30 de dezembro de 2016

FELIZ ANO NOVO!


Desejo aos amigos leitores que 2017 não seja a catástrofe que se anuncia. Feliz Ano Novo!

Réveillon em Icaraí, Niterói (foto do autor).

12 de dezembro de 2016

ILUSTRE PASSAGEIRO

(Para Flávio e Ronaldo Mello, primos.)

Veja, ilustre passageiro,
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem ao seu lado.
E, no entanto, acredite,
Quase morreu de bronquite:
Salvou-o o Rhum Creosotado.
Com quinze anos, viajei ao Rio de Janeiro pela primeira vez, na companhia do Pedro Nunes, amigo da família, a quem fui confiado.
Já lhes contei esta história possivelmente em algum texto por aí, mas as lembranças são como galinha ciscando no terreiro, bicando freneticamente o chão, à procura de bichinhos para comer.
Por isso, estou voltando à mesma cantilena de outrora, a fim de atender essa galinha bicante da memória.
Menino quase inocente do interior, que apenas conhecia como maior cidade Campos dos Goytacazes (Não concordo, absolutamente, com esta grafia esdrúxula!), cheguei ao Rio, entretanto, sem muitos deslumbres. Nunca fui de me assustar com as coisas do mundo, apesar da minha origem.
Por essa época, o Rio de Janeiro ainda era uma cidade quase cordial. Talvez o fosse, pois meus tios João e Juraci, em cuja casa me hospedei, me deixavam passear à vontade, dando-me, apenas, as orientações geográficas, para que não me perdesse no emaranhado da cidade grande. Jamais me alertaram para qualquer problema de segurança, violência ou esperteza dos cariocas.
Pude, assim, a bordo da minha pouca idade, andar de Botafogo, onde eles moravam à Rua da Passagem, para Copacabana, pelo Túnel Novo, caminhando, flanando, sem o menor assombro ou contratempo. Tanto na ida, quanto na volta.
Às vezes pegava ônibus, como quando fui conhecer o maior edifício da América do Sul à época, o Avenida Central, por recomendação de outro tio, o José Catarina, também morador de Botafogo, que gostaria de saber a minha reação – eu que sempre vivera ao nível da vargem e do tabual –, ao olhar pela vidraça do corredor do trigésimo sexto andar o burburinho lá embaixo. Embora não tivesse achado nada tão espantoso, para não o decepcionar, inventei vertigens e tonteiras que não tive. Ele ficou muito feliz em ter podido me proporcionar aquela experiência frenética e inusitada.
Mas o Rio de Janeiro certamente marca qualquer moleque que o vê pela primeira vez. No entanto, entre a aventura de ir ao Pão de Açúcar num final de tarde e o gosto da pizza da Pastitália, alimento que estava entrando em moda, confesso que me marcou mais o gosto da pizza: achei-o por demais ácido e vaticinei para os primos Apolônio, Flávio e Ronaldo, que me levaram a experimentá-la, que aquilo não daria certo. Talvez aí estivesse enterrada qualquer futura pretensão minha de me tornar profeta de alguma coisa.
Por vezes ia sozinho à praia de Botafogo, a pé e orientado por tia Juraci a não entrar n’água, já poluída àquela altura, só para me relembrar do mar, que conheci, ainda muito menino, em Guaxindiba, no extremo norte do estado. E não deixei de tomar banho na praia de Copacabana, desta vez acompanhado pelo Apolônio, que me apresentou ao “caixote”: fui lançado aos trambolhões de volta à areia, por uma onda mal-humorada. Naquele momento mesmo, decidi que havia total incompatibilidade minha com o mar, tanto que pouquíssimas vezes na vida me aventurei ao desconfortável banho de água salgada. Definitivamente, o mar não é minha praia.
Ao contrário, o cinema era a minha praia. Andei com os primos e, por vezes, sozinho a conhecer diversas salas de cinema, a grande diversão da época. Havia mesmo uma frase de propaganda que apregoava “Cinema é a maior diversão”. E eu acreditava nisso piamente. O Rio de Janeiro, por aquele tempo, tinha excelentes, maravilhosas salas cinematográficas: Roxy, Rian, São Luís, Azteca, dentre as melhores.
Ao Azteca, que ficava no Catete, fui certa noite com o Apolônio, para assistir ao clássico O homem que matou o facínora, com John Wayne, James Stewart, Lee Marvin e Vera Miles, nos papéis principais. Tomamos o bonde em Botafogo e descemos próximo ao cinema. Este bonde ainda trazia a velha propaganda do Rhum Creosotado com que iniciei este texto.
Ao entrar no cinema – filme com classificação para dezoito anos –, vestido com um paletó emprestado de um dos primos, para parecer mais velho, e com o respaldo de um buço que me começava a sujar a platibanda do beiço, tive de fazer cara feia, por recomendação do Apolônio, e aguentar calado que, à pergunta do bilheteiro por nossa idade, ele respondesse:
- Tenho dezoito anos, e meu primo também.
Fiz cara de poucos amigos, conforme previsto no manual do homem latino-americano, e adentrei a sala de projeção. Até hoje me lembro do filme. E nunca consegui entender por que motivo ele tinha a classificação de dezoito anos.
E vi muitas outras coisas naqueles meus quinze anos. Até na Rocinha fui parar, por equívoco da tia Juraci ao tomar o ônibus no Jardim Botânico, para voltar a Botafogo. Lá no fim da linha – a favela já tinha fama de perigosa -, descemos do ônibus que chegava e entramos de imediato no que partia.
Alguns dias após, voltei para casa em Carabuçu, numa viagem de aventura bolada pelo Apolônio: por via férrea. Fomos até a estação da Leopoldina comprar passagens para Santo Eduardo, vila próxima â minha. Todos os primos viajariam juntos. Era tempo de carnaval. No guichê, o bilheteiro disse que não havia mais passagens. Apolônio chamou o homem reservadamente e conseguiu os bilhetes. Teve de molhar a mão do corrupto que os escondia, para faturar um por-fora. Saímos à noite e chegamos ao destino pela manhã.
Desse tempo para cá, venho me sentido um passageiro ilustre da vida, com todos os percalços, apertos e afrontamentos comuns a quem vive. Nunca tive mau humor. Nem também fui um deslumbrado inconsequente. E procurei estar constantemente no limite daquilo que me pareceu sensato. E, apesar de ter vivido a época da porralouquice e do desbunde, ainda que parecesse um doidão, sempre viajei com passagem comprada, no banco da janela, para melhor poder apreciar a vista. Até hoje não sou o que bebe o Rhum Creosotado. Sou o passageiro ao lado. E tenho ido regularmente bem.

Cine Azteca, na Rua do Catete (imagem em pinterest.com).

1 de dezembro de 2016

A ENCOMENDA FICA PARA DEPOIS


          Sebastião Seleiro estendeu o braço avantajado e recolheu o pito na beira do cocho. Tirou uma baforada profunda e gostosa e mirou, no ar, a nuvenzinha de fumaça formando morrotes acinzentados. O céu azulinho, azulinho, limpo de doer nas vistas, repetia-se enfastiadamente no depois do almoço já há bem uns sessenta dias, prenunciando um verão danado de calorento. Para ele, o vaivém de sol e chuva era vital, não que vivesse diretamente da roça, dessa ou daquela cultura, senão do próprio encharcar a terra, verdejar o pasto, florescer a plantação, frutificar o pé de fruta, comerem os homens o alimento do chão puro e daí tirarem seu sustento. Isso, o que o deixava feliz. No mais, era ele mesmo tocar a vida na sovela, nas agulhas, nas linhas e no couro; fazer um dinheirinho rendido miúdo para o fumo, a roupa do corpo e uma ou outra besteirinha que lhe pudessem passar pelo juízo. Enfim, coisa pouca para os seus sessenta e tantos anos, naquele arremedo de felicidade em que desconhecia os melhores do conforto de um tal de progresso. Ali onde estava, no sombrão generoso da tulha, sentia no bafo da viração o mesmo gosto de estar como uma peça a mais no desempenho de sua função nesta vivência. Sabia perfeitamente que não faria falta grande, caso morresse, mas ficava feliz quando, num dos acessos de tosse gosmenta que o atormentava vez e outra, ouvia sempre Aurélio, o patrão, brincar:
        - Cuidado, hem, seu Sebastião, cuidado com essa catarreira toda, que ainda lhe entope os peitos e eu fico sem as cangalhas novas para a tropa!
        E ria o velho, grasnando feito um marreco esganiçado. A cusparada amarelo-cinzenta sempre complementava essa descontração com a doença, nem de todo atinada, e, de mais a mais, incapaz de vergar aquele negro grandalhão.
        Nessas ocasiões, vinha-lhe a lembrança de tempos morridos e enterrados em que podia abusar de uma pinga mais braba, de uma afronta séria em baile a candeeiro, ou mesmo de uma virada de noite na cata de satisfazer os desejos da carne. Mulher, naqueles ermos, padecia de falta. Acaso Nora não estivesse nas boas com o Rufino, dava para sentir a fungação dela debaixo da sua pessoa, numa sensação de gente e cama que lhe ficava no ouvido durante mês e tal, esquentando o corpo no gozo desses barulhos. Casar com ela é que não quis, dado que a mulher não segurava os guardados, quando via um corte de tecido, um vidro de extrato, um sapato novo. Preferia era levar a situação nos moldes em que estava. Além do mais, esse negócio de casamento não era de seu namoro, de sua preferência. Agora, porém, estava ele ali, sem casa, sem mulher e sem ter feito filho que lhe pudesse ajudar. Dormia no que dormia: um estrado de madeira coberto por colchão de capim, na tulha de arreios e cangalhas. O cheiro ativo do couro que o nariz não mais sentia como no início, cambaleões nas paredes, ratos a passarem de noite e algumas aranhas, bichos que não o incomodavam muito; antes, faziam-lhe companhia. Mas também sabia dar um fim, em pouco tempo, a um montão deles. A tulha da sombra era essa que o guardava, nas horas de folga, no sono e nos pensamentos de coisas que não acontecem mais.
        No costurar dessas cogitações, se levantou molengo do tamborete e foi buscar no interior do espaçoso salão dos couros a continuação do serviço encomendado há algum tempo. Passou a mão nas ferramentas, no couro e na armação da cangalha, a quarta a ser possivelmente aprontada naquela semana: serviço de requerer perícia e arte, marca registrada do seu ofício. E voltou para fora, onde tinha uns apetrechos auxiliares, a tempo de cumprimentar, com um oba garganteado e um aceno de mão, Zé Durval, que passava sestroso na besta baia de sua predileção. Ainda imaginou o velho o trabalho que tivera, anos passados, na feitura de semelhante tarefa para o fazendeiro da Forquilha. Este, agora, enricado com o café, mas a mesma consideração de sempre.
        Naquele tempo, as dificuldades se avolumavam nas fazendas como madeira cortada em beira de estrada. O plantio do café requeria derrubada de mata e uma trabalheira danada no estabelecimento da terra de cultivo e no cuidado da cultura de sustentação, normalmente milho. É que o cafezal, por essa época, só começava a produzir economicamente a partir do sétimo ano de plantado, e o milho tinha a incumbência de manter estável a situação das fazendas. Tanto é que a tropa de burros da Forquilha foi tendo os arreios trocados espaçadamente, à medida que o dinheiro entrava e sobrava para a compra do material necessário. No intervalo do seu serviço, Sebastião ajudava na quebra do milho, o que lhe garantia casa, comida e um salário espremido, como sempre. Foi aí que conheceu Nora.
        Negra bonita, durinha nas carnes, olhos de jamelão, Nora não pôde fugir à lábia de Rufino, vendeiro montado em terras da Forquilha e fornecedor de suprimentos os mais diversos para as necessidades daqueles arredores. Nora, explodindo sensualidade pelos poros, coisa rara em ocasião de mulheres cheias de pano, entrou pela primeira vez na venda para comprar pimenta-do-reino, e dali só saiu quando a primeira briga separou os dois. No quarto dos fundos, ela se estabeleceu como dona da casa, fazendo o amásio construir cozinha e sala, além de uma privada na beira do valão da laje, que roçava a casa. Nessa vida, de farinha de mandioca, carne seca, feijão e arroz, entremeada de verduras e legumes à vontade, Nora não viu motivos para voltar ao rancho de sapé, um quarto de légua estrada acima, onde vivia com sua família, num aperto de espaço e de barriga. E foi seguindo os desejos e taras do Rufino que ela começou a se aprimorar, a se empinar, a se alisar, o que despertou nos demais homens a vontade de deitar com ela. E as desculpas para ver a negra bonita repetiam-se, na venda, com uma frequência impertinente, nos dias de sábado, quando muitos se juntavam para as compras, o papo, a cachaçada, o joguinho de cisplandim, que lá todos diziam cisprandi.
        - Ô Rufino, pede lá a Dona Nora mais uns bolinhos de manjoca. – O tratamento respeitoso a esconder pensamentos arrevesados.
        E lá vinha ela, apertada nas roupas, lenço na cabeça, luzindo a banha de porco, trazendo um prato de bolinhos de mandioca, uma das suas várias especialidades na cozinha.
        - Boa noite, Dona Nora! Como tem passado? – perguntavam alguns, comendo-a com os olhos, a boca cheia de bolinho.
        Umas talagadas de cachaça já faziam a festa, quando Sebastião percebeu, todo satisfeito, um rabo de olho procurando por ele no meio daquele pessoal todo.
        - Me adescurpe, Dona Nora, mas a senhora tem lá umas tripinha de porco frita? – Sebastião procurou um meio de fazer a mulher do Rufino retornar à venda. – Bota mais dois dedo aí da branquinha!
        Se a história não envolvesse dinheiro, Rufino realmente não percebia. E foi o que aconteceu naquele momento: Nora piscou maldosamente para Sebastião, agora um potro fogoso a não caber no espaço entre a porta da frente da venda e o balcão. Lambeu aquele meio copo de cachaça, cuspiu uma goma arredondada que nem baleba e disse, disfarçado:
        - Vô mijá, cambada!
        No que falou, tomou o rumo do valão, passando no beco entre a casa da venda e a grande tulha de madeira. O terreno descaía quase uns dois metros até chegar à água barulhenta que corria sobre uma grande laje de pedra, espremendo-se ora aqui, ora ali. Se o acesso à tulha, pela frente, não demandava mais de dois degraus de madeira maciça, nos fundos as vigas de sustentação quase se emparelhavam a Sebastião em altura, antes de entrarem na terra úmida. Sebastião, palmeando a parede da venda para se aprumar, a cachaça já a lhe entortar as coisas, passou defronte da janela da cozinha e viu Nora entretida no preparo da tripa de porco.
        - Capricha no tempero! – Exclamação inesperada que fez a mulher voltar-se nas ancas... E que ancas! Susto de nada, coisiquinha à toa, e abriu-se ela num sorriso branquinho de dar gosto.
        - Se ocê quisé, faço um molho caprichado. Qué?
        Baba, Sebastião, baba! Tens aí nas fuças uma das negras mais bem aparelhadas de carne de toda essa zona. Baba, desgraçado!
        A fim de provocar ainda mais, Nora abaixou-se para pegar alguma coisa no armário, fazendo projetar em direção dos olhos pidões do admirador seus avantajados.
        - Ô, essa menina, será qu’ocê num esqueceu de lavá essas tripa direitim? Vamo lá no valão, vamo!
        Se há alguém que provoca e assume a provocação, esse alguém é Nora. Nem precisou Sebastião ser mais claro, mais objetivo, para ela largar a bacia de tripas em cima da mesa e sair da casa, limpando a mão no avental de saco de farinha de trigo que lhe contornava os quadris. E foi só ganhar o beco para receber na cintura o bração musculoso e rijo do seleiro que, ato contínuo, cheirando-lhe o cangote, deu um suspiro fundo de macho. O que se passou entre os dois embaixo do assoalho da tulha é dispensado narrar. Bastasse ver o ar vitorioso da mulher, olhos amormaçados, remelexo assossegado. Sebastião, ele o negro seleiro, evaporou o álcool acumulado naquele princípio de noite e voltou apostando alto no cisprandi.
        Chapéu descaído em riba dos olhos, entrou na venda sem coragem de olhar para Rufino. Meio de banda, assim como quem não quer nada, pediu mais aguardente, sem exagerar no tom da voz, agora amaciada:
        - Outra dósia, Rufino. E vê lá se as tripa já envém.
        De sua boca não sairia nunca a menor menção do corrido, não fosse, dias depois, Nora ter dado com a língua nos dentes, com uma companheira de lavagem de roupa na beira do corgo, onde elogiou as vantagens do seleiro no isso e no aquilo. Vai daí que essa tal companheira não se preocupou em fazer segredo para o marido, amigo de Sebastião.
        - Tô sabeno, home, to sabeno das suas estripulia.
        - Ques estripulia, sô?
        - Cacilda me contô que istrudia ocê passô a Nora na cara.
        - Sê besta! Nem fala num trem desses, sô!
        - Vai querê negá? Inda ela disse que a Nora inté gavô munto ocê, que fez, que aconteceu, lá na tulha da fazenda.
        - Boca de siri, rapaz! Faz de conta qu’ocê num sabe de nada!
        - Ah, é! E cum’é que ela é? Das boa?
        - Ques coxa, sô! Ques carne! Quem tá bem servido é o desgraçado do Rufino!
        - Agora, ocê tomém, uai!
        A história a partir daí deu pano para as mangas. Os encontros se amiudaram até que o vendeiro, num aperto dos intestinos, pegou os dois dentro da privada de madeira em plena prática de besteira: o traidor com uma perna pendurada pelo buraco por onde se faziam as necessidades. Tempo teve Sebastião de sumir, o que não aconteceu com Nora. Essa, coitada, levou uma surra de fumo de rolo de ficar de molho em água de sal e vinagre, as costas que eram vergões só.
        Sebastião, ao saber dos maus tratos sofridos pela amante, se arvorou em valente e quis ir tirar satisfações com Rufino, coisa, aliás, que não passou da soleira da porta do quarto, barrado que foi por Marcelino, ouvinte de seus particulares. Aí é que ele ficou mais brabo ainda.
        - Eu ainda vô às forra! Eu quebro a cara daquele cachorro! – era o que sabia dizer ao amigo, que retrucava:
        - Larga disso, dexa de bestera, Tião!
        Amainado aquele espírito de fera, a vida voltou ao normal para o seleiro. Porém nem de longe lhe passou pela cabeça procurar Nora, trancada a sete chaves, na casa dos fundos da venda, de não arredar o pé, nem para ir lá fora, sem que Rufino ficasse de olho em seus passos. Se havia situação que prometia durar para sempre, era essa. Soube, entretanto, a mulher, nos tremeluzes do quarto e nos aconchegos das cobertas, reconquistar aos poucos sua liberdade. Até que uma noite, mais desajuizada ainda, foi parar num baile em casa de Antônio Fuleiro, com desculpa de ir ver a mãe.
        Quando Nora chegou, o espanto de Sebastião, que lá se encontrava para uma dança, fez seus olhos se arregalarem como se estivesse vendo o próprio diabo. Ora, veja só a danada da negra procurando chifre em cabeça de cavalo! Depois daquele caso todo, ela ali, cheirando a extrato, em roupa nova, e o corno lá na venda a despachar um quilo de açúcar para o Zé Pedro, duzentos e cinquenta gramas de bicarbonato para o Arcionílio, e outros pesos e outras medidas para os fiados do borrador. Veja só o desplante da mulher, bonita que ela só, se dirigindo para o embaraçado Sebastião, trêmulo como vara verde:
        - Ocê tomô um chá de sumiço, meu nego. Vim dançá uma parte com ‘cê.
        Nada mais faltou ao embaralhado negro para encher-se como biju. No volteio da sanfona de Astolfinho, saíram os dois contando a passos o salão da casa do Antônio Fuleiro, como se fosse em dia de festa. A música ainda mais gostosa no calor e no cheiro da Nora.
        - Senta o sarrafo, Astorfinho!
        A briga arrumada com a chegada do Rufino, entrando de supetão no baile, a faca de cortar salame na cinta, foi de ser contada ainda por muito tempo. Sebastião mal teve tempo de desviar a mulher para o lado dos músicos e o facão tiniu no ar, indo cravar-se num dos esteios da sala. Pegando de surpresa o traído, por um segundo desarmado, varejou-lhe na cara o candeeiro mais à mão, que, por um triz, não o transforma numa tocha humana. Desnorteado com a pancada, Rufino apanhou que nem boi ladrão, sendo corrido, ainda, escada abaixo, para desmoralização do seu nome e da sua venda, posteriormente conhecida como Venda do Capão.
        Para quem não tem mesmo um pingo de vergonha na cara, difícil não foi, corridos uns sete dias do acontecido, ir até a choça da mãe da Nora, implorar pela volta daquela que lhe esquentava o colchão e preparava os bolinhos da venda. Mas, para que sua cantilena não caísse em desprestígio, levou uns presentinhos, “coisa à toa, dona Marieta”, com que conquistou sogra e filha. E melhor argumento não houve.
-o-o-o-o-o-o-
        Tudo morrido e enterrado, pensava o velho Sebastião Seleiro. “Águas passadas, coisas do tempo do cagá de coque”.
        Puxou uma tragada mais longa a ver se voltava, outra vez, no tempo. O peito fracassado misturou, lá dentro, a fumaça e a catarreira grossa que já o fizera cuspir sangue mais de uma vez. Faltou-lhe o ar. E, num sorvo pastoso, uma tosse empesteada botou para fora placas de sangue. Mais tosse a fazer-lhe os olhos esbugalhados pelo esforço. Mais sangue. Pedaços de pulmão. Menos ar. O rosto inchado, a veia do pescoço dilatada, a ronqueira na caixa do peito. Tosse, tosse, tosse!... Golfadas de sangue e farpelas do órgão esbagaçado. Menos ar. Mais tosse. E o corpo tomba sobre a armação da cangalha, a sovela varando-lhe a bochecha esquerda com um filete de sangue.
        Aurélio Pereira, o patrão, montado em seu burro de sela, passa pelo quadro, que não entende:
        - Tirando uma pestana, hem, seu Sebastião?! Assim nem no dia de São Nunca essas cangalhas ficam prontas!
          E bate a porteira atrás de si, rumo da vila.

Cangalha de couro (em selariamarlex.com.br).