31 de agosto de 2011

CASO MÉDICO-GRAMATICAL

(Dedicado aos colegas que passaram pelos bancos do Instituto de Letras da UFF e aos meus muitos alunos da extinta e saudosa FACEN.)


O sujeito resolveu procurar socorro médico, porque estava com um acento grave atravessado nas cordas vocais, o que não lhe permitia emitir fonemas sonoros.

O médico que o atendeu, depois de examinar todo o seu conteúdo sintagmático, opinou que o problema era mais de acento agudo, pela posição do objeto direto no local. Mas, se era um objeto direto, como ter problemas com acento agudo, foi o que o sujeito pensou.

Como o médico alegou que, no momento, estivesse cheio de interjeições para entender, mandou que o enfermeiro fizesse sua classificação sintática prévia:
- Nome completo?
Com dificuldade, falou:
- Sujeito Composto Posposto ao Verbo.
O enfermeiro, cuja formação não era lá essas coisas, para abreviar, anotou apenas: Sujeito Simples, o que, talvez, tenha gerado as orações consecutivas posteriores, com todas as implicações fraseológicas.
- Onde você mora?
- Num conjunto de orações coordenadas e subordinadas de um texto antigo.
- Barroco ou romântico?
- Realista.
E continuou fazendo questões de retórica, sendo respondido por frases curtas, ora verbais, ora nominais, com alguns anacolutos e hipérbatos. O Sujeito Composto não estava concordando muito com aquele questionário prévio, pois também tinha suas interjeições a resolver.
Ao fim de um longo período composto, cheio de orações intercaladas, quando o médico voltou, já encontrou o sujeito quase oculto. Resolveu, na tentativa de remover o acento e para reanimá-lo, aplicar-lhe uma dose de hiperbibasmo, seguida de hipérbole equilátera, que não surtiram efeito imediato na sintaxe posicional. O colega que veio ajudá-lo, sem concordâncias e subordinações, disse que este último recurso, da área de matemática, não se aplicava ao caso sujeito e viu aí uma mesóclise na altura do núcleo do predicado, que deveria ser extraída com raiz etimológica e tudo.
Passaram, então, os dois profissionais a pospor e antepor pronomes oblíquos ao predicado nominal, sem obter grandes regências. Nesse momento, o enfermeiro sugeriu que tentassem uma prosopopeia camoniana. Ambos olharam para ele e sorriram debochadamente, como se não acreditassem em tropos tão antigos. Nem mesmo acreditavam em metáforas machadianas ou metonímias modernistas, quanto mais em tal prosopopeia. A solução deveria ser uma prótese radical: aplicação de doses maciças de antonomásias e onomatopeias do receituário concretista.
O pobre Sujeito Composto estava reduzido apenas a uma locução vocabular, perigando chegar a sujeito inexistente, quando começaram a conjugar verbos irregulares, transitivos diretos e indiretos em sua estrutura morfológica. Sem sucesso, resolveram, então, removê-lo para uma análise sintática estruturalista, com achegas funcionalistas, na tentativa de reanimar sua carga semântica.
Nada dava certo! É que os médicos não tinham formação gramatical tradicional, nem mesmo transformacional, e eram incapazes que avaliar os sintagmas e as sequências que meteram o tal Sujeito Composto em problemas chomskyanos, que não seriam resolvidos jamais por semantemas e morfemas, todos já arcaicos para o caso.
Foi quando resolveram chamar um velho professor de gramática que, olhando a estrutura frasal apresentada, deu a solução:
- Retirem a crase! O sujeito pode até ser composto e posposto ao verbo, mas nunca se servirá de crase, bando de solilóquios retóricos, apedeutas linguísticos!
Os médicos, depois se apurou, eram neologistas, ainda aferéticos, sem registros nos vocabulários ortográficos e na gramática formalista. E estavam trabalhando naquele ambiente fonológico, sem as devidas exegeses ou propedêuticas. Vá lá se saber o quê! Processados, foram condenados a ser incluídos no rol do Appendix Probi.
 


Imagem em sebodomessias.com.br.

30 de agosto de 2011

NÃO SOU POETA

não sou poeta
apenas faço versos
às vezes com certo ritmo improvável e sonoridade estranha
todos porém despretensiosos
no varejo e no atacado
por isso mesmo eles não validam meu ser que diz
nem verbalizam meu ser que é
por diversas suas naturezas
eles também apenas são
e não ultrapassam os limites minguados
a que se confinaram nesses tempos hodiernos
em vício e em virtude de não comunicarem
(apenas tentam)

Henri Matisse, Natureza morta, 1913.

29 de agosto de 2011

PEQUENAS MISÉRIAS (II)

uma dose de cana
um torresmo de tira-gosto
um troco miúdo
uma eleição de quase em quase anos
um improvável horizonte na tela apagada do televisor
um chuveiro que pinga insistentemente durante a madrugada
as prestações em atraso
um pigarro seco e um carro de mentirinha
povoando o sonho dos coitados
um trago no cigarro
e nada mais na fumaça dos enganos
e o que de bom vier
... só para o ano
Imagem em cachacapoesia.com.br.

27 de agosto de 2011

GRAMÁTICA ERÓTICA

Pode-se imaginar que não haja nada mais desestimulante, relativamente ao sexo, do que gramática. Pense em todas as regras da gramática prescritiva e suas famosas exceções e o desejo sexual. Nada a ver, não é mesmo?
No entanto não é bem assim!
Por exemplo, na linguagem jurídica, uma transa transforma-se em conjunção carnal, como é comum encontrar-se em textos de processos. E onde você mais ouviu falar em conjunção? Isto mesmo: nas aulas de gramática!
Vê-se, por aí, então, que a gramática não é propriamente um broxante linguístico. Aliás, a língua que se estuda pode, numa associação safada de ideias, virar um efetivo órgão de prazer. Há até uma definição de humor fescenino para língua, que não sei se você conhece, mas que não me custa repetir, na qual se misturam os dois sentidos: língua, órgão sexual que os antigos usavam para falar. Perceba que, cada vez mais, a gramática dá liga, dá jogo.
Por isso é que fui levado a fazer uma correlação entre o termo gramatical e a expressão jurídica.
Comecei imaginando o que seria uma conjunção carnal aditiva. Com toda a certeza, seria o famoso e básico papai-e-mamãe (ou são-pedro-e-são-paulo, para outros), quando se junta isso com aquilo, e está feita a liga. Veja que, em gramática, o e aditivo também é referido como conjunção copulativa. Olhe a sacanagem instalada aí!
Uma conjunção carnal consecutiva, por exemplo, seria aquela em que há gravidez como consequência e que produz efeitos nove meses após.
Já a conjunção carnal explicativa seria a da tentativa de explicar o inexplicável: Isso nunca me aconteceu antes.
A conjunção carnal alternativa é a que ocorre entre um sujeito e uma escapadela extraconjugal, coisa um tanto perigosa, até mesmo com parceiro de mesmo sexo.
Por sua vez, a conjunção carnal concessiva ocorre entre iguais, que se concedem práticas extragramaticais, ou entre diferentes, desde que tudo concedido, nada forçado: Vem cá, meu nego! Sou todo seu!
A conjunção carnal conformativa é a que está conforme o previsto: marido e mulher, depois de anos de casados, conformados com o sexo: Não tem tu, vai tu mesmo!
conjunção carnal causal é aquela em que uma ideia, uma ação, causa a outra: Comeu, tem de casar!
Diferentemente, a conjunção carnal conclusiva estabelece a conclusão de um entrevero carnal, porque um/uma não quer mais; o/a outro/outra já partiu para uma nova relação. É a conjunção fim de caso.
A conjunção carnal temporal é mais ampla em seu sentido. Pode ser uma rapidinha no motel, ou no banco do carro; é uma conjunção mais longa, que gera direitos e deveres e, às vezes, filhos e pensão alimentícia. Antigamente gerava a tal teúda e manteúda, conforme a duração da conjunção. E até mesmo aquela que termina de modo violento, sujeito a temporais. Esta última situação acaba, normalmente, na Lei Maria da Penha.
A conjunção carnal adversativa, por sua vez, envolve relações sintáticas problemáticas. O parceiro, normalmente, passa a ser um adversário, devido ao status da conjunção e não quer mais saber do outro nunca mais. Ainda que esporadicamente tenham furtivo encontro. Como ex-cônjuges que ainda se pegam às escondidas, embora adversários no processo de divórcio.
Oposta a esta última, há a conjunção carnal integrante, que propicia a relação plena e satisfatória entre partes do enunciado sexual, fazendo sua integração perfeita, quase chegando ao orgasmo múltiplo, em sua fase mais eficaz.
Já no caso da conjunção carnal comparativa podem ocorrer duas hipóteses semânticas iniciais. Na primeira, dois parceiros iguais ficam comparando qual é o maior, por exemplo. Na segunda, os parceiros ficam comparando o prazer: Gostou? Eu gostei muito! E você? O que achou de mim? Sou melhor que ela/ele?
Semelhantemente a conjunção carnal proporcional é a que visa estabelecer proporção entre parceiros: baixinho com baixinho; gordo com gordo; alto com alto; bem dotado com bem aparelhado. Entre iguais ou diferentes, mas sempre mantendo a proporção, para que não haja prejuízo.
E, finalmente, a conjunção carnal final que é aquela que põe um ponto final definitivo em qualquer tipo de relação, sem que haja retorno: Pode procurar outra, que pra você acabou, seu traste!
Como você deve ter reparado, não dividi as conjunções carnais em coordenativas e subordinativas, porque, na hora do vamo vê, cada um é cada um e a posição é definida no momento, podendo variar durante a conjunção. Que também não vou chegar a me meter, com perdão da palavra, nesses pormenores! Cada um cuide de si!
A primeira Gramática da Linguagem Portuguesa,
de Fernão de Oliveira, séc. XVI.
Imagem: nocturnocomgatos.weblog.com.pt

26 de agosto de 2011

LOST CARUARU (Na década de 70)

em pleno centro de caruaru (PE)
perdido na feira
não encontro caruaru (PE-BR)
onde estará caruaru?
talvez fora dela ou dentro de mim
talvez dentro da folclórica imagem de caruaru
perdida imagem
no entanto do alto-falante das casas pernambucanas
vem um som superior que não me deixa encontrar caruaru
b. j. thomas repete por todos os sertões
oh me oh my

oh meu país colonizado

(Camilo Eduardo Tavares, Feira de Caruaru, 1932. arteeeventos.com.br)

25 de agosto de 2011

PEQUENINA

come flores roxas
rói livros
corre desajeitada pela casa
minha filha pequenina
ilumina os corredores da vida
Imagem em espacodothales.blogspot.com.
como uma estrela cadente
e vê-la passar
deixa um frio na boca do estômago
nunca se sabe se tal corrida
terá final feliz
mas todos adoram o alvoroço
daquela coisiquinha irresponsável
a semear ilusões em torno da gente


(Poema feito no início dos anos 80 para minha filha,
então com dois anos, postado hoje, data do seu aniversário.)

DONA SELMINHA SAMBA AOS SÁBADOS

Dona Selminha é o terror do escritório da firma sediada no Centro do Rio de Janeiro, na Rua da Assembleia, logo no primeiro prédio à direita de quem vai da Praça Quinze, aquele pretão.
Responsável pelos bóis, impõe ordens, exige comportamentos, atribui tarefas, como um marechal de campo em guerra declarada, o inimigo já submetido. Não quer saber de vacilos, de atrasos e desídias, o que deixa bem claro à equipe de cinco rapazes que voam pela cidade com suas motocicletas, a fim de cumprir rigorosamente suas determinações, em tempo hábil.
Indefectivelmente, está de terninho bem cortado, de cor neutra, cabelos amarrados em coque no alto da cabeça, sombra escura nos olhos, a fim de exagerar um pouco na seriedade dos seus bem fornidos quarenta e cinco anos.
Embora não tenha filhos, foi casada com o traste de um marido muito do sem serventia, que, num dia aziago de um agosto chuvoso há cinco anos, deu linha na pipa e foi baixar em outros cantos.
Ela ficou no ora veja, mas se deu por satisfeita na semana seguinte, porque era menos um a comer na sua mesa, a dividir a sua cama, sem proporcionar o prazer que deveria ter em casa, já que, no trabalho, é trampo desde que chega até não se sabe que horas, tudo conforme as exigências e as necessidades.
Armazém do Senado, onde Dona Selminha samba, localizado
na esquina de Rua do Senado com Gomes Freire, em 6/ago/2011,
No entanto, como nem tudo na vida de dona Selminha sejam apenas compromissos e aporrinhações com os motobóis, certo sábado resolveu conhecer a feira de antiguidades da Rua do Lavradio, encravada na boêmia Lapa, e chegou pela Gomes Freire. Ali, na esquina com a Rua do Senado, descobriu o Armazém do Senado e sua roda de samba de tirar defunto do IML com atestado de óbito. O Armazém do Senado vende bebidas e tremoços desde 1907 e já mandou para a emergência do Souza Aguiar muito fígado estropiado nestes mais de cem anos.
Saber se, até hoje, dona Selminha conseguiu chegar à feira é coisa difícil, pois foi caso de paixão ao primeiro ronco da cuíca na roda de samba. Agora, todo sábado sem chuva – pois a coisa se dá na esquina das duas ruas –, ela está lá, embalada a vácuo no seu vestido tubinho no meio da coxa, a deixar transparecer a calcinha asa delta mais escura, cabelos soltos precisando de um corte, fita larga a segurá-los na testa, requebrando e sacolejando as cadeiras num frenesi impensável na empresa. Ali, dona Selminha parece possuída e em nada lembra a mandona do escritório!
Pois foi no primeiro sábado deste agosto que um de seus subordinados diretos, o motobói Arlindo, a viu na batida do samba e não pôde acreditar. No meio da pequena multidão que se aglomera, desconfiou que fosse ela a coroa sapeca que só não ia ao chão no requebro, porque a roupa justa não lhe dava essa liberdade, não lhe permitia esse desfrute. Para se certificar de que era a própria, emaranhou-se por entre as pessoas, quase todas de copos à mão e cantando “sei lá, não sei; sei lá, não sei não; a Mangueira é tão grande...”, até que a pegou dando de cabeça para um e outro lado, de modo a balançar a vasta cabeleira ressequida, chegada numa tintura preta, como se fosse uma pomba-gira alucinada. E, embora fresca a tarde de agosto, tinha a pele marejadinha de suor.
- Dona Selminha! – foi o que Arlindo conseguiu dizer, observando o contorcionismo dela no samba, sem poder deixar de reparar no corpo ainda bem feito, nas pernas bem torneadas, nos joelhos bonitos.
Ela, com o sorriso mais simpático do mundo, retribuiu com um “oi, Arlindinho!” e aplicou-lhe dois beijos na face, como fazem os cariocas ao se cumprimentarem, sem em nada lembrar a chefe exigente do horário de expediente.
Arlindo não perdeu tempo – motobói é uma raça atrevida! –  e começou a trocar passes com ela, como que transformados em mestre-sala e porta-bandeira, e qual não foi sua surpresa, ao se dar conta que dona Selminha correspondia a todas as suas negaças, a suas sensuais insinuações de sambista, até ter coragem de segurá-la pela cintura, que ele sentiu firme em modelo de coisa trabalhada em academia.
Dona Selminha, um leve arrepio no corpo, retribuiu o gesto, contornando a cintura do motobói com firmeza. Em pouco tempo, estavam os dois ligeiramente afastados da aglomeração, combinando coisas, trocando seduções, que, sem mais aquela, passaram a beijos e amassos ao lado da obra de recuperação do prédio histórico em frente ao Armazém do Senado, inclusive com o risco de desmontar os andaimes de sustentação da fachada, tal a saliência do casal.
Dali para um hotelzinho acanhado na própria Gomes Freire não demorou cem passos. E Arlindo retribuiu a ela todos os recalques suportados nos dias úteis, com o vigor de seus vinte e poucos anos, pelo que dona Selminha ficou deveras agradecida, com promessas de estar naquela mesma esquina na próxima roda de samba. No entanto, para que não perdesse o cacoete de chefe, ao final, ao abotoar o sutiã bojo reforçado com arame, disse-lhe firme:
- Não vá abusar no trabalho, senão não tem samba, hem!
E, na segunda-feira a seguir, foi o primeiro a levar um arrocho da chefe durona, que lhe piscou o olho esquerdo furtivamente, sem que ninguém percebesse.
E estava estabelecido o acordo! Dona Selminha não poderia mais perder o samba aos sábados na Rua do Senado, onde sambava até mais não poder. Saravá!

24 de agosto de 2011

DOIS SORRISOS

Trago um sorriso torto
Aqui no canto direito da boca,
Mostrando uma falha de dente.
É um sorriso feio, reconheço,
Mas como tê-lo belo
Se, de permeio, a vida
Me reserva a cada esquina
Van Gogh, O quarto de
Van Gogh em Arles, 1899.
Museu d'Orsay.
Um esquálido, um faminto, um incerto?

Observa, agora, este no canto esquerdo
Onde não me faltam dentes.
É um sorriso triste, dirás, contida,
Numa aparente calma indiferente.
Mas é que persistem nesta minha vida,
Que, com o tempo, mais e mais se evade,
Um abandono, uma ferida, uma saudade.

23 de agosto de 2011

PAISAGEM URBANA NOTURNA


Imagem em arteemgravura.com.br.


leves lufadas de vento
pelos meus cabelos
breves assopros

tímidas lâmpadas tingem de cores
nas águas escuras
bandeiras desfraldadas:
verde-amarelas
bleu-blanc-rouge
(nações imaginárias)

nos becos da noite morna em torno
o desespero dos cachorros
nas latas de lixo
nossos inoportunos mendigos

e nada mais aposto às palavras e aos gestos
apenas uma incompreensão à toa
que não atrapalha
nem magoa a insensatez de nossas paixões abjetas

22 de agosto de 2011

EMPAPADO NA POÇA DO BAR

De frouxo para baixo, fez a festa em cima do Florêncio. Ofendeu tanto o baixinho, que foi admoestado pelos amigos do bar. Não se faz uma coisa dessas nem com cachorro, Pimentel, quanto mais com gente! E, depois, esse baixinho é vingativo, é carne de cobra, quizilento feito malária! Nada, gente, é um frouxo mesmo! Disse isso e diria outra vez.

O baixinho Florêncio distante, humilhado pela massa física do Pimentel, toda a vergonha do mundo sobre sua cabeça. Simplesmente por ter mandado bilhete de amor para a irmã do Pimentel, a Zoraide. Será praga de baixinho ter de aturar desaforo de touro de raça, de boi de coice? Além de não ter conseguido a Zoraide, a desmoralização total! Ainda soube depois que ela mesma rira de toda a história. E, orgulhosa dos músculos do irmão: Vê se vou dar bola pra tampinha?

Florêncio murchou por muitos dias. Andou, mesmo, escondido em casa. Estava sem coragem para encarar os colegas de bar.

Dias de cerveja choca e ressaca moral.

Imagem em
soldamaq.com.br.
No bar, a ausência de Florêncio e o reinado soberano do Pimentel. Até que.

Os copos cheios, os colegas conversando descontraidamente, Florêncio entra, a cara fechada de acompanhar enterro. Boa tarde, turma! O Pimentel, sorriso zombeteiro, a resposta mais escandalosa: Boa tarde, frouxo! E mais não disse, porque por sua boca saiu apenas um jato grosso de sangue, o coração trespassado por uma potente faca de açougueiro, o peito aberto de novilho gordo, o corpo empapado numa poça de sangue no chão do bar.

21 de agosto de 2011

PASSAGEIRA VULGAR

olho ao acaso o mar pela janela da barca
e vejo um peixe pulando fora d’água
é!... definitivamente o mar não está para peixe
(quase uma conclusão óbvia)
a vida é isso mesmo que se sabe
(com certeza uma constatação pífia)
e a ilusão uma passageira vulgar
viajando ao meu lado num tosco banco de madeira

e sobre minha cabeça os salva-vidas sem utilidade

Imagem em 1001roteirinhos.wordpress.com.

20 de agosto de 2011

ITAPUÃ


: canta na pedra o vento que vem do mar
no entanto a praia de itapuã me engana
tem aquela areia grossa
contudo a água é tão límpida de se ver o fundo
que dá vontade de chorá-la toda
para fazer dueto de dor
com o canto sofrido da pedra que canta
no salgado vento sonoro das pedras de itapuã.


(Farol em Itapuã; imagem obtida em atarde.com.br.)
 

19 de agosto de 2011

A ÚLTIMA JANELA

Imagem em claudiacasella.blog.br.
Mariana observava a vida através da última janela aberta para o mundo, quase rente à linha do chão. Todas as outras já haviam sido soterradas pelo peso da curiosidade. A sua, pouco a pouco afundando, lhe permitia conhecer ainda o que sobrara de todas as violências contra a pessoa humana. E, por isso, é que passava as horas de luz ali postada, ruminando imagens desgarradas, de sintaxe mal cosida, sobre os acontecimentos exteriores. Ela mesma não se aventurava a sair à rua. Os tempos estavam para não se viver.
Assim é que a janela passou a ditar-lhe o sentido dos fatos, oferecendo-lhe a só leitura das imagens sucessivas, sem palavras, sem retrocesso, sem videoteipe.
E ela se habituou a isso. Ou pior, ela se conformou com isso. O mundo, a vida, as pessoas, os fatos, os possíveis sonhos e as inescrutáveis misérias diluíram-se entre os caixonetes de sua última janela aberta sobre a inutilidade gritante de sua própria vida sem sentido.

18 de agosto de 2011

COTIDIANO

há sonhos de meninas-moças perdidos pela cidade.
há deserções de soldados sitiando os quartéis.
nas gares das estações d. pedro e barão de mauá
as aflições divergem para as linhas de japeri
santa cruz auxiliar e caxias
e quando chove há choques nos corações elétricos dos passageiros
distúrbios gástricos nos maquinistas
e intenções de sexo em todos os subúrbios.
na marina da glória no entanto e no iate clube
o sol brilha como sempre.
as lanchas e os iates deslizam suaves
pelo azul do firmamento refletido na baía poluída.
aquém do corcovado e aos pés do pão de açúcar
os adolescentes nos seus corpos lúbricos
explodem a virgindade sob a proteção do risco
e inventam um futuro como se fosse possível.

Imagem em lauaxiliar.blogspot.com.

17 de agosto de 2011

AO MEU PAI

Em 2009, no Dia dos Pais, enviei ao seu Argemiro, morador de Bom Jesus do Norte, a mensagem abaixo, que pedia ser lida por uma das minhas irmãs. Não pude ir até lá.

Neste último domingo, 14/8/2011, estive lá para lhe dar um beijo e um abraço e agradecer-lhe, mais uma vez, a sua longa presença entre nós – noventa e quatro anos –, já que ele vem de 1917 para cá, cumprindo a cada virada do calendário uma de suas funções na vida, talvez a derradeira e mais importante: ser o esteio da família e o elo de ligação entre todos nós, filhos, netos e bisnetos.

Estou mostrando a vocês a mensagem não porque a julgue bem escrita, bonita, profunda. Nada disso! É que me saltou à mente – e mente de licenciado em Letras com certo humor – que meu pai já atravessou três reformas ortográficas. Nasceu sob a famosa ortografia pseudoetimológica. Sobreviveu à grande mudança de 1943, quando se alteraram formas com ph, th, dentre outras. Não tomou conhecimento daquela que suprimiu o acento diferencial, por exemplo, de cafèzinho. E agora está na fase do espancamento do trema e do horror ao hífen.

Teimoso na vida como ele é – felizmente –, acho que ainda vai pegar mais outra reforma ortográfica que possa surgir da cabeça de nossos mestres.
Eis a mensagem, cujo teor se mantém, mas que só deve ser atualizada na data final: 2011.

Pai, neste ano, por ocasião do Dia dos Pais, quero repetir ou dizer pela primeira vez, se a sua memória não guardou, ou a minha intenção não foi concretizada, que sempre tive o maior orgulho de ser seu filho.
Com você aprendi o valor do trabalho, por mais simples que fosse.
Com você aprendi o valor da família, que é o nosso maior bem.
Com você aprendi o valor da retidão de caráter, da ética e da responsabilidade.
Quero aprender também com você a viver tão longamente e ter o carinho dos meus filhos todos os dias da minha vida, não importa que caminhos percorram, ou a que distância estejam.
Quero, como você, ver meus netos crescerem e me darem bisnetos.
Quero saber, como você sabe, que nada foi ou será em vão, se o amor nos guiar a cada dia da nossa vida.
Parabéns pelo Dia dos Pais e obrigado por estar conosco até hoje.
Beijos.

Saint-Clair
9/8/2009

Felicidades mais uma vez, meu velho e querido pai!

Argemiro, meu pai, e Gabriela, minha netinha, em 14/8/2011,
em Bom Jesus do Norte/ES.

16 de agosto de 2011

PARA PEGAR MULHER

Nos bons tempos, comprou um carro para pegar mulher. Como se fosse caça. Primeira carona para colega de faculdade. Levou até a casa dela, conheceu-lhe os pais, os irmãos. Garota ótima, recatada, uma mimosura de pessoa. Acabou casando. Não comeu ninguém.
Os dois, advogados com escritório. Ela, também professora, apaixonou-se por um aluno, metade de sua idade, a quem mimoseava com presentinhos daqui e dali e com o corpo. Um dia, comprou uma Caloi Dez no cartão de crédito dos dois, para o garoto. Ele descobriu tudo. Levou-a até a casa dos pais, já grávida de tantos meses do menino, me enganei, uma devassa. Ainda bem que não lhe dera filhos, só chifres.
Desgostoso por um bom tempo. Logo ela, tão recatada, menina de família, virgem até a lua de mel.
Trocou de carro para pegar mulher. Até hoje seu desespero, sua fixação. Só consegue garotinha nova, virgem, recatada. Mulher mesmo, que vai para cama e faz carinho, e diz coisas, e se deixa apaixonar, só piranha vagabunda. Maldição! A última namorada, então, um desespero: dezesseis anos, quase meio metro maior que ele já quarentão, só quer saber de discoteca, pipoca doce, sorvete de morango, maçã do amor e parque de diversões. Ele continua lá dando seus arrochos inocentes, sabendo que tudo não passa de um sem jeito danado para com mulheres.
Enfim, essa a sua sina. Oh, dor! Ainda bem que tem um carro novo para pegar mulher.

Ilustração de Alex Koti, em alexkoti.com.

15 de agosto de 2011

O TEMPO URGE

Estou estacionado neste ponto
Perdido do universo
De coordenadas indefinidas por satélite geoestacionário
Na interseção da linha do horizonte
Com a das necessidades e dos desejos

Como árvore penetro a terra
Finco raízes
Lanço sombras sobre o solo
Para proteger meus frutos
Em minhas ramagens bandos de pássaros
Fazem algazarra ao entardecer
E me sinto eterno

Mas como bicho tenho de seguir estradas
Procurar atalhos
Penetrar florestas por trilhas inominadas
E levar a prole ao rio das águas claras
Ao seguro dos abrigos após as caminhadas
Como o elefante que depõe o corpo
Depois de tudo
Sobre a memória dos seus antepassados
E sinto que o tempo urge!

Imagem em carmendeeugenio.blogspot.com.

14 de agosto de 2011

POEMA EM -ÃO, COM FECHO PREVISÍVEL


ela estoca os meus tormentos todos
na caixa preta do seu coração
revira os sonhos postos na sarjeta
com os dedos ágeis de sua fria mão
e espalha aos quatro cantos da cidade
minhas mazelas e os meus senões
e escarafuncha meus miolos moles
tal qual faria neurocirurgião
e põe reparos em tudo o que faço
retificando minhas decisões
martela sempre em meus ouvidos moucos
Monica Belluci, em cinemaemcena.com.br.
minhas perfídias suas privações
pedindo a quem passar pela calçada
seu julgamento sua opinião
como seu eu fosse o único bandido 
que assaltou seu rico coração.
essa mulher, percebam, meus senhores,
está por cima da situação
e ainda almeja se houver divórcio
mais da metade como seu quinhão
de tudo aquilo que eu não fiz na vida
e do que eu fiz ela não abre mão.
estou perdido não tenho saída
bem feito, besta, todos me dirão
foi-se meter sem ter a competência
pra governar aquele mulherão!

12 de agosto de 2011

SEIS NARRATIVAS CURTAS TÃO CORRETAS, QUE NÃO DESPERTAM A MÍNIMA SUSPEITA!

Imagem em cobatest.org.
1.      O GORDO - O gordo passeia pelo parque, espreitando todos os que por ele passam. Há um bom número de pessoas mais magras do que ele. Várias moças bonitas e de corpos trabalhados. Outro tanto de rapazes sadios, com a expressão de quem faz esforço ao correr. Umas senhoras em traje esportivo e uns senhores de bigode aparado e barba bem escanhoada com seus tênis limpinhos. Um bando de meninos que, ao chutar a bola com que brincava, acerta as costas do gordo, que teve ganas de cortá-la com um canivete. Porém ele não o tinha. Chutou a bola de volta e saudou as crianças com a mão aberta. Daí a pouco, após atravessar a alameda de palmeiras e a rua marginal ao parque, entrou na churrascaria e refestelou-se com um churrasco rodízio e torneiras de chope à vontade. Pensou que um dia morreria como todos aqueles atletas de fim de semana, igualzinho a qualquer um, e mordeu um naco de picanha com todos os dentes da boca.

2.      O CEGO - O cego chegou tateando a parede da direita da lanchonete, bengala na mão esquerda. A mocinha que servia à mesa ajudou-o a encontrar um assento. Ele se acomodou e pediu certo tipo de sanduíche da promoção, acompanhado de batatas fritas e refrigerante. Aguardou pouco tempo. Ao receber a encomenda, solicitou à mocinha simpática e prestativa que colocasse sua bandeja em determinada posição, para facilitar. Comeu tudo, tomou seu refrigerante, pagou a conta e saiu tateando a parede da esquerda, bengala na mão direita. Caminhou mais um pouco e tomou a condução que o levou de volta a casa. Fez como qualquer pessoa que enxerga, mas teve um distúrbio gástrico, porque não deveria ter-se empanturrado com tanta fritura, como lhe recomentara o médico.

3.      O GAGO E O SURDO - O gago, ao chegar à farmácia, um tanto esbaforido, não conseguiu pedir o remédio que lhe fora solicitado comprar por sua mãe, senhora já de certa idade e chegada a uns medicamentos mais antigos: elixir paregórico. Gaguejou tanto que acabou levando alka-seltzer, porque foi, mais ou menos, isso o que o surdo atendente compreendeu. Contudo demorou tanto na tarefa que, ao chegar de volta a casa, o distúrbio de sua mãe já se curara. Então ele aproveitou que tinha o efervescente à mão, deitou-o em um copo d’água com açúcar e algumas gotas de limão e tomou como se fosse refrigerante.
Imagem em gartic.uol.com.br.

4.      OS DOIS NEGROS - O jovem negro solicitou a parada do ônibus, acionando o botão colocado no corrimão superior. O motorista, também negro, olhou pelo retrovisor e o viu levantando-se do lugar onde estivera sentado durante toda a viagem. O passageiro pediu licença para passar entre dois outros passageiros de pé e de costas um para o outro, até chegar à porta de saída. Agradeceu ao motorista que, no momento, enxugava o suor do rosto com uma toalha do seu time de futebol, que era também o dele, jovem. Deu um sorriso maroto para o motorista e comentou sobre a derrota da noite anterior. O motorista arrancou com o ônibus, um tanto chateado, mas sabia que ali ia um camarada seu.

5.      A BRANQUELA E O MULATO - A branquela ajeitou o cabelo cortado modernamente, antes de entrar no elevador que a levaria para a entrevista de emprego. Já dentro do elevador retocou o batom suave sobre os lábios generosos, sob os olhos atentos do cabineiro, com idade para ser seu pai. Ela havia solicitado o andar da loja de produtos eróticos, o que levou o ascensorista a pensamentos libidinosos com a branquela. Ao chegar ao andar e notar que havia errado, a mocinha branquela disse para o ascensorista mulato que seria no andar de baixo, onde ficava o laboratório de análises clínicas e anatomia patológica. O cabineiro deu um sorriso amarelo e comandou a descida do elevador até o andar solicitado. E, lá no fundo, deve ter-se arrependido de ter pensado besteira.

6.      O CADEIRANTE - O cadeirante, alguns pensaram, iria fazer discurso na calçada, ao lado do acesso para portadores de necessidades especiais. Cinco transeuntes pararam para ouvi-lo, na certeza de que ele iria perorar contra o descaso dos governos municipal, estadual e federal com a causa de seus semelhantes. No entanto, sem que nenhum deles intuísse, o cadeirante abriu a mochila que trazia e começou a distribuir panfletos sobre a inauguração de mais um restaurante a quilo na próxima esquina. O que fazia, aliás, com um alarde impensável para um mero restaurante a quilo. Com isto, o cadeirante garantia almoço grátis durante o período da propaganda. Os transeuntes politicamente corretos pensaram em reclamar com o cadeirante, porém julgaram isto politicamente incorreto. E ficou tudo por isso mesmo!

11 de agosto de 2011

MEU AMIGO PITANGA ALERTA SOBRE DOAÇÕES AO CEDCA

Meu amigo Pitanga, colega de trabalho dos mais corretos, pede-me que coloque aqui no blog sua reclamação acerca de problemas na devolução do seu imposto de renda, por falta de comunicação de dados da beneficiária para a qual doou certa quantia.
Espero que este blog despretensioso possa ajudar de alguma forma. Eis o seu texto.

“Boa tarde, caro Amigo Saint-Clair

É possível colocar no seu blog esta mensagem, já que até a presente data nada foi resolvido?
Gostaria que alertassem a todos doadores, que não fizessem mais DOAÇÕES ao CEDCA, pois os responsáveis pouco se importam com os doadores, já que não comunicam à RECEITA FEDERAL as doações, ficando a sua devolução com pendência junto à RECEITA.
Já há dois anos que acontece comigo, e até a presente data nada foi feito pelo CEDCA junto à RECEITA, para que possa receber a minha devolução do IMPOSTO DE RENDA.
Espero há bastante tempo uma resposta, quando virá?

Obrigado Amigo.
Alivaldino Cícero Santos Pitanga.”

Esta aí, então, a mensagem, a fim de que nossos leitores tomem conhecimento do que tem ocorrido.

CENA PROSAICA

a mulher frita angu do dia anterior
para aproveitar comida.

na venda aberta em três portas estreitas
as prateleiras vazias espreitam os fregueses.
não fosse o vidro de pés de moleque
a conversa não duraria um causo de pescaria
mas há todos os outros causos
todas as outras necessidades
e a indolência preguiçosa do interior:
a vida é tocada como tropa de burros dolentes
numa estrada poeirenta barrenta sem fim
(Imagem em temperartee.blogspot.com.)
sem entroncamento.

a mulher frita angu do dia anterior
porque a situação é grave
mas o vidro de pés de moleque se esvazia
cada noite
com a conversa fiada daqueles homens cansados.