17 de outubro de 2020

EMPREITADA

O sol mal deu as cara pros lado da Serra da Boa Esperança, e eu já tava de pé. Já tinha tomado o café com pão drumido e uma lasca de queijo curado da casca grossa, um pouco de farinha de mandioca com açúcar pra mode dar sustança e disposição. Compadre Zeca, que mora na casinha de pau a pique do outro lado do terreirão também já estava arriano sua besta. Ele ia comigo na empreitada. Nós é quase parente, pruque Compadre Zeca é casado com uma sobrinha da minha muié e é padrim, com sua muié, da Dorinha, minha fia menorzinha. Seu Orelo foi quem pediu nós pra ir até a fazenda do Antõi das Morte e trazer de lá, nem que fosse arrastado, seu fio mais novo, o Juliano, que fugiu de casa pruque levou uma coça de gurumbumba pro mode que desonrou a fia do colono dele. Aí, desarvorado, o menino foi pedir abrigo nas terra do padrinho dele, o seu Antõi das Morte. A fia do colono, o Zé Laurindo, é uma moça bonita que só, munto brejeira, e tem o nome quase ingual do rapaz: Juliana. É da mesma idade do menino Juliano, e os dois sabia munto bem das estripulia que estava fazeno. Com quinze ano, carqué um de nós já sabe das consequência dos nossos ato. Nessa idade, ninguém é mais inocente. Mas os dois parecia apaixonado um no outro, tanto que vivia de trelelê e conversinha miúda pra todos os lado. Aí deu no que deu! A gente até tem um jeito engraçado de falar, quano acontece um trem desse: o diabo atenta, o ferro entra. Pois foi bem isso que acabou aconteceno com os dois. No fogo da idade, tem hora que é difice controlar a fornaia que começa a brotar den’ da gente. Se ocê tem mais tento, mais juízo, um pouco mais de idade no lombo, possa ser que domine a coisa. Mas na idade deles é quase impossive. Então o enredo é esse: Juliano desonrou a fia do Zé Laurindo, e o Zé Laurindo botou a boca no mundo, falou miséria, disse isso, disse aquilo, e o patrão, que também é um home munto do correto, falou que não vai passar a mão na cabeça do fio. Se ele fez, ele que assuma seus ato. Que isso é comportamento de home; e não, de moleque. Penso que seu Orelo tem razão. Fia dos outro, por mais desmiolada que seje, merece respeito, senão por ela mesma, pelos pai dela, oxe!

Abrimo a porteira do terreirão, embiquemo as besta pro lado da sede da fazenda, pra mode falar com seu Orelo, só na tenção de confirmar a empreitada, de modo a não deixar dúvida no ar, e, despois, seguimo em frente. Durante a cavargada, o fio da fumaça se espaiava no ar atrás da gente, fazeno ziguezague e seguino a direção do vento fresco da manhã. E as besta ia do passo à marcha, rasgano a estrada de terra, bem dolente ao nosso comando. Tudo animal bom de sela, preparado pra lida!

A fazenda do seu Antõi das Morte, cumpadre do seu Orelo, padrim do desmiolado Juliano, dista umas três/quatro légua da fazenda do Jacó, donde nós trabaia e mora. A viage é um estirão de umas três/quatro hora, até bater na porteira da fazenda Promissão, que é como chama as terra lá do seu Antõi das Morte. Engraçado que esse nome dele ele já trouxe lá dos lados de Nanuque, terra de gente braba, donde ele morava. Diz que ele era bicho do cu riscado lá e passou fogo em mais de um que se meteu a besta com ele. Quano chegou por aqui, já era um home mais serenado, mais entrado na idade, com o juízo mais arrumado na cabeça, de modo que era outra pessoa, de ninguém dizer que era verdade as peripécia dele. Tanto que acabou amigo do patrão e se tornou até compadre.

A recomendação do seu Orelo é que nós chegasse de vorta na boca da noite, trazeno o menino a laço, se fosse perciso, mas que, em antes, nós tentasse fazer ver a ele que tinha de vortar na paz, pra mode reparar seu erro. Eh! Lasqueira! Eh! Empreitada desconchavada, sô!

A marcha foi tranquila. De vez em quano, nós parava pra mode descansar os animal, dar de comer a eles e de beber. Tempo também de nós mascar um naco de carne com farinha, que nós trazia de matutage num bornal, acender o pito, tirar água do joelho e espichar as perna, que fica meio dura no arco da sela, quano a marcha vai longa, demorada.

Cheguemo na Promissão bem na hora do armoço – Coisa boa, sô! – saudemo seu Antõi e dona Carmita e esclarecemo a eles a nossa missão ali, da parte do nosso patrão Orelo, pai do Juliano e compadre deles, tudo bem esclarecido, de molde a não haver dúvida, nem desconfiança. Seu Antõi disse que tava munto bem, tava munto justo, o compadre Orelo é um homem direito, conhecedor de seus deveres, e sabe aquilatar bem as atitude do fio, e ele, Antõi das Morte, em pessoa, ia ter uma conversa com o afiado agorinha e fazer ver a ele a justeza da atitude a tomar. E pediu à dona Carmita que botasse mais dois prato na mesa, que nós era convidado dele, e entrou pra dentro da casa, pra ter dois dedo de prosa com o menino Juliano.

Não delongou munto a prosa, e os dois vortaro lá de dentro: seu Antõi na frente, com a cara boa, e Juliano em seguida, com cara de cachorro que virou a panela do vizinho. O menino se dirigiu a nós – Oi, Troquato! Oi, Zeca! -, de zoio baixo, sem encarar nós, e se assentou no banco comprido que fica do lado da mesa de armoço. Seu Antõi convidou a gente pra sentar também, enquanto dona Carmita acabava de pôr a mesa com aquela comida fumegante de cheirosa: costelinha de porco, angu molinho, taioba refogada, arroz sortinho e feijão cheio de pertence.

Seu Antõi, no mesmo instante em que servia o prato, dizia da conversa tida com o afiado. Estava tudo nos conformes, disse ele. O menino entendeu tudo e estava disposto a vortar em paz com nós. Nessa hora, Juliano levantou os zoio, me oiou sem arrogância e sem prevenção, e senti que nossa empreitada ia ter um remate tranquilo, sem munta quizumba. Senti que o Zeca ficou aliviado com a reação do menino. É que nós esperava um frege danado, um quiproquó daqueles.

Antes de pegar a estrada de vorta, dona Carmita ainda passou um café esperto. Bebemo o café, despedimo deles e peguemo o caminho de vorta.

Durante todo o trajeto, Juliano fugia da conversa que eu puxava. Eu ia arrodiano, cevano o menino de jeito, como quem ceva traíra arisca. Queria dar uns conseio a ele, que podia ser meu fio, mostrar que às vez a gente erra, mas pode consertar as coisa. Só a morte não tem conserto, agaranti pra ele. O que não pode é fugir às responsabilidade. Que ele fosse com o coração manso conversar com o pai, que gostava dele, apesar de tudo. Zeca, vez em quano, reforçava meus argumento com um uhum!, um é isso meso. Juliano não tugia nem mugia. Ouvia tudo quieto. Num dado momento, ele abriu a boca pra dizer que eu tava certo, que ele tinha agido como criança irresponsave, mas que tinha pensado munto em tudo isso que eu disse pra ele. E o padrim dele também.

Quano a noite caiu, nós já tava adentrando a porteira da Fazenda do Jacó. Senti que o menino estremeceu feito vara verde em riba do cavalo que ele fugiu. Falei pra ele que nós ia ficar do lado dele, diante do pai dele, pra agarantir que seu Orelo não tivesse outro destampatório pra cima dele. Apiemo das besta, subimo os degrau da escada da casa da fazenda – as roseta das espora fazeno seu baruio ritmado –, gritemo oi! de casa! e entremo pra dentro do salão grande já iluminado pela luz minguada do gerador da banqueta. Ouvino nossos passo, dona Carmita e seu Orelo viero lá de dentro – o pisado da botina do patrão roncava as tauba do chão -, e em antes que seu Orelo abrisse a boca pra dizer coisa, sortar os bichos pra riba do fio, falei firme, mas com todo respeito como é do meu feitio:

- Patrão, fomo buscar um moleque e tamo devorvendo um home. Aqui está seu fio!

 

 

 

Volpetiz, Cavaleiros (em artedionisio.blogspot.com).



15 de outubro de 2020

NOVO LIVRO: PENSAMENTOS BEM-PENSADOS

Acabo de lançar mais um livro pelo Clube de Autores. Nele, coletânea de meus "pensamentos bem-pensados" publicados no PENSADOR UOL, os leitores estarão livres de bons conselhos, mensagens altruístas ou reflexões pundonorosas. Já temos muita coisa com que nos preocupar. Talvez encontrem um motivo de sorrir. Se isso ocorrer, já terá cumprido sua missão. 
Aí uma amostra do que lá encontrarão:

Sempre que um economista acerta uma previsão econômica, é sinal de que a Economia errou.

Caso se interessem, é só acessar o endereço eletrônico abaixo, que os remeterá para o sítio da editora.







8 de outubro de 2020

OS MEUS, OS SEUS, OS NOSSOS MEDOS

 

O medo não escolhe idade, mas tem uma preferência muito grande pelas crianças. Não sou psicólogo, por isso não sei de onde vem o medo. Sei até para onde vai. Uma compreensão talvez um pouco melhor do que sobre a dúvida ontológica do estar no mundo.

Em Carabuçu, pelo tempo em que lá vivi, até os meus dezoito anos, desenvolvíamos os medos mais diversificados possíveis: de boi bravo, de cachorro doido, de cobra venenosa, de marimbondo caçador e mangangá, de corisco em dias de tempestade, de morcegos, de gatos à noite (De dia, não havia problemas com eles.), de panarício (Eu tinha um medo quase pânico de panarício!). Medos que poderia pôr na conta da existência física, do meio ambiente, mas que eram muito bem administráveis por nós. Outros, contudo, fugiam ao nosso controle: o medo do Saci-Pererê, da Mula-sem-cabeça e do Lobisomem, entidades que rondavam a vila em noites soturnas de nossa meninice, povoando histórias assombradas tão ao gosto da nossa gente cabocla.

E um outro, mais real, mais terrível que todos: o medo do Carro Preto, uma entidade criada pelos adultos, para fazer o controle da criançada. Menino que se afastasse muito de casa, corria o risco de ser roubado (Não usávamos a palavra raptado.) pelo Carro Preto e desaparecer no oco do mundo, para nunca mais. Alguns chegavam a dizer que o objetivo do Carro Preto era levar as crianças para delas fazer sabão. Nem se cogitava em resgate a troco de algum bem valioso. Era simplesmente sumir e voltar em forma de sabão. E não poderia haver, até então, pavor pior do que ser transformado ingloriamente numa barra de sabão.

Por essa altura a vila tinha pouquíssimos veículos, e qualquer um que aparecesse, na cor preta, metia a criançada em polvorosa. Por vezes, alguém dava o alarme de que vira um carro preto descendo o Morro do Marta, na entrada da vila, e a criançada toda debandava, para esconder-se em casa, o único local seguro na vila. Só o carro do seu César Portugal, um do tipo cristaleira, como dizíamos, não infundia esse pavor em nós, por já ser nosso antigo conhecido.

Como eu também desenvolvi não um medo, mas um certo respeito, por aquilo que os mais velhos diziam de funesto sobre nossas traquinagens, me precavia um pouco mais. Se um adulto alertasse para qualquer perigo iminente de uma peripécia inconsequente, eu tinha aquilo como um vaticínio. É que que fui testemunha ocular, durante uma dessas farras de meninos na serraria aberta que ficava sob um frondoso pau-d’alho na subida do morro da escola, da queda de um de nossos companheiros, do alto de um galho, bem depois do aviso de um senhorzinho de cabeça branca que passava ao lado

- Cuidado aí, menino, que você vai acabar caindo e quebrar o braço!

Não deu outra! Daí a pouco meu parceiro estava no chão, há uns cinco metros abaixo do galho, com o braço partido.

Por isso é que passei a julgar que os adultos tivessem parte com adivinhos, pessoas capazes de prever o futuro. E só para desgraças. Nunca para boas novidades.

Depois que vim para a cidade grande, aquelas identidades míticas como o Saci desapareceram. Nunca soube por aqui que tivesse aparecido Saci em Niterói. Em Icaraí, por exemplo, onde cheguei em 1967, já desembaraçado de todos esses medos. Lembro-me até de uma propaganda antiga sobre os benefícios da energia elétrica: até mesmo esses assustadores bichos da noite haviam desaparecido. É que a escuridão e o consequente medo dela propiciam a que vejamos coisas que nem mesmo existem.

E aí estava a base para que a professora primária fizesse a distinção entre substantivo concreto e substantivo abstrato. Este último representava alguma coisa que só existia em nossa imaginação: o Saci, por exemplo.

Claro que a explicação desses conceitos gramaticais não é assim tão simples, mas ajuda a minimizar um pouco a sensação de medo que fazia parte inerente à nossa vida.

Hoje vivemos aos sobressaltos, cheios de medo. Não de coisas ou entidades criadas por nossa fértil imaginação. Mas um medo concreto da violência das ruas, uma situação a que fomos levados há alguns anos e que só vem-se agravando.

Hoje temos medo até de sair do portão de casa.

E este é um medo muito maior, muito pior, que não depende apenas de nossos esforços individuais para vencê-lo.

 

Imagem em pt.wikipedia.org.

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos.