destrambelhamento geral do tempo e do placar de jogo estão aí para não me deixarem mentir.
Quem sobreviver verá!

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Hans Memling, O juízo final; séc. XV (sauvage27.blogspot.com.br).