22 de dezembro de 2020

FELIZ NATAL E BOM ANO NOVO

Apesar dos pesares

E dos pesados ares que nos sufocam

Desejo a todos um FELIZ NATAL 

E um ANO NOVO com mais esperança!



 Cristo Redentor ao pôr do sol, com detalhe da Pedra do Índio (foto do autor).

8 de dezembro de 2020

EU DECOREI...


Eu decorei o número do teu telefone 
As curvas do teu corpo 
 O mar em frente e as ondas nervosas de agosto 
 Com o mar cheio de cheiros vaporosos 

 Eu decorei a ordem inversa da tua vida inteira 
 Os percalços dos teus dias 
 A lei da mais-valia dos teus beijos frouxos 

 Hoje um tanto louco 
 Um tanto morto 
 Não me lembra mais o que foi gosto 
 Ou foi desgosto 
 O que foi livre 
 Ou imposto 
 O que foi prejuízo ou benefício 

 A memória já me vacila um pouco


Pedra do Índio, Icaraí, Niterói-RJ (foto do autor).


13 de novembro de 2020

DA PARTE DO ZÉ CÂNDIDO

Bateu palmas ao portão da chácara, bem perto de um pé de pau frondoso, certo tipo autonomeado Lacavinha Pederneiras, oriundo das bandas de Mata-Cavalos, nos afundados de terras goitacás.

- Boas tardes! Sou Lacavinha Pederneiras, dos Pederneiras campistas, e venho da parte do afamado Zé Cândido de Carvalho, do qual porto missiva de próprio punho e selo, destinada à sua pessoa.

O tipo parecia uma alegoria dos carnavais das Grandes Sociedades da década de vinte, que puxavam seus préstitos pela antiga Avenida Central, por essa altura já batizada com o nome do barão do império. Chapéu de palhinha, terno de riscado de corte apertado, cujo paletó se abotoava tronco acima, deixando apenas, na altura do gogó, espaço para a gravata borboleta de pois a enfeitar um pescoço fino, como de resto toda aquela figura saída de traços de J. Carlos. Uma bengala de ponteira prateada e sapatos de cromo preto reluzente, bico fino, com detalhes bordados no couro, em feitio de bolhas de sabão, mais um lenço de duas pontas azuis a saltarem do bolsinho do paletó completavam a personagem. Era propriamente uma figuraça!

O nome não me era desfamiliar. Já ouvira referências um tanto desabonadoras à sua pessoa em páginas impressas do mago da Baixada Campista. Lacavinha, a bem dizer, vivia de expedientes, sem emprego engastalhado nele por mais de noventa dias ou três luas, e se prestava a esse tipo comezinho de função: fazer favores fáceis para gente que não se queria dar o mínimo trabalho com coisas de somenos importância.

Falei em voz alta, que pudesse ser ouvida no meio do bulício da rua infestada de veículos com motores à explosão e o tropel de uma carroça que passava justamente naquele instante:

- Pois se adentre, seu Lacavinha Pederneiras! Se aprochegue de lá!

Lacavinha desferrolhou o portão de ferro fundido, de um verde musgo já descascado pelos anos, passou com sua figura esguia por apenas dois palmos de abertura, tornou a aferrolhar o dito portão e veio evoluindo em minha direção, como se flutuasse sobre o caminho tortuoso de pedras assentadas no chão, até o alpendre onde eu estava.

Convidei-o a se sentar, pedi à Carlinda que nos trouxesse um café fresquinho e tratei de pegar a correspondência que me estendeu com sua mãozinha magra, quase esquelética, unhas de brilho esmaltado bem aparadas.

- Pois muito bem, seu Lacavinha, vamos ver o que o Zé Cândido tem a me dizer em suas bem traçadas linhas!

Nesse entrementes é que me dei conta de que o remetente já não comia angu com feijão, já não folgava mais entre nós, motivo por que quis saber se era carta pretérita, deslembrada em alguma gaveta de escrivaninha e só agora, anos escorridos, chegada a seu destinatário.

O portador disse que não, que era coisa hodierna, recentemente vinda à luz, de tinta ainda úmida, através de psicografia realizada na cidade de Campos dos Goytacazes, com ipsilone e tudo, por pessoa idônea, há muito versada nessas práticas.

Ajeitei as meias cangalhas de leitura sobre o pau do nariz, rapei o gogo da garganta sem a cerimônia devida – mas enfim eu estava em meus domínios –, rompi o lacre do selo bordado JCC com jeito, a fim de não esparramar migalhas nas tábuas do alpendre e me pus a ler em silêncio, dando muxoxos aqui e ali, conforme os olhos iam vencendo os eitos da escrita de letra caprichada do campista afamado.

Depois dos cumprimentos de praxe a encabeçar a mancha de tinta da folha, fui-me inteirando das preocupações, perquirições e diretivas do remetente.

“Andei sabendo por vias travessas, aqui onde me homizio presentemente em forma espectral, que você anda tomando intencionamento de pôr pontos finais no meu inacabado romance sobre o Rei Baltazar, de bíblicas memórias. Sei, inclusive, que andou assediando mais de um familiar, cravando perguntas aqui e ali, levantando hipóteses mirabolantes, maquinando finalmentes para minha obra inconclusa e inacabada sobre o tal rei.

Devo asseverar com toda pompa e circunstância que ninguém no mundo dos viventes tem minha concessão para tais intencionamentos. O Rei Baltazar será lembrado apenas com as poucas palavras com que foi brindado no texto bíblico e nada mais. Ninguém vai puxar brasa para sua sardinha se prevalecendo do que eu já tinha alinhavado aí embaixo, enquanto mourejava na imprensa local e enchia as burras do povinho das rotativas com meus escritos.

Tenho dito!”

E lascou embaixo sua reconhecida assinatura de escritor notável.

Achei Zé Cândido amargurado, sorumbático, abespinhado. Só porque eu tivera – veja bem, amigo leitor! – eu tivera a ligeira ideia de completar a obra que ele deixara incompleta, por conta da visita antecipada da Indesejada. E apenas andei sondando, no rol dos meus mais chegados, se alguém, por acaso, assim descompromissadamente, conhecia pessoa das relações do grande escritor, algum herdeiro, talvez o seu editor. Mas tudo dentro da mais sutil averiguação, sem estardalhaço ou jactância. Não sou dado a espalhafato e ostentação. Sou mais recolhido que surucucu no choco.

Depois de lida a missiva do Além e após um suspiro de arrebentar estaca, que me veio bem lá do fundo da minha pessoa, indaguei do indigitado Lacavinha Pederneiras, ali presente, a pele macilenta de vela de sete dias, como responder a carta, já que eu não tinha o endereço correto e confirmado do destinatário.

Lacavinha sorriu, tirando com a unha comprida do mindinho direito uma sujeirinha do fura-bolo da mão esquerda, e me disse com o olhar perdido no pé de pau da entrada da chácara:

- É só me dizer de suas boas tenções, da sua reconsideração, que faço chegar ao autor da missiva esse seu pendor inopinado.

- Pois pode garantir lá a ele, do jeito que possível for, dentro das leis das ciências física e metafísica, que não está aqui aquele com quem se preocupar. Vou continuar lendo e relendo os livros que as rotativas imprimiram, mas não vou me arvorar a pôr um finalmente no que ficou sem fim. Sem fim ficou, sem fim ficará! Dou minha palavra!

Lacavinha Pederneiras elevou sua pouca pessoa da minha cadeira de palhinha da varanda, levantou o chapéu, fez uma mesura com o tronco magro fechado a botões e se despediu, sem me estender a mão. Desceu os quatro degraus até o caminho de pedra, começou a caminhada em que parecia flutuar, até que desapareceu como que esfumaçando, desvanecendo seu corpinho miúdo por entre a ramagem do pé de pau próximo ao portão da rua, de não ser divisado do outro lado, embaixo ou em cima de coisa alguma.

Zé Cândido certamente saberia da minha resposta.


Imagem em depositphotos.com.

17 de outubro de 2020

EMPREITADA

O sol mal deu as cara pros lado da Serra da Boa Esperança, e eu já tava de pé. Já tinha tomado o café com pão drumido e uma lasca de queijo curado da casca grossa, um pouco de farinha de mandioca com açúcar pra mode dar sustança e disposição. Compadre Zeca, que mora na casinha de pau a pique do outro lado do terreirão também já estava arriano sua besta. Ele ia comigo na empreitada. Nós é quase parente, pruque Compadre Zeca é casado com uma sobrinha da minha muié e é padrim, com sua muié, da Dorinha, minha fia menorzinha. Seu Orelo foi quem pediu nós pra ir até a fazenda do Antõi das Morte e trazer de lá, nem que fosse arrastado, seu fio mais novo, o Juliano, que fugiu de casa pruque levou uma coça de gurumbumba pro mode que desonrou a fia do colono dele. Aí, desarvorado, o menino foi pedir abrigo nas terra do padrinho dele, o seu Antõi das Morte. A fia do colono, o Zé Laurindo, é uma moça bonita que só, munto brejeira, e tem o nome quase ingual do rapaz: Juliana. É da mesma idade do menino Juliano, e os dois sabia munto bem das estripulia que estava fazeno. Com quinze ano, carqué um de nós já sabe das consequência dos nossos ato. Nessa idade, ninguém é mais inocente. Mas os dois parecia apaixonado um no outro, tanto que vivia de trelelê e conversinha miúda pra todos os lado. Aí deu no que deu! A gente até tem um jeito engraçado de falar, quano acontece um trem desse: o diabo atenta, o ferro entra. Pois foi bem isso que acabou aconteceno com os dois. No fogo da idade, tem hora que é difice controlar a fornaia que começa a brotar den’ da gente. Se ocê tem mais tento, mais juízo, um pouco mais de idade no lombo, possa ser que domine a coisa. Mas na idade deles é quase impossive. Então o enredo é esse: Juliano desonrou a fia do Zé Laurindo, e o Zé Laurindo botou a boca no mundo, falou miséria, disse isso, disse aquilo, e o patrão, que também é um home munto do correto, falou que não vai passar a mão na cabeça do fio. Se ele fez, ele que assuma seus ato. Que isso é comportamento de home; e não, de moleque. Penso que seu Orelo tem razão. Fia dos outro, por mais desmiolada que seje, merece respeito, senão por ela mesma, pelos pai dela, oxe!

Abrimo a porteira do terreirão, embiquemo as besta pro lado da sede da fazenda, pra mode falar com seu Orelo, só na tenção de confirmar a empreitada, de modo a não deixar dúvida no ar, e, despois, seguimo em frente. Durante a cavargada, o fio da fumaça se espaiava no ar atrás da gente, fazeno ziguezague e seguino a direção do vento fresco da manhã. E as besta ia do passo à marcha, rasgano a estrada de terra, bem dolente ao nosso comando. Tudo animal bom de sela, preparado pra lida!

A fazenda do seu Antõi das Morte, cumpadre do seu Orelo, padrim do desmiolado Juliano, dista umas três/quatro légua da fazenda do Jacó, donde nós trabaia e mora. A viage é um estirão de umas três/quatro hora, até bater na porteira da fazenda Promissão, que é como chama as terra lá do seu Antõi das Morte. Engraçado que esse nome dele ele já trouxe lá dos lados de Nanuque, terra de gente braba, donde ele morava. Diz que ele era bicho do cu riscado lá e passou fogo em mais de um que se meteu a besta com ele. Quano chegou por aqui, já era um home mais serenado, mais entrado na idade, com o juízo mais arrumado na cabeça, de modo que era outra pessoa, de ninguém dizer que era verdade as peripécia dele. Tanto que acabou amigo do patrão e se tornou até compadre.

A recomendação do seu Orelo é que nós chegasse de vorta na boca da noite, trazeno o menino a laço, se fosse perciso, mas que, em antes, nós tentasse fazer ver a ele que tinha de vortar na paz, pra mode reparar seu erro. Eh! Lasqueira! Eh! Empreitada desconchavada, sô!

A marcha foi tranquila. De vez em quano, nós parava pra mode descansar os animal, dar de comer a eles e de beber. Tempo também de nós mascar um naco de carne com farinha, que nós trazia de matutage num bornal, acender o pito, tirar água do joelho e espichar as perna, que fica meio dura no arco da sela, quano a marcha vai longa, demorada.

Cheguemo na Promissão bem na hora do armoço – Coisa boa, sô! – saudemo seu Antõi e dona Carmita e esclarecemo a eles a nossa missão ali, da parte do nosso patrão Orelo, pai do Juliano e compadre deles, tudo bem esclarecido, de molde a não haver dúvida, nem desconfiança. Seu Antõi disse que tava munto bem, tava munto justo, o compadre Orelo é um homem direito, conhecedor de seus deveres, e sabe aquilatar bem as atitude do fio, e ele, Antõi das Morte, em pessoa, ia ter uma conversa com o afiado agorinha e fazer ver a ele a justeza da atitude a tomar. E pediu à dona Carmita que botasse mais dois prato na mesa, que nós era convidado dele, e entrou pra dentro da casa, pra ter dois dedo de prosa com o menino Juliano.

Não delongou munto a prosa, e os dois vortaro lá de dentro: seu Antõi na frente, com a cara boa, e Juliano em seguida, com cara de cachorro que virou a panela do vizinho. O menino se dirigiu a nós – Oi, Troquato! Oi, Zeca! -, de zoio baixo, sem encarar nós, e se assentou no banco comprido que fica do lado da mesa de armoço. Seu Antõi convidou a gente pra sentar também, enquanto dona Carmita acabava de pôr a mesa com aquela comida fumegante de cheirosa: costelinha de porco, angu molinho, taioba refogada, arroz sortinho e feijão cheio de pertence.

Seu Antõi, no mesmo instante em que servia o prato, dizia da conversa tida com o afiado. Estava tudo nos conformes, disse ele. O menino entendeu tudo e estava disposto a vortar em paz com nós. Nessa hora, Juliano levantou os zoio, me oiou sem arrogância e sem prevenção, e senti que nossa empreitada ia ter um remate tranquilo, sem munta quizumba. Senti que o Zeca ficou aliviado com a reação do menino. É que nós esperava um frege danado, um quiproquó daqueles.

Antes de pegar a estrada de vorta, dona Carmita ainda passou um café esperto. Bebemo o café, despedimo deles e peguemo o caminho de vorta.

Durante todo o trajeto, Juliano fugia da conversa que eu puxava. Eu ia arrodiano, cevano o menino de jeito, como quem ceva traíra arisca. Queria dar uns conseio a ele, que podia ser meu fio, mostrar que às vez a gente erra, mas pode consertar as coisa. Só a morte não tem conserto, agaranti pra ele. O que não pode é fugir às responsabilidade. Que ele fosse com o coração manso conversar com o pai, que gostava dele, apesar de tudo. Zeca, vez em quano, reforçava meus argumento com um uhum!, um é isso meso. Juliano não tugia nem mugia. Ouvia tudo quieto. Num dado momento, ele abriu a boca pra dizer que eu tava certo, que ele tinha agido como criança irresponsave, mas que tinha pensado munto em tudo isso que eu disse pra ele. E o padrim dele também.

Quano a noite caiu, nós já tava adentrando a porteira da Fazenda do Jacó. Senti que o menino estremeceu feito vara verde em riba do cavalo que ele fugiu. Falei pra ele que nós ia ficar do lado dele, diante do pai dele, pra agarantir que seu Orelo não tivesse outro destampatório pra cima dele. Apiemo das besta, subimo os degrau da escada da casa da fazenda – as roseta das espora fazeno seu baruio ritmado –, gritemo oi! de casa! e entremo pra dentro do salão grande já iluminado pela luz minguada do gerador da banqueta. Ouvino nossos passo, dona Carmita e seu Orelo viero lá de dentro – o pisado da botina do patrão roncava as tauba do chão -, e em antes que seu Orelo abrisse a boca pra dizer coisa, sortar os bichos pra riba do fio, falei firme, mas com todo respeito como é do meu feitio:

- Patrão, fomo buscar um moleque e tamo devorvendo um home. Aqui está seu fio!

 

 

 

Volpetiz, Cavaleiros (em artedionisio.blogspot.com).



15 de outubro de 2020

NOVO LIVRO: PENSAMENTOS BEM-PENSADOS

Acabo de lançar mais um livro pelo Clube de Autores. Nele, coletânea de meus "pensamentos bem-pensados" publicados no PENSADOR UOL, os leitores estarão livres de bons conselhos, mensagens altruístas ou reflexões pundonorosas. Já temos muita coisa com que nos preocupar. Talvez encontrem um motivo de sorrir. Se isso ocorrer, já terá cumprido sua missão. 
Aí uma amostra do que lá encontrarão:

Sempre que um economista acerta uma previsão econômica, é sinal de que a Economia errou.

Caso se interessem, é só acessar o endereço eletrônico abaixo, que os remeterá para o sítio da editora.







8 de outubro de 2020

OS MEUS, OS SEUS, OS NOSSOS MEDOS

 

O medo não escolhe idade, mas tem uma preferência muito grande pelas crianças. Não sou psicólogo, por isso não sei de onde vem o medo. Sei até para onde vai. Uma compreensão talvez um pouco melhor do que sobre a dúvida ontológica do estar no mundo.

Em Carabuçu, pelo tempo em que lá vivi, até os meus dezoito anos, desenvolvíamos os medos mais diversificados possíveis: de boi bravo, de cachorro doido, de cobra venenosa, de marimbondo caçador e mangangá, de corisco em dias de tempestade, de morcegos, de gatos à noite (De dia, não havia problemas com eles.), de panarício (Eu tinha um medo quase pânico de panarício!). Medos que poderia pôr na conta da existência física, do meio ambiente, mas que eram muito bem administráveis por nós. Outros, contudo, fugiam ao nosso controle: o medo do Saci-Pererê, da Mula-sem-cabeça e do Lobisomem, entidades que rondavam a vila em noites soturnas de nossa meninice, povoando histórias assombradas tão ao gosto da nossa gente cabocla.

E um outro, mais real, mais terrível que todos: o medo do Carro Preto, uma entidade criada pelos adultos, para fazer o controle da criançada. Menino que se afastasse muito de casa, corria o risco de ser roubado (Não usávamos a palavra raptado.) pelo Carro Preto e desaparecer no oco do mundo, para nunca mais. Alguns chegavam a dizer que o objetivo do Carro Preto era levar as crianças para delas fazer sabão. Nem se cogitava em resgate a troco de algum bem valioso. Era simplesmente sumir e voltar em forma de sabão. E não poderia haver, até então, pavor pior do que ser transformado ingloriamente numa barra de sabão.

Por essa altura a vila tinha pouquíssimos veículos, e qualquer um que aparecesse, na cor preta, metia a criançada em polvorosa. Por vezes, alguém dava o alarme de que vira um carro preto descendo o Morro do Marta, na entrada da vila, e a criançada toda debandava, para esconder-se em casa, o único local seguro na vila. Só o carro do seu César Portugal, um do tipo cristaleira, como dizíamos, não infundia esse pavor em nós, por já ser nosso antigo conhecido.

Como eu também desenvolvi não um medo, mas um certo respeito, por aquilo que os mais velhos diziam de funesto sobre nossas traquinagens, me precavia um pouco mais. Se um adulto alertasse para qualquer perigo iminente de uma peripécia inconsequente, eu tinha aquilo como um vaticínio. É que que fui testemunha ocular, durante uma dessas farras de meninos na serraria aberta que ficava sob um frondoso pau-d’alho na subida do morro da escola, da queda de um de nossos companheiros, do alto de um galho, bem depois do aviso de um senhorzinho de cabeça branca que passava ao lado

- Cuidado aí, menino, que você vai acabar caindo e quebrar o braço!

Não deu outra! Daí a pouco meu parceiro estava no chão, há uns cinco metros abaixo do galho, com o braço partido.

Por isso é que passei a julgar que os adultos tivessem parte com adivinhos, pessoas capazes de prever o futuro. E só para desgraças. Nunca para boas novidades.

Depois que vim para a cidade grande, aquelas identidades míticas como o Saci desapareceram. Nunca soube por aqui que tivesse aparecido Saci em Niterói. Em Icaraí, por exemplo, onde cheguei em 1967, já desembaraçado de todos esses medos. Lembro-me até de uma propaganda antiga sobre os benefícios da energia elétrica: até mesmo esses assustadores bichos da noite haviam desaparecido. É que a escuridão e o consequente medo dela propiciam a que vejamos coisas que nem mesmo existem.

E aí estava a base para que a professora primária fizesse a distinção entre substantivo concreto e substantivo abstrato. Este último representava alguma coisa que só existia em nossa imaginação: o Saci, por exemplo.

Claro que a explicação desses conceitos gramaticais não é assim tão simples, mas ajuda a minimizar um pouco a sensação de medo que fazia parte inerente à nossa vida.

Hoje vivemos aos sobressaltos, cheios de medo. Não de coisas ou entidades criadas por nossa fértil imaginação. Mas um medo concreto da violência das ruas, uma situação a que fomos levados há alguns anos e que só vem-se agravando.

Hoje temos medo até de sair do portão de casa.

E este é um medo muito maior, muito pior, que não depende apenas de nossos esforços individuais para vencê-lo.

 

Imagem em pt.wikipedia.org.

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos.


23 de setembro de 2020

UMA CARTA

Há cerca de quatorze anos, escrevi uma carta para Gabriela, minha neta, tão logo ela retornou à sua casa, após passar um fim de semana conosco. Hoje encontrei essa carta num pen-drive com alguns documentos e fotos antigas, da mesma época. Aproveitei, então, que Gabi já sabe ler há muitos bons anos e pode muito bem entender o que passava pela cabeça do avô, diante do encantamento por sua primeira neta, para a enviar por Whatsapp.

Aí está a carta.

"Minha linda netinha Gabriela,

 Estou escrevendo esta carta diretamente do ano de 2006, no dia 29 de maio, uma segunda-feira, depois de você passar sábado e domingo em Niterói, conosco, iluminando nossas vidas e preenchendo cada cantinho da casa de felicidade.

Você tem apenas um ano e um mês. Já anda, já fala as primeiras palavras. Vou enumerá-las para que você saiba, tentando o mais possível reproduzir o modo como você as produz: “papá”, “mãmã”, “bobô”, “bobó”, “inda” às vezes “dinda” (para madrinha), “lá” (para Flávio, com um movimento da língua que pressupõe que antes do /l/ vem alguma coisa ainda não bem dita); “papato”; “cocó”, “dedera”; “papá” (para comida); “papo” (sapo); “Didite” (Vó Judith); “Zezé” (bem aberto), dentre outras que não me ocorrem.

Nós (eu, sua vó Jane, sua dinda Estefânia) achamos você muito esperta e precoce, porque consegue falar tudo isso e entender quase tudo que falamos com você.

Além disso, você é uma garotinha muito obediente. Atende às proibições de alguma atitude que possa levá-la a se ferir.

Tem vivo interesse em alguns vídeos de histórias infantis (Branca de Neve, Cinderela) e de músicas (A palavra cantada, por exemplo). Gosta de ver os intervalos comerciais do canal Discovery Kids, mas não tem muita atenção para as historinhas que são apresentadas.

Você é uma menina muito comunicativa, esperta, alegre, de um bom humor contagiante, embora seja cheia de vontades e, às vezes, brigue por isso.

Sabemos que, na Casa de Rui Barbosa, você joga beijo para os porteiros e os seguranças, e todos lá gostam muito de você.

Sua mãe e seu pai sempre a trazem muito elegante e bonita, cheia de apetrechos que os nenéns usam em sua bagagem.

Não há como conviver com você sem se apaixonar.

Boa parte do que nós somos é herança de nossos pais. Outra nós trazemos naturalmente. Uma outra adquirimos pela vida afora.

Você traz consigo o bom humor, a alegria e a felicidade contagiante. Isso você pode cultivar durante toda a sua vida, pois assim viverá melhor.

De seus pais, você adquire, além de traços físicos e de personalidade, a educação, o trato com as pessoas, o senso de responsabilidade, a noção de ética, o interesse por diversos assuntos (música, cinema, esporte, por exemplo).

A vida vai lhe mostrar os embates, os caminhos, as opções, o outro, que nunca deve ser encarado como o oposto, mas apenas como o diferente de você. Não temos necessidade de lutar contra o nosso semelhante, mas fazer dele nosso aliado, para que os embates, os caminhos e as opções sejam os melhores, os mais promissores.

A escolaridade também vem de fora. E é preciso que você aproveite o máximo possível de sua passagem pela escola. Tire dela o máximo possível, para que você possa também retribuir com o melhor que puder.

Um beijo do vovô

Saint-Clair"

Imagem obtida na Internet.


 


9 de setembro de 2020

PROBLEMAS DA QUARENTENA

Definitivamente esta quarentena não está fazendo bem a ninguém.

Marido e mulher, cada um sentado em uma ponta do sofá, acompanham o telejornal da noite. Ela, por dizer que tem atenção múltipla, essa coisa que só mulher garante que tem, também futuca suas redes sociais ao celular, enquanto afirma que também acompanha o noticiário. O homem jamais saberá se é verdade, uma vez que morre de pavor de que isso seja realmente possível: um ser humano ser capaz de prestar atenção a duas coisas distintas ao mesmo tempo.

Num dos intervalos, o marido se levanta e começa a sair da sala. A mulher, de imediato, lhe pergunta:

- Onde está indo?

Aqui é preciso observar que, antes da pandemia, tal pergunta só ocorria no instante em que o marido sorrateiramente desferrolhava a porta da casa, na intenção de ir ao botequim beber umas e outras e confraternizar com qualquer um que estivesse com o umbigo encostado ao balcão – o Botequim Chalé está logo ali embaixo, com suas torneiras de chope a convidar quem se aproxima. Durante a pandemia, contudo, a saída de qualquer ambiente, por mais doméstico que seja, passa a ser suspeita, passível de inquirição pelos órgãos competentes, quer dizer, a mulher. Pois é o que está ocorrendo neste exato instante em que o narrador flagra a cena.

- Vou ao banheiro. – responde ele com certa má vontade.

- Fazer o quê? – volta a inquiridora, a levar adiante o inquérito administrativo recém-instaurado no ambiente sacrossanto do lar, submetido às estritas leis da quarentena.

- Prefiro não responder! – diz ele, já aborrecido, valendo-se do dispositivo constitucional de que o investigado não tem a obrigação de produzir provas que possam incriminá-lo.

E vai em direção ao banheiro.

Fica lá o tempo necessário para atender aos reclamos da sua biologia já um pouco desgastada pelo tempo e volta com a mesma pouca disposição para conversa com que saiu ainda há pouco.

A mulher continua a demonstrar, com toda a segurança, que vê o noticiário, futuca as redes sociais e ainda tem tempo para cronometrar a ida do marido ao banheiro.

- Achei que você demorou. O que esteve fazendo?

O marido repete a mesma justificativa anterior: não vai produzir provas contra si. Tem garantias da constituição para assim proceder. É um cidadão livre e se reserva o direito de só declarar algo diante de autoridade judicial concursada, empossada e paramentada para a ocasião. Se possível com aquela cabeleira branca de juízes ingleses.

- É que eu tenho notado que você tem ido ao banheiro com muita frequência e não estou gostando disso. Você deve procurar um médico para saber o que anda acontecendo com você. Pode ser problema de rim. Você tem urinado demais ultimamente.

- Problema de rim é quando não urina. Se estou urinando é porque o rim funciona, né não?

- Ah! Mas assim também já acho um pouco exagerado. Tudo tem de ter uma medida. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, não é assim que se diz? E também não vejo você bebendo água, para precisar de ir tanto ao banheiro. Aliás você não tem tomado água. Você pode estar se desidratando aos poucos, sem perceber.

O marido dá meia volta, para fugir à preocupação da mulher. Em vão. Agora como promotora começa a levantar indícios e sinais pretéritos.

- Se lembra do seu Ricardo, lá do nosso antigo prédio da Pereira da Silva?

O marido se lembra bem, evidentemente, pois ainda não é incomodado pelo alemão odioso. Antes de virem para seu endereço atual, moravam no apartamento de frente para o do senhor Ricardo e dona Mercedes, já idosos à época. Seu Ricardo era um vizinho de boa conversa, simpático. Tinha sido remador do Clube de Regatas, quando mais novo, e até pouco tempo mantivera o hábito de sair pela Baía de Guanabara molhando o casco de seu barco, um single skif branco, impulsionado por grandes remos apoiados às laterais.

No entanto, começara com um comportamento estranho, que foi denunciado à filha pelo proprietário do bar no térreo do edifício, que ficou preocupado com o que vira. É que seu Ricardo, com frequência usava o banheiro do bar, e José, o dono do estabelecimento, notou que, após o uso, o vaso ficava manchado de sangue. Depois disso seu Ricardo não durou muito. Ele, agindo assim, escondia da esposa e da filha seu problema, o que atrasou o tratamento de um fulminante câncer nos rins.

- Claro que eu sei! – respondeu ele já um tanto irritado – Mas eu não estou com o problema do seu Ricardo. Apenas tenho ido com mais frequência ao banheiro, porque já estou mais velho. E ainda fico feliz por meu rim estar funcionando bem. O problema é se ele não funcionar.

- Não sei por que homem se recusa a ir a médico, se tratar, prevenir qualquer tipo de doença. Nós mulheres somos precavidas: ao primeiro sinal de que alguma coisa não anda bem, logo corremos ao médico. Por isso é que morremos sempre depois de vocês. Você sabe a quantidade de viúva que há por aí. Lembra do micro-ônibus que nos levava ao teatro no Rio como era cheio de mulheres sozinhas, todas viúvas?

É claro que ele se lembrava. Num micro-ônibus lotado, era só ele de homem. Se sentia como um dois de paus no meio daquele bando de mulheres tagarelas, sem seus maridos, que já tinham ido para a cidade dos pés juntos. E ele ali, sozinho. Por isso é que talvez tivesse tanta segurança de que aquelas idas à miúde ao banheiro não fossem sinal de problemas.

- Lembra que a Marlene, aquela sua colega aposentada, contou como o marido dela também morreu de uma hora para outra, sem que fosse por problema de coração? Foi uma coisa assim, sem importância para ele, que acabou por levá-lo ao cemitério.

- Mulher, vira essa boca pra lá! Parece que está me agourando! Está querendo também ficar viúva, para ir ao teatro num micro-ônibus só de mulheres?

- Deus me livre! Morro de medo de ficar sozinha! Não quero trocar nossa cama de casal, por uma cama de viúva! Você não vai me fazer a desfeita de morrer e me deixar aqui.

A lógica da mulher escapa um pouco à compreensão masculina. Então o marido tenta contra-argumentar:

- Então, se eu não posso morrer antes, você é que terá de morrer, pela lógica. Aí eu é que ficarei viúvo. Mas não irei ao teatro naquele micro-ônibus. Pode ter certeza!

E solta uma gargalhada.

- Mas não vai mesmo! E eu não vou morrer, e deixar você aí soltinho, correndo atrás de sirigaita nenhuma. Está pensando que eu sou boba?

E continua a mulher a futucar seu celular, ao tempo em que também assiste ao telejornal e tece considerações acerca da vida e da saúde em geral e do seu marido em particular.

A quarentena está apenas pela metade, sem perspectivas de acabar. Ainda haverá muita oportunidade para que tal assunto volte à baila, entre na ordem do dia, esteja sobre a mesa de negociação. Nunca se sabe até onde podem chegar os problemas de fundo psicológico que esse diabo de vírus pode produzir. Esse casal é apenas e tão somente uma de suas vítimas atualmente.

E este narrador se exime de qualquer responsabilidade no desfecho da história.


AG] Excursão para Caxias no fim de semana do dia dos pais. - Clicsul.net

Imagem colhida na internet.

28 de agosto de 2020

NA CASA DA VOVÓ MARIQUINHA


Estou entrando na casa da minha bisavó, a Vovó Mariquinha, para mais uma visita à sua solidão.
Minha mãe era uma boa neta. Sempre visitava Vovó Mariquinha, nos finzinhos de tarde, comecinhos de noite, antes da hora do jantar, de modo a não quebrar a rotina da casa sossegada.
Vovó Mariquinha vivia sozinha numa casa grande e elevada, a que se tinha acesso por uma escada externa, com três quartos, sala espaçosa, cozinha comprida e alpendre para o lado de uma chácara cheia de árvores, na rua que entra em Carabuçu.
Devo confessar hoje que, à época, lá pelos meus oito-nove anos, a visita à Vovó Marquinha naquele horário jogava, na minha imaginação infantil, cores soturnas sobre a casa. A sala, único espaço a ter a lâmpada acesa, onde sentávamos para conversar com ela, diante de uma comprida mesa de madeira, ladeada por dois bancos também compridos, era exagerada para minha cabeça de menino: parecia uma vastidão. A decoração, se é que se poderia assim chamar a presença de poucos móveis, sobretudo uma cristaleira escura, era de austeridade espartana. A cozinha, localizada à direita, a partir dos fundos da sala, permanecia numa penumbra soturna, com suas panelas de alumínio refletindo mal e mal a luz da sala.
Porém o que me chamava a atenção era o relógio de parede, em madeira também escura, com dois bojos redondos protegidos por vidros, através de que era possível ver o movimento do pêndulo, com seu tique-taque cadenciado, a fazer escorrer bem devagarinho o tempo da conversa.
Eu ficava ali, absorto, contemplativo, como que hipnotizado pelo vaivém daquele mecanismo de precisão, tendo como fundo sonoro as vozes suaves da minha mãe e da minha bisavó.
Por essa época, Vovó Mariquinha deveria ter cerca oitenta anos, estava perfeitamente lúcida, como aliás permaneceu até seus dias finais, já com cento e dois anos, e não tinha nenhum medo em viver sem ninguém consigo. Fazia suas refeições, cuidava de sua casa, que estava sempre limpa, e gostava quando minha mãe lá aparecia, para trocar dedos de prosa sobre assuntos antigos, lembranças de um passado que a mim pareceria muito afundado no tempo, e outros contemporâneos, a que não faltavam a política e as notícias da família, as peripécias singelas da vila pequena.
Eu e meus irmãos, mais novos do que eu, ficávamos quietos, sem desassossego, sentados nos bancos, braços apoiados na mesa, aguardando que aquela conversa tivesse fim, e nós regressássemos a casa. Se ainda houvesse luz diurna, até corríamos pelo terreno espaçoso, onde ficava uma edícula em que moramos quando eu ainda era bem pequeno e meus irmãos ainda não existiam, da qual guardo na memória algumas poucas imagens e o cheiro da casa construída em pau-a-pique. Caso a escuridão da noite já se fizesse presente, o medo impedia que arredássemos o pé da sala.
E eu ficava olhando o pêndulo a balançar cadenciadamente, ouvindo ao mesmo tempo o tique-taque característico das engrenagens do relógio, como a pingar de modo dolente o tempo a escorrer suave e sem pressa sobre aqueles meus dias de infância.
E não me lembra mais a que hora chegávamos à casa da Vovó Mariquinha, quantas horas lá ficávamos – se é que chegasse a tanto! -, nem tampouco o caminho da volta.
Só me recordo bem do balanço do pêndulo, do tique-taque monótono e das vozes plácidas da minha bisavó e da minha mãe, tecendo com palavras a vida simples daqueles tempos.



elvira ig - Google+ Johann Georg Meyer von Bremen. Alemán (Bremen
Pintura de Meyer von Bremen (1813-1886), colhida da Internet.

14 de agosto de 2020

INVERNO TROPICAL


Um sol
Avesso ao inverno tímido dos trópicos
Tisna a pele
Aquece os ossos
Espanta aquilo que poderia ser frio
Da varanda onde se bebe cerveja
Com tremoços
Com jiló e torresmo.
Não há inverno nos trópicos
Apenas certo conforto nos corpos
Com a temperatura um tanto mais amena.
E tudo vale a pena
- Mesmo este gosto simplório
De coisas corriqueiras -
Como aliás quer o poeta
Para esta vida tão pequena.

Inverno em Icaraí (jun/2015; foto do autor).


4 de agosto de 2020

O BEBÊ CAIU NO CHÃO


Vai o vovô passear
Com seu netinho na praia.
Diz-lhe a vovó com jeitinho,
Um pouco antes que saia:
- Coloque o cinto bem firme,
Para que o bebê não caia!

Mas o avô justifica
Não amarrar o netinho,
Que é tão novo ainda
E também pequenininho
E não vai ficar bulindo,
Há de ficar bem quietinho!

Saíram os dois a passeio,
O avô muito contente,
O bebê acomodado,
Logo seguiram em frente,
Pelo calçadão da praia,
Onde havia pouca gente.

Em direção ao Ingá,
Caminhavam lentamente,
O avô empurrando o carro,
O bebê também contente,
Todo enrolado em cueiros,
Como era antigamente.

De repente o cobertor,
Que estava dependurado,
Caiu no chão da calçada,
E o avô preocupado
Abaixou-se pra pegar,
Antes que fosse pisado.

Assim que estava abaixado,
Tirando do calçadão
O cobertor que caíra,
Teve chamada a atenção
Por senhorinha que vinha:
- O bebê caiu no chão!

Quando o avô se deu conta,
O bebê todo enrolado
Em muitos cueiros e panos
Estava no chão deitado,
De barriguinha pra baixo,
Chorando desesperado!

O avô tomou um susto
E levantou o netinho,
Limpou toda a poeira,
Examinou direitinho
E viu que só o nariz
Ficara bem vermelhinho.

Acalentou o menino,
Deu-lhe carinho e cuidado,
Verificou não haver
Nenhum ossinho quebrado,
Nem mesmo sangue brotara
Do bebê acidentado.

Chegou em casa e contou
Para a avó o ocorrido,
Levou um pito danado,
Se mostrou arrependido
De não ter observado
O que lhe fora pedido.

Até hoje esta história,
Que envolveu grande risco,
É lembrada pelo neto
Como se fosse um disco
Que soa repetitivo,
Tocado pelo Francisco,

Que faz só de brincadeira
E o remorso atiçar
Do coitado do avô,
Que então finge chorar,
Enquanto o Francisco ri.
Oh! Como dói relembrar!


Como Entrar No Banco Com Carrinho De Bebe | Carrinho de Bebê 2019
Imagem obtida na Internet.

28 de julho de 2020

INÉRCIA


Mexe o corpo ligeiro
Tremem os músculos nervosos
E no meio de todo esse bulício
Eu sonho com a inércia

Ando de lá para cá
Volto em tempo bem curto
Me esfalfo em compromissos
Pensando sempre na inércia

Os dias andam corridos
De norte a sul do universo
Eu quase perco o juízo
Enquanto aguardo a inércia

Entretanto a indesejada
Vai chegar na hora certa
Com todos os seus auspícios
Não quero saber de inércia!


Desenho de Rede de descanso para colorir - Tudodesenhos
Imagem em tudodesenhos.com.

2 de julho de 2020

LÁBIOS QUE BEIJEI


O tom da valsa melancólica enchia o pequeno espaço daquele rústico bar na Rua da Arara. Senhorinha Augusta passava pano úmido sobre o balcão de madeira, a fim de apagar certas marcas de fundos de copos e garrafas deixadas na noite anterior. E tinha muito zelo em lavar os cinzeiros, a fim de espantar o ranço de cigarro impregnado nas paredes, nas cortinas de chitão e nos móveis pobres do ambiente. Depois disso, borrifava água de flor de laranjeira para deixar um cheirinho gostoso naquele espaço um tanto acanhado.
“Lábios que beijei” tinha começado a tocar na velha vitrola RCA, cuja agulha já rombuda tornava o som do disco meio rascante. O velho peito do freguês ao lado, afrontado por anos de cigarro, também rangia no compasso do elepê. O coração subia-lhe em volteios até o nó da garganta, em tempo de saltar e exteriorizar-se em palavras incompreensíveis, e baixava em espiral ao mais profundo do âmago, onde perdia sua força. Ou onde lá isso iria dar, nunca se sabe. E foi ele o primeiro a entrar naquela tarde no botequim, ainda sob os cuidados da proprietária. E já chegara cheio.
Agora era aquela valsa melancólica, letra costurada sobre o tecido gongórico da nossa velha música popular, a lhe lembrar as misérias por que passara com a ingrata que lhe cravara em pleno peito tanto desgosto e tanta vergonha, como no antigo tango argentino. Nesse ponto, o prostíbulo brasileiro difere do argentino apenas na língua que ambos usam. Mas os personagens são os mesmos. O sentimento e a dor são as mesmas a varar os corações, brasileiros ou portenhos, sem respeito a fronteiras nacionais. A dor de amor é inerente ao ser humano. E ali estava ele a curtir a sua própria e única, pessoal e intransferível. E, sobretudo, inelutável. Por isso bebia.
E também queria ouvir de Senhorinha Augusta se realmente aquilo de fato ocorrera. E ela, sem meias palavras, sem cuidados, confirmava a história. Nem ela mesma fora avisada de nada.
A cerveja esquentava no copo. As moscas sobrevoavam o ar morno do estabelecimento à beira rio, onde os homens iam buscar os corpos postos à venda. Apenas na segunda-feira ocorria o descanso das moças, ocasião em que podiam dar certo sentido a suas vidas de pessoas comuns, se é que isso fosse possível, indo às compras no comércio da cidade, sorvendo o ar puro do dia e banhando-se na luz do sol pelas ruas com pouco tráfego. Nos outros dias, estavam a postos, não importa o horário, pois há sempre alguém procurando seu conforto sensual, seu cheiro de pele e seu fingido prazer, sem o qual o freguês não capricha na gorjeta.
- Senhorinha, põe um traçado pra acompanhar a cerveja, por favor. E capricha na dose, que eu tenho muito o que afogar hoje!
A tarde mal começara a se esvair, e a escuridão da noite se anunciava vagarosa. Escurecia cedo por esse tempo. E ele era o primeiro freguês a chegar ao bar, ainda dia claro. Aquela sexta-feira poderia ser diferente. Nunca se sabe. Poderia trazer algo que lhe tirasse do estado lamentável em que se encontrava. Talvez pudesse até mesmo lhe arrancar do peito aquele desgosto, aquela derrota.
E ele não era freguês desconhecido. Tinha seu nome reconhecido pela dona do bordel e pelas meninas que ali trabalhavam. Sobretudo era conhecido por sua paixão pela menina Zenaide. Entretanto, de todas as outras vezes em que estivera na casa, viera sempre com sorriso aberto e disposição para a noitada. Não, porém, desta vez!
É que soube por um amigo que, desgraçadamente, sua preferida fugira com um caminhoneiro chegado à cidade para entrega de madeira a uma serraria, e que estivera ali mesmo e, com duas palavras galantes no ouvido de sua morena, arrebatara-a para a boleia do caminhão, com promessas de longos quilômetros Brasil afora. Foi o jeito que ela encontrou de fugir à vida de entrega do corpo sem prazer, num mero exercício de fugir à necessidade, após perder pai e mãe e ficar sozinha no mundo.
Sem um aviso, sem uma palavra a ninguém, ela partiu. E ele, que até pensara em também lhe propor a mesma solução, enfim não concretizada, estava agora começando a curtir a perda da sua morena.
Há paixões fulminantes, a que não se consegue fugir nem com promessa a santo da devoção. Há outras que se constroem aos poucos, porém sem lerdeza, mas que penetram mais fundo. Esta foi a dele por Zenaide. Aquela foi a dela pelo caminhoneiro. E Zenaide lhe confessara que ele era o primeiro homem a quem beijava de verdade, com paixão; que sentia por ele algo especial, diferente de todos os demais com quem se deitava. Por isso ele não conseguia entender como uma mulher vivida tal a sua morena se deixasse encantar por meia dúzias de palavras que sabia vãs, por promessas a não se cumprir, pois ele bem conhece a fama desses viajantes sem destino, a ter em cada canto mulher que os receba, lhes dê conforto e prazer, mas que se vão na primeira curva da estrada, em busca de outras novidades e novas aventuras. Ele, ao contrário, estava disposto a lhe montar casa decente – humilde, é bem verdade –, mas que se transformaria num lar. Por que não dissera a ela tudo isso antes, a cada vez que a encontrara, ao fim do expediente normal da casa, no quarto apertado dos fundos da boate? É que ficou verificando se o interesse que ela lhe parecia demonstrar era realmente verdadeiro, se tinha pelo menos verniz de sinceridade. E esperou tanto e tanto adiou revelar seu propósito, que acabou abandonado feito um idiota, um zé-ninguém sem valor, a não merecer nem uma singela explicação, um adeus, mané!
Agora a vitrola repetia, a seu pedido, a valsa fatídica, miserável trilha sonora, sem glória nenhuma, para suas pretensões frustras, seus sonhos dilacerados.
- Senhorinha, não quero saber de mulher nenhuma! Hoje só quero beber! Me dê mais um traçado!
A noite se aprofundou com suas dores, a bebida cumpriu seu curso inexorável, e, dois dias depois, seus lábios, destacados no corpo túmido, foram encontrados comidos por peixe num remanso, agarrados às gigogas, numa curva do Itabapoana, próximo à Ponte do Zé Carlos.

Rio Itabapoana, próximo a Bom Jesus (foto do autor).


21 de junho de 2020

RECADO AO AMIGO


Me espere no bar em frente à praça
Peça uma cerveja
Chego já
Se não quiser
Peça um café
E me aguarde
Não hei de me atrasar
Temos muito a nos dizer
Há tanto não nos vemos
Isolados em casulos
Em que nos mantivemos sós
Acumulando assuntos
Tecendo ideias
Adiando os problemas para o fim do mundo

Esteja atento aos que passam
Todos devem ir felizes
Como também estaremos
Sem as amarras nos pés
Sem o medo do vento
Espere que logo chego
Para outros abraços
Quanto tempo faz que não nos vemos

Se estiver frio
Peça um chocolate quente
Raspe bem a garganta
Para que a voz flua incontinente
A jorrar aquela boa conversa antiga

Já estou chegando
Me espere no bar
Vamos retomar o fio da conversa
Que ficou suspensa
Peça uma cerveja
Um café
Um chocolate quente
E malgrado esse contratempo
Seremos os mesmos amigos para todo o sempre.



At the Cafe by Pauline Roche Oil ~ 12 x 9
Pauline Roche, No café (paulinerochefineart.com)