31 de outubro de 2011

NO MEIO DO MEU CAMINHO

(Nos 109 anos do nascimento de Carlos Drummond de Andrade.)

No meio do meu caminho teve um Drummond
de Andrade teve no meu caminho
Teve um Carlos
No meio do meu caminho um Carlos Drummond de Andrade

E nunca mais fui eu mesmo nem mesmo
Na vida de minhas pretensões tão jovens
E nunca mais me perdi no meio do meu caminho
Pois nele teve uma pedra
Que refletia o mundo que a cada instante se abre
No meio do meu caminho Carlos Drummond de Andrade

Autocaricatura de Carlos Druumond
de Andrade (em ronaldorossi.com.br).


30 de outubro de 2011

JUÍZO CRÍTICO

Renoir, A leitora (séc. XIX/XX).


minha amiga interessante
não gosta de poesia descritiva
eu também não
prefiro a poesia viva
que é minha amiga interessante
lendo poesia descritiva

29 de outubro de 2011

PENSAMENTOS BEM PENSADOS VIII




Encontrei numa livraria do Rio de Janeiro a obra Migalhas de Machado de Assis*, livro de compilação de frases do escritor carioca, colhidas em sua vasta obra por Miguel Matos.
Machado é também reconhecido como grande frasista. Seus escritos estão repletos delas. Assim o compilador se deu ao trabalho, com auxiliares, de fazer tal coleta.
Uma delas diz o seguinte: "Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo à semelhança das ideias" (in Esaú e Jacó e indicada pelo número de ordem 280 na compilação).
Vejam, então, vocês que, daqui mais alguns anos, posso ser citado, como faço agora; posso ser pai de alguma filosofia – algum –ismo –; inclusive posso ser guru de alguma religião muito lucrativa. Pretensão e caldo de galinha, na medida certa, nunca fazem mal a ninguém.
Continuemos, pois, com a publicação desses pensamentos bem pensados.
Imagem em
edmort999.blogspot.com.

1.      No Ministério da Agricultura, de cada enxadada que se dá, sai um corrupto. Já a mandioca anda escassa.

2.      Dos buracos das estradas brasileiras saem ratos peludos filiados ao PR - Partido dos Roedores.

3.      O salário mínimo brasileiro teve seu valor calculado de modo a não permitir a quem o recebe sair por aí, gastando a três por quatro. Pobre, quando tem, é um perdulário de marca maior.

4.      Vi notícias do lançamento de documentário sobre a reação do ex-presidente Lula vendo um filme sobre ele mesmo. Sei não, mas acho que o cinema nacional anda sem argumentos interessantes.

5.      É engraçado como nossa vida se desenrola, ou antes, marcha na fieira do tempo. Chega um momento em que, inopinadamente, dobramos do Cabo da Boa Esperança para o Cabo das Tormentas, num percurso inverso ao de Bartolomeu Dias. E o pior é que, ao nos darmos conta disto, nossa nau desembestada já está se aproximando de Calecute.

6. O haraquiri jamais pegaria no Brasil. Aqui, a vergonha pública que, lá no Japão, leva ao suicídio é virtude inexistente.

7.  Recebi e-mail solicitando minha assinatura em protesto contra um homem matador de gatos nos EUA.  Ora, lá só me interesso pela integridade da Demi Moore e da Beyoncé.

8.  Não há paixão, por mais doentia que seja, que um simples casamento não cure completamente.

9.  A única idade que não existe é a meia idade. Ninguém sabe quando será o fim: assim não existe o meio.

10.  A corrupção é uma prática tão difundida entre nós, que já se pensa em elevá-la à categoria de patrimônio imaterial do Brasil.

11.  Não confie muito que os políticos sejam capazes das maiores falcatruas. Eles, definitivamente, não são confiáveis.

12.  A primeira necessidade básica do homem é mamar. A segunda, caso se torne político, é mamata.

13.  Se você toma uma atitude numa latitude equidistante de qualquer ponto do planeta, o resultado vai estar numa longitude inconveniente a que este seja alcançado.

14.  Nos esportes patrocinados pelo Ministério idem, é no Segundo Tempo que os árbitros metem a mão no resultado dos jogos.

15.  Toda vez que assacam aleivosias e insinuações maliciosas contra o Ministro dos Esportes, o esqueleto do Cantor das Multidões sofre espasmos no Cemitério do Caju.

16.  Porco chauvinista é tão imprestável, que não serve nem para torresmo; quanto mais para leitão à pururuca ou leitão da Bairrada.

17.  No bate-boca entre Orlando Silva e João Dias nada há de musical, porém não sei qual desafina mais.
---------------- 
*MATOS, Miguel (org.). Migalhas de Machado de Assis. 4. ed. São Paulo, Ed. Migalhas, 2009.

28 de outubro de 2011

POEMAS MÍNIMOS IV

I
ninguém ouve minha boca
nem olha meus olhos.
estou comigo há séculos
e não me basto...


II
uns dias o sol
outros a chuva
no último de minha vida
pó de lágrimas secas


III
salga a terra o pranto copioso dos homens
um pouco depois
seus corpos adubarão
o que sobrar estéril


IV
os rios são corpos fluidos atemporais
atópicos atípicos
deuses helênicos
onde os pescadores pescam peixes míticos


V
meia parede clara iluminada pelo sol de outono
meio sono nas pálpebras cansadas
meia vida exposta à galhofa dos contemporâneos
meia morte minha noite em meio ao nada


VI – RELATIVIDADE (PAISAGEM INTERIOR DIANTE DO MAR ABERTO)
toda esta planura é curva
toda esta aflição é vida
todo este amor, desencanto
... desespero

Imagem em imagensdeposito.com.

27 de outubro de 2011

POEMA-TORPEDO

(Para Estefânia)
Bem te amo:
um tanto como um oceano;
um tempo como mil anos;
uma vida com seus enganos.
Mas é assim que te amo.
E pronto!


Arpoador, por Sheila Machado, em flickr.com, 10/4//2010.

26 de outubro de 2011

POR UM BIDÊ

Viúva, fora morar com o filho mais velho, a nora e os netos, após alguns anos de solidão na casa grande da serra de Rosal de Santana, já quase embicando para o Espírito Santo, em terras de São José de Calçado.
Habituada à dura vida da roça, embora de algumas posses, sem contato com os confortos que o século XX oferecia. Principalmente, banheiro montado dentro de casa. Na sua época, essa peça quase não existia. Ou, quando existisse, ficava apartada do corpo da construção e atendia pelo nome de quartinho.
Assim, começou a se deliciar com cada aparelho novo, cada objeto que facilitava a vida: o liquidificador, a panela de pressão, o fogão a gás, o rádio, a televisão e o banheiro ao alcance da mão. Sobretudo, o banheiro. E, no banheiro, a paixão maior: o bidê. Que aparelhozinho interessante, confortável! Era sentar ali e perder quase uma manhã toda, a água quentinha, carinhosa, sensual. Ela que já perdera seu homem há muito, quase deslembrada dessas coisas saborosas. Mas ali estava o bidê aconchegante, amigo, amante.
Imagem em gartic.uol.com.br.
A nora, quando descobriu o motivo de tanta demora no banheiro, ficou entre chocada e penalizada. Comentou com o marido que, cheio de pudores filiais, mandou fazer uma reforma geral. A peça, propositadamente, foi esquecida.
A velha, ao ver o novo banheiro sem bidê, entrou numa depressão tão grande, numa apatia tão dolorosa, que o filho se viu na obrigação de, por amor filial, devolver ao seu devido lugar o aparelho objeto do prazer do restinho da chama que ainda queimava dentro de sua velha mãe.

25 de outubro de 2011

AQUARELA BRASILEIRA EM PRETO E BRANCO

 (Para José Antonio Lahud.)

Turvei-me em Águas Claras,
Afoguei-me em Mangue Seco,
Encontrei águas clarinhas
Próximas a Rio Negro.
Em Monte Alegre do Sul,
Afundei-me na tristeza
De estar perdido no mundo.
E foi com tanta certeza
Que provei do desespero
Lá em Boa Esperança,
Mas voltei a ser criança
Em São José do Bonfim,
Achando que, para mim,
A vida seria eterna.
E, contudo, em Cruz das Almas,
A vil matéria brilhou
E fez com que me iludisse
E na pobreza caísse
Num tal de Cascalho Rico.
Entrei assim, pés descalços,
Em São José do Calçado,
Como perdi a visão
Em Alto da Boa Vista.
Em Bom Jesus dos Perdões,
Executei a vingança
De fixar residência
Junto a Desterro do Melo,
Que, não sendo meu parente,
Segurou-me em Vai-Volta,
Bem como em Varre-Sai,
Onde, de birra, fiquei,
Sem quase nada varrer,
E plantei flores estranhas
Lá em Jardim de Piranhas.
Mas a descrença me valha
Em Santa Fé do Araguaia,
Para que eu possa, então,
Elevar-me em Fundão
E afundar-me, num salto,
Em Barão de Monte Alto,
Para que a morte me encontre,
Morando em Natividade,
Rindo feliz e sem medo,
Em Dores do Rio Preto,
Cercado de multidão
Na cidade Solidão.




Imagem em inclusive.org.br.

24 de outubro de 2011

MORTO/VIVO



um morto é um morto
e nada mais morto que um morto
distintamente vestido e morto
pranteado e morto
engravatado e morto

há porém algo mais morto ainda
como a certeza de não haver depois
encontros em dimensões oníricas
ou a memória puída pelo tempo
em velhas fotografias esmaecidas

e um vivo?
é a única certeza de não se escapar a isso!
e é possível?
Imagem em photographisme.net.

22 de outubro de 2011

A MALA

(Para José Fábio Gomes Shuab.)

Corria o ano de 1972.

Aqui faço um parágrafo. Sempre quis começar um texto com uma frase como esta e não posso perder a oportunidade. Dá a impressão de que a história é antiga e que eu estava lá. E é isso mesmo. Portanto, continuemos!
Corria o ano de 1972. Meu primo José Fábio tinha sido transferido pelo Banco do Brasil da agência de Paracatu, em Minas Gerais, para a agência Centro do Rio de Janeiro, na Rua Primeiro de Março, onde hoje é o CCBB.

Quando aqui chegou, trouxe emprestada uma mala esquisita que só ela, em que acomodara parte de suas poucas tralhas de rapaz solteiro. Poucas vezes na minha vida vi uma mala feia como aquela. Hoje não saberia descrevê-la, mas gostaria de que você, leitor, acreditasse que ela era, de fato, muito estranha.
Por lá, meu primo deixara corações partidos, paixões de duas moças bonitas demais da conta – como dizem os mineiros. Mas também trouxe o coração miúdo de saudades da sua última namorada.

Um pouco depois de sua chegada, providenciou viagem de volta, com desculpa de devolver a mala esquisita ao amigo que a emprestara, mas o motivo maior era rever a morena que lá tinha deixado. Algum tempo depois, ela esteve em Niterói com os pais e pude ver que ele tinha seus fundados motivos para ficar na estrada entre Niterói e Paracatu. Era, de fato, uma garota muito bonita.
Nesta primeira viagem de retorno, José Fábio me convidou para acompanhá-lo, com o argumento de que eu conhecesse a cidade onde trabalhara tão logo saiu sua nomeação para o cargo de escriturário do banco (Nem sei se hoje existe ainda tal denominação.) e os amigos que lá ficaram. Isto ocorreria na Semana Santa daquele ano.

Até concordei com o convite, de início, mas, em cima da hora, desisti não sei por que razão. Tenho a impressão de que fiquei receoso de ficar chupando dedo, enquanto ele se penduraria no pescoço da namorada. No entanto, ficou para mim a incumbência de levar até a agência Centro a mala esquisita, pois dali sairíamos direto para a rodoviária.
Convidei nosso amigo comum José Fernandes, para ir até o centro do Rio, pois de lá faríamos algum programa naquela véspera de feriadão. José aceitou a proposta, mas não desconfiou de que eu pediria a ele para carregar a mala.

É claro que José Fernandes não aceitou. Aquela mala me lembrava, um pouco, a mala da música do Caetano Veloso, No dia em que eu vim-me embora: “Senti apenas que a mala de couro que eu carregava, embora estando forrada, fedia cheirava mal”. Obviamente que ela não fedia no sentido olfativo, mas era um desacerto no aspecto visual.

Assim não me sobrou alternativa a não ser carregar a dita mala esquisita. Saí da estação hidroviária da Praça Quinze de Novembro um tanto constrangido. Não tinha coragem de olhar as pessoas que vinham em sentido contrário, embora ninguém me conhecesse. Aqui quase ninguém conhece quase ninguém. Mais ou menos assim. Mas aquilo me constrangia.
Até que chegamos diante da entrada principal da agência Centro, que já havia sido a sede do Banco do Brasil, quando o Rio de Janeiro era a capital do país.

Não é muito relembrar que, por esta época, ditadura militar assanhada, ocorriam alguns atentados de grupos contrários ao regime, com explosões aqui e ali. Por isso é que, ao dar o primeiro passo em direção ao saguão da agência, os guardas levaram a mão ao coldre, numa clara atitude de desconfiança, motivada pela visão da mala. Parecia despacho de terrorista.
José Fernandes foi quem me chamou a atenção para a reação dos guardas. Eu cheguei a me assustar, porém lhes disse que estava procurando pelo primo Schuab, como ele era conhecido em seu ambiente de trabalho.

Um guarda me acompanhou até a mesa em que ele, naquele momento, atendia acionistas do Banco. Entreguei-lhe, aliviado, a mala esquisita e comuniquei que desistira da viagem. Para mim já tinha sido caminho extenso demais levar aquela mala de Icaraí ao centro do Rio de Janeiro, talvez viagem até mais penosa que a do Rio a Paracatu e seus 929 quilômetros de chão.
Imagem em rosaemchock.blogspot.com.

21 de outubro de 2011

ESPERE UM POUCO

espere um pouco
G. Moreau, Édipo, o viajante, séc. XIX.
não mate sua mãe ainda
édipo e jocasta não se odiaram tanto
e é possível um novo amor em cada esquina.
tenha sempre presente que o futuro
foi construído no passado
mas se pode mudar esse desespero
com que você construiu sua vida.

espere um pouco
não dispare esse canhão contra seu pai
laio saiu um pouco mais tarde
do leito da esposa
e você ficou perdido entre as trevas da noite.
do outro lado do dia
há um enigma para você decifrar.

espere um pouco
não arranque seus próprios olhos
a escuridão irá precisar deles
a escuridão com que conviverá
sem pai sem mãe sem você mesmo.
e depois
os deuses não estão nem aí
para essas misérias humanas.

20 de outubro de 2011

POEMAS BREVES IV

i
Não farei o ridículo que me pedem
Não cantarei o destoado que me sugerem
Estou imperiosamente aguardando o passado
Pois o futuro
As autoridades constituídas
Liquidaram com meia dúzia de decretos
E outro tanto de medidas provisórias

ii

Trafego na contramão
Ou da história ou da sociedade ou de mim mesmo
O certo é que trêfego trafego
No trânsito muito louco que me deram


Van Gogh, Estrada próxima a Paris, com agricultor
levando enxada às costas
, 1887 (em vggallery.com). 

19 de outubro de 2011

SACIOLOGIA

Imagem em gartic.uol.com.br.
Ditinho, a par da cachaça que bebia diuturnamente, era especialista em saci. Sabia de tudo da vida desse bicho dos ermos da noite e dos desvãos do medo humano. E deitava sabença e falação na explicação desse e daquele detalhe que os neófitos desconhecessem. Chegava a tal requinte sua ciência em saci, que mais de uma vez surpreendeu os circunstantes com histórias as mais estranhas. Tinha lá a sua teoria de que o saci, ou melhor, os sacis, porque não era um indivíduo apenas, mas uma súcia, tinham o mês de agosto como o de sua reprodução. E, mais estranho ainda, através de ovo. É... saci põe ovo! E junta tudo que é saci para pôr ovo num único lugar. Vejam vocês: no pasto do Coleto, na Vala, perto de um taboal. Doideira tentar passar por lá nesse período! Saci no choco fica mais ouriçado que ganso do mato. É bicho violento e traiçoeiro!
É bem verdade que nisso não acreditou o Ferreirinha, homem acostumado a pegar vaca de bezerro novo pelos chifres. Que nada, Ditinho! Isso é pura invencione sua. Ondé que já se viu saci botar ovo?! Pois bota que bota! E é no pasto do Coleto. Nem caia na besteira de passar por lá, nas voltas da meia-noite.
Desacreditado de tudo no mundo, a não ser em coice de cavalo xucro, dentada de cachorro doido e chifrada de vaca prenha, Ferreirinha montou no baio e partiu em direção ao pasto do Coleto, beirando a hora grande.
No bar do Tonho Pinto, ficaram as pessoas da roda de prosa, aguardando a prova dos nove do Ferreirinha.
Não é que o desabusado vaqueiro desapeou do baio, daí uma hora, todo lanhado a chicote, as feições transtornadas de quem viu coisa do outro mundo, a fala engasgada no gogó, que a custo murmurejou, antes de desmaiar: Tem pra mais de mil bichos, gente! Tudo no choco, tudo umas pestes do diabo! Desconjuro, credo em cruz, Virgem Nossa Senhora!
Por isso é que até hoje, lá pelas bandas de Liberdade, a única autoridade nesses assuntos é o Ditinho, pós-graduado em saci e outras manifestações das trevas.

18 de outubro de 2011

PANORAMA DA TARDE

Há pardais pelas árvores nos fins de tarde
Há pombos sobrevoando a cidade
Há mendigos sob os viadutos
Em compensação
Veleja-se na baía às terças-feiras
Joga-se golfe nos clubes da Zona Sul
E baforam-se Havana e fumos irlandeses
Com a sem-cerimônia de hoje e sempre

Claude Monet, Regata em Argenteuil, 1872,
em pt.wikipedia.org.

17 de outubro de 2011

RENÚNCIA

abdico do direito à parcela trágica da existência
visto que não venho de
não vou para
nem me sinto perdido em.
se sou assim ou assado
e ardo o meu ser perecível e único
nas chamas do amor e do abandono
é por desígnio de semelhantes meus (meus tiranos)
e a mais ninguém devo obrigações
nem favores cobro.
não estou só não sou fraco
nem tenho meu destino traçado em linhas que não leio.

Dirk van Baburen, Vulcano acorrentando Prometeu, 1623,
Rijksmuseum Amsterdam (pt.wikipedia.org).

16 de outubro de 2011

PENSAMENTOS BEM-PENSADOS VII

Imagem em rouxinoldejardim.blogspot.com.

Com a continuação da publicação destes pensamentos bem-pensados, pode ser que um dia eu chegue ao humor do Barão de Itararé, à profundidade do Marquês de Maricá e à conta bancária do Mago Paulo Coelho. Nunca se sabe, não é mesmo? Até internado em manicômio este último esteve. Por isso, creio piamente que tudo seja possível. Ninguém sabe das armadilhas da vida, nem o vidente em maior evidência no momento.
Então, sem mais delongas, aí vão os novos pensamentos.
1. Se eu fosse dizer tudo de positivo que penso, praticamente daria quase uma folha em branco.
2. Cavalo que muito escoiceia perde o rumo da marcha.
3. Pai de santo sem convênio com os poderes celestiais equivale a um celular pré-pago sem crédito.
4. Conselho dado não se olha a fonte.
5. Algumas vezes, para trazer a pessoa amada, basta uma bela conta bancária, ou uma Ferrari.
6. Não ando de bonde no Rio de Janeiro, nem sob a proteção de Santa Teresa.
7. No verão, quando chove forte no Rio de Janeiro, a cidade se transforma num rio de janeiro, de fevereiro e março. Quiçá até de abril!
8. Pelo volume de água que cai do céu em várias partes do mundo, fica difícil acreditar nas previsões de que estamos acabando com a água do planeta. Talvez só São Pedro acredite e esteja fazendo a reposição.
9. Toda a pretensa literatura de autoajuda ajuda mais o autor do que o leitor, o que vem justificar plenamente sua denominação.
10. Na Academia Brasileira de Letras, durante o chá das cinco, frequentemente morre um imortal.
11. Todo imortal da ABL, quando morre, comprova de modo irrefutável que o título lhe foi dado sem critério algum.
12. A se crer nas últimas previsões sobre o fim do mundo, comprova-se que todas elas são realmente incríveis.
13. O mundo já acabou vezes sem conta na previsão de milhares de videntes, tanto que, quando de fato acabar, não haverá vidente que conte.
14. Uma estrada esburacada que vá dar no nada é sempre melhor que uma asfaltada que te leve para a casa daquela sogra insuportável.
15. As ditaduras seguem a lei natural: depois de velhas, perdem o vigor e caem como qualquer órgão do corpo humano que vocês conhecem e cujo nome me abstenho de dizer.
16. Não há Viagra para ditaduras que perdem o vigor: todas elas acabam caindo inapelavelmente.
17. Roupa suja se lava na lavanderia.
18. Tudo o que eu sei ao certo é que tudo o que sei é muito incerto.
19. O Mausoléu que Sarney construiu para si em terras maranhenses é uma obra inútil: afinal ele não é imortal?
20. Cerveja dá barriga; carne vermelha, colesterol; doces, diabetes; cigarro dá câncer; álcool, cirrose. Será que não há nada de gostoso que dê saúde e vida longa?
21. Jacaré que vacila, diz o ditado, vira bolsa. Já o esperto arranja emprego na Lacoste.
22. Duvido que você duvide mais do que eu: eu duvido até das minhas dúvidas.

15 de outubro de 2011

ESTOU DESTINADO AOS VERMES

Estou destinado aos vermes
Como você, caro leitor,
E disso não tenho orgulho
Como também não tive quando nasci
E continuei não tendo durante a vida
Esse orgulho tão caro aos humanos
Que nos faz crer superiores
Até mesmo aos vermes que nos consumirão
Até a última molécula
Como o tempo
Que fará de nós memória perdida
Na vastidão da vida
(Isto se não a destruirmos na próxima esquina).

Jean-Baptiste Debret, Engenho, séc. XVII/XIX.

14 de outubro de 2011

MARIA MATA O PORCO

(Para a tia Alda Gomes Schuab.)

O dia tinha amanhecido esquisito, céu de chumbo malparado, tanto que Maria não atinara com a hora, no momento em que foi dar milho à criação. Pela cara da manhã, bem poderiam ser seis horas, quanto oito. O sol não havia saído e o tempo parecia a pasta acinzentada do sabão que ela frequentemente fazia no tacho colocado do lado de fora da casa e com o qual lavava os teréns da cozinha.

E a jornada prometia, com a faina de matar porco, que se dava, pelo menos, a cada dois meses.
Até parecia que os bichos desconfiavam: era um bulício só nas cevas e galinheiros. Deve haver algum anjo da guarda encarregado de lhes avisar sobre as desgraças anunciadas. Ou eles não teriam aquele comportamento alvoroçado.
Pergentino, o marido de Maria, preparava o borralho com a palha de café a queimar, a fim de fazer o café da manhã.
Na sua casa de roça, não havia muita distinção em quem fazia a primeira refeição do dia. Aquele que primeiro pulasse da cama tratava dos bichos de terreiro; o outro ia para o fogão. E foi isso o que se deu naquele sábado.
As crianças, seus três filhos – dois meninos e uma menina –, mais dois sobrinhos que vieram passar uns dias na folga da escola, só acordariam um pouco depois, para acompanhar a lida. Isto era como uma diversão para eles.
Criança de roça não tem o sentimento pelos animais que têm as crianças da cidade, que só os conhecem por fotos, filmes e programas de tevê. Como estão diuturnamente com eles e aprendem com os mais velhos o uso que há milhares de anos o ser humano faz dos bichos, não sentem pena ou se mortificam com o sacrifício de alguns para o sustento da família.
Assim matar porco, matar galinha, cortar a cabeça do pato, que sai esguichando sangue pelo terreiro em desorientada carreira, não provoca horror ou repugnância. Felizmente ou infelizmente, os bichos estão aí para que deles se tire o proveito e o paladar.
Até mesmo o gato e o cachorro, que pretensamente são os bichos de estimação, não merecem a estima que os citadinos lhes devotam. São mais bichos domésticos, que compartilham espaços comuns, sem que sobre eles se derrame a quantidade de afeto e carinho que se vê nas casas e nos apartamentos das grandes cidades. E ninguém fica mais ou menos humano ou desumano por tal tipo de comportamento.
Quando, após o café da manhã, Pergentino se dirigiu à ceva para escolher o capado a ser abatido naquele dia, as crianças já haviam acordado e correram todas para ver o início da função.
O abate do animal era o mais simples possível, sem sofisticação e com as dores normais que os animais padecem para que, após algum tempo, se transformem em costelinhas, carrés, lombos, pernis, chouriços, torresmos, linguiças e outras delícias, que poderiam ficar guardadas, mergulhadas na gordura do animal, numa grande lata. E serviam para o consumo durante mês e tal, quando, então, outro leitão iria para o sacrifício.
Pergentino não perdia uma gota de sangue do bicho, que se debatia e grunhia desesperadamente, após ter a faca pontuda enterrada, de forma certeira, por sob sua pata dianteira esquerda, indo atingir diretamente o coração. O passo seguinte, também, por conta dele, era sapecar a pele, a fim de que os pelos fossem retirados, o que fazia com um banho de álcool, a que se ateava fogo com um palito de fósforo.
Neste momento, os meninos deveriam afastar-se ainda mais, para que não se queimassem com o porco.
Em seguida, seguia-se o descarne do sacrificado, com a retirada da pele com o toucinho, a separação das peças de carne, a extração dos intestinos que, depois de muito bem lavados com água corrente e limão galego, se prestariam a chouriços e linguiças. Apartava-se cuidadosamente a banha, a barriga para o torresmo, as partes terminais, como orelhas e pés, porque sempre havia a ameaça de uma feijoada num dia festivo, na comemoração de uma data especial. E Maria era exímia nesta parte da lida. Fazia-a com a rapidez e a competência que a prática lhe dera.
A tudo, as crianças acompanhavam com certo ar de espanto, porém sem medo ou horror. Sabiam que, daí a pouco, iriam comer um bom bife de porco acebolado, um pouco depois um saboroso chouriço cheio de pimentas e, mais um pouco à frente, linguiças que se desmanchavam na boca, após curarem no fumo do borralho, por alguns dias.
Por isso é que, na roça, esses bichos que se prestam à alimentação não tinham nome. Apenas os gatos e os cães mereciam tal distinção.
Lá para o fim da tarde, tudo já terminado, o terreiro limpo, as crianças retomavam suas brincadeiras normais, como puxar carrinhos de boi feitos de sabugos de milho, que cortavam imaginários morros imensos no montinho de areia junto à tulha. A menina voltava às falas e cuidados com suas bonecas de pano. E a vida seguia nos mesmos planos normais, naturais, previstos desde que, neste mundão desembestado, o ser humano começou sua trajetória e se multiplicou numa sucessão milenar, até os dias de hoje.
Hoje, em algum canto do país, Maria vai matar o porco, para a subsistência de sua família. E ninguém será mais ou menos humano ou desumano por isto.
Luiz Taquelim, Matar o porco (séc. XX),
em centroculturaldelagos.wordpress.com.

13 de outubro de 2011

POEMA DESESPERADO

é tão antiga essa nova dor que me estreita o peito
é tão velha tão obsoleta
que não é possível vivê-la por inteiro
se não a repartir igualmente com alguém.
além de tudo é tão nojenta tão abjeta
que já me parece vê-la enterrando-se a si própria
ou enterrando-me ainda cedo ainda antes de morrer.
e por ser tão negra tão megera
essa dor é muito mais que dor
é o vazio de sentir que não há mais com quem vivê-la.

Camille Pissarro, Castanheiras em Osny, 1873.

12 de outubro de 2011

TRÊS HAICAIS DESBORDADOS

1.
à margem da estrada
que dá no nada, vacilo
entre a carona e o suicídio.

2.
aguardo o trem da consciência
em paz
na estação enlouquecida da vida.

3.
a primavera chegou às 16h29min
de hoje, mas é como se estivesse
em mim morta desde sempre.

Camille Pissarro, Entrada da cidade de Voisins (1872),
Museu D'Orsay, Paris.

11 de outubro de 2011

POR UMA BOLA SETE

Só não parto sua cara, porque não sou parteiro!
Com esta frase estapafúrdia, Niquinho da Cremilda, baixinho de metro e meio, deu por encerrada a discussão com Nicão da Tonha, palmeando os dois metros, durante uma partida de sinuca no bar do Enéas, bem no centro da vila, a qual discussão tinha como raiz e fundamento o jogo entre o Soca-Terreiro e o Boa Esperança, times da derradeira divisão do campeonato brasileiro de futebol de várzea, naqueles idos de mil novecentos e dom João caroço.
Cada um defendia as cores de sua paixão: Niquinho, veloz, era o centroavante rompedor, enfiado na defesa; Nicão era o beque de espera, tipo assim de leão de chácara da defesa do Boa Esperança e cuja cara enfezada espantava mais que as caneladas distribuídas em quem se aventurasse em seus domínios na grande área.
Depois daquela frase lapidar, colocou o taco encostado à parede, quis saber quanto devia ao dono do botequim, porque não gosto de dever a ninguém, nem ao meu pai, pagou a conta e saiu bufando feito uma locomotiva a vapor, a resfolegar na saída da estação.
Não houve um que não se risse de quase rolar pelo chão com o destempero do baixinho.
Ele e Nicão – ambos Antônio de papel passado e água de batismo – eram amigos de longa data. Desde meninos frequentaram o Grupo Escolar Marcílio Dias, no alto do morro, na mesma série, com as mesmas professoras. Faziam os poucos trabalhos extraclasse juntos, na casa de um e de outro.  Quando adolescentes, chegaram ao cúmulo de se apaixonarem pela mesma menina de tranças duplas do final da rua do matadouro, a Tininha, filha de Januário e de dona Deolinda. Só não se casaram com ela, porque não era possível. E também Jorge Amado ainda não havia publicado Dona Flor e seus dois maridos. Aí Tininha resolveu entregar seu coraçãozinho tímido e desanuviado para o Duardo, filho do dono da sortida venda de tecidos e aviamentos perto da Praça do Sabiá.
Os dois seguiram seu companheirismo e agora, beirando os trinta, já eram tidos na vila como solteirões convictos, que viviam de frequentar a guaxa de Bom Jesus do Itabapoana, atrás das damas de preço acertado e cheiro de leite de rosas, que facilitavam seus guardados e pertences a uns e outros.
Só não concordavam em nada, quando o assunto era futebol, começando da primeira divisão do Rio de Janeiro, cujas partidas ouviam pelo rádio rabo-quente da marca Lancaster na venda do Argemiro, em volta do vidro de pés de moleque, até a rivalidade minúscula de Soca-Terreiro, da Fazenda do Jacó e sua camiseta listrada de azul e branco na vertical, e Boa Esperança, da fazenda do mesmo nome e seu uniforme grená com amarelo em listras deitadas. Aí não havia acordo, não havia companheirismo. Era cada um com sua opinião inabalável nas coisas inúteis da bola rolando, da cor da camisa, da bola que entrou ou não entrou nas traves de bambu de rede imaginária, porque ela triscou na moita de vassoura, porque não triscou, esbarrou foi na touceira de guiné do lado direito da trave. E assuntos assim eram discutidos até a próxima partida, até a próxima batalha campal em que, às vezes, se transformavam aquelas brincadeiras simples de gente simples do interior.
Por isso é que todos riram como cobertas velhas sendo rasgadas do destempero de Niquinho e chegaram até a calçada do bar a chamá-lo de volta, deixe de bobagem, homem, vocês são amigos desde o berço, são até irmãos de leite. De fato, um havia mamado na mãe do outro, porque a sua secara o leite bem durante o resguardo e ele correria o risco de não ver os são-joões vida afora.
Nicão que, fora do campo de jogo, era praticamente uma dama, como diziam os amigos, apesar do tamanho descomunal para aqueles tempos, ria que ria, sem se sentir ofendido, porque sabia que, daí a pouco, lá viria Niquinho se retratar, dizer que  tinha perdido as estribeiras, subido nas tamancas, por bobagem, que a nossa amizade vale mais do que tudo na vida, cê pode ter certeza disso, Nicão. E tudo voltava à paz, com a condição de que não voltassem a falar do pênalti marcado/não marcado, da bola que entrou/que não entrou, do placar final da última pelada disputada aguerridamente, daquele miserento juiz que não vê nada.
Nem bem chegou à esquina da venda do João Mestre, cinquenta metros adiante, a cabeça mais fria, Niquinho resolveu voltar, com a cara de tacho de sempre, a pedir desculpas ao amigo e aos demais que sapeavam o jogo de sinuca, ao Enéas, que, rindo da diatribe do baixinho, liberou uma rodada de Matinha para todos, em sinal de paz selada e molhada no gole da branquinha.
E Liberdade, naquele dia, viu evitada uma tragédia de consequências catastróficas: Niquinho da Cremilda e Nicão da Tonha trocarem de mal por uma bola sete encaçapada no meio, seguida de suicídio na caçapa do fundo, que dera a vitória ao grandão, que logo traçou paralelo com o jogo do domingo anterior com a vitória de virada do glorioso Boa Esperança de grená e amarelo, sobre o não menos glorioso Soca-Terreiro de azul e branco, feitinho um céu encarneirado de nuvens.

Foto de Gilson Camargo, em lisandronogueira.blogspot.com.

10 de outubro de 2011

EM QUALQUER ESQUINA

em qualquer esquina insólita do rio de janeiro
a morte não é apenas um pressuposto lógico
é uma tática de conversão da vida
 – esse aparatoso armamento bélico –
em possibilidade concreta
de inexistir:
basta um passo em falso
uma inocência boba
e tudo estará completo...

Paul Klee, Rodovias e atalhos, 1929
(imagem em sai.smu.su).