26 de abril de 2019

JOÃO PERIGOSO


João Perigoso era perigoso lá para as negas dele. Em casa, andava pianinho, pisando em ovos. Só dava palpite se Dona Encrenca, este o modo como se referia à sua santa esposa nas rodas do botequim do mercado, fizesse inquirição de sua pessoa em matéria de cano furado, curto-circuito e assuntos adjacentes. No mais, não tugia nem mugia, sob pena de levar descompostura em que sua periculosidade descia às raias de traquinagens de criança de fralda.
Na vida civil, contudo, por uma questão tocada na base do sopapo numa pelada de futebol não se sabe quantos anos atrás, quando ganhou o apelido, fazia de conta para manter o eco do bofete liberado nas ventas de um rapaz franzino que ousou dar-lhe uma tesoura voadora, no exato instante em que ia inaugurar o placar do jogo entre os de camisa e os sem camisa, num acanhado campinho de chão batido e traves de bambu. Coisa de somenos importância, de relevância discutível. Naquele instante, entretanto, no destampatório de que foi possuído, levou a mão aberta no pé do ouvido do magrelo, e passou a carregar o assustador apelido de Perigoso, que, a partir de então, substituiu por completo o sobrenome de família, de que nem tinha assim tanto orgulho: Morgado. Foi até um progresso: de Morgado a Perigoso.
Só dona Engrácia, a Dona Encrenca, nunca deu bola para seu afamado marido. Aliás, desde que começaram a entabular namoro, nos idos do governo do General Gaspar Dutra, ele já portava tal alcunha. Com ela, contudo, ele jamais tirou farinha, jamais levantou a voz, jamais questionou seus desejos. Vivia num cabresto curto, dando conta de cada passo seu, a fim de não ferir as suscetibilidades de Engrácia, conhecida desde a escola primária por seu mau gênio. E passou de namorado a noivo, de noivo a marido, sempre nessa levada, porque não gostava de guerras conjugais, como garantia. No sacrossanto recesso do lar, conforme pontificava, gostava de que reinasse a paz. Deixava seu proceder periculoso apenas para a vida mundana, nos extravasos do espaço doméstico.
- E aí, Perigoso? Qual é a última?
Perguntavam-lhe sempre que adentrava o recinto pé-sujo do botequim do Braz, para beber umas e outras e inventar reinações que nunca tinha vivido, apenas para manter a fama de mau, como na canção do Erasmo. E dizia do arranca-rabo num baile a candeeiro lá pelos lados da Serrinha, em que teve de exemplar um dançarino audacioso, que passou dos limites na saliência com a filha de um amigo. E contava do causo no jogo do Liberdade, em que invadiu o campo para exigir do árbitro a validação de um gol do time da casa, em total impedimento. A turma do deixa-disso correu atrás, para sossegar o possível perigo que ele causaria ao clube, no julgamento da súmula durante a reunião da Liga Bonjesuense de Desportos, a rigorosa LBD, na semana entrante. A diretoria do Liberdade, aliás, enviou ofício caprichado à Liga, eximindo-se de toda e qualquer responsabilidade por “aquele ato insano e de todo reprochável”, como no segundo parágrafo aduzia o remetente.
Outras periculosidades de menor perigo ele nem avalizava. Uns e outros se metiam a inventar histórias suas, nas rodas de conversa em torno da sinuca do bar do Mateus, na Coreia, e ele posava de superior. Não daria aval a coisa menor, a temeridades banais. Com ele, pelo menos no quesito ostentação, era só coisa desassombrada, coisa de vulto, que pudesse deixar os circunstantes de queixo caído.
Mas, um dia, as coisas não funcionaram a contento. Estava ele passando o giz no taco, a fim de tafulhar a bola sete na caçapa do lado direito da mesa, quando dona Engrácia, a indigitada Dona Encrenca, adentrou os domínios masculinos daquele recinto de jogatina e beberagem e exigiu dele, diante de todos os presentes, e para humilhação total de sua alcunha, que imediatamente retornasse a casa, a fim de acabar de lavar a louça que deixara pela metade.
Daí em diante João Perigoso não se aprumou mais. Avexado com a situação, ficou quase quinze dias sem pôr a cara na moldura da janela que dá para a rua. Enfim, quando saiu de seu esconderijo de opróbrio, levou pelas fuças mais uma ofensa de um moleque que passou pedalando morro abaixo:
- João Dengoso!
E nunca mais ninguém ouviu falar, em Liberdade, de um tal João Perigoso. De João Dengoso também não, porque, na semana seguinte, já se tinha bandeado, com todos os seus pertences, mais Dona Encrenca, para os lados de Nanuque, bem na divisa do Espírito Santo com a Bahia, onde ninguém soubesse da má fama que acabara de adquirir.

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