26 de outubro de 2014

RESTO DE CANÇÃO


Em comum, Miguelzinho e cabo Astolfo tinham somente uma paixão lúbrica pela mulher de Rolando, que, ao contrário do personagem famoso, não era de briga e, muito menos, furioso. Aliás, era até manso demais. Mas isto não vem ao caso agora.
O que interessa, na verdade, é que os dois não se cruzavam, não se entendiam, fora o gosto pela mulher do dono do bar.
Miguelzinho, boêmio inveterado, olhos injetados de conhaque de mel, vivia de violão pelas noites, vagando de janela em janela, cantando amores e dores de cotovelo.
Cabo Astolfo, estranhamente a voz mais fina que já se ouviu num homem, que dirá numa autoridade de farda, chefe do destacamento local, tinha o mau hábito de andar farejando crimes e criminosos numa terra onde, antes de matar uma galinha para o ajantarado de domingo, as pessoas pediam perdão a Deus.
A mulher de Rolando, uma moreninha mestiça, só podia sofrer de furor uterino, vez que deixava derreados, cada um no seu tempo, o marido corno, o boêmio seresteiro e o cabo fala fino. Todos eles muito felizes, muito bem satisfeitos! Dos três, no entanto, apenas o marido não sabia dos outros dois, mas isto também não interessa à história.
Por isso é que Miguelzinho e o cabo Astolfo se olhavam de soslaio, sem nunca se encarar, nem trocar palavra. Mas, frequentemente, estavam no bar, um bebendo conhaque, o outro tomando cafezinho, matando o tempo no pano verde da sinuca, no jogo da vida, ou em conversas fiadas.
Numa noite de chuva, o bar apinhado, Miguelzinho, já com conhaque até a medula dos ossos, afinou a voz e falou, imitando o desafeto:
- Pinto de soldado sobe mesmo ou é apenas soldado?
A resposta veio imediata no estrondo de dois balaços trinta e oito, que arrebentaram a boca do cantor. Os demais fregueses, imobilizados pela cena, não se atreveram a deter o homem da lei, que, absolvido posteriormente, mereceu todas as promoções que um meganha podia ter.

Miguelzinho, no entanto, quando foi socorrido no hospital da sede do município, era apenas um resto de canção, uma página virada do cancioneiro popular brasileiro, mero fragmento de um setenta e oito rotações inaudível.

Geri Garcia, Assassinato em Granada, 1936 (ardotempo.blogs.sapo.pt).

21 de outubro de 2014

POEMA DE INVERNO


O frio entra pela greta da porta
(no meu idioleto fresta é palavra de poeta)
E traz o ar gelado lá de fora

Aqui dentro é hora de um conhaque potente
Para espantar o frio que está na alma
Enquanto tecemos conversas sem ponto

Pode ser que solucionemos nossas dores
Antes do fim do trago
Não importa

Por isso é que durante o frio
Se não saio para a rua
A experimentar o ar gelado que do mar aporta
É porque estou cogitando de coisas
Que no calor nunca me ocorrem

Mas não vedo a porta
É preciso estar assim disposto a tal incômodo
Que um gole de conhaque reconforta

Araucárias de Campos do Jordão (foto do autor).

17 de outubro de 2014

MINHA TERRA


Minha terra
Também como um antigo quadro
Está pregada
Na parede interna do meu coração distraído
Obstruindo coronárias alteradas
Tal Itabira na memória do poeta
Só que no meu caso
Com prego galeota
Daqueles de pregar pranchas
Em velhas pontes de madeira
Sobre os valões cristalinos no meio do mato
De modo tão profundo quanto o de Carlos
Apenas Carabuçu não dói
E a ferrugem inexorável do tempo
Os pregos não corrói
Mas volta e meia
Como se dizia outrora
Uma lágrima furtiva
Escorre dos meus olhos
E seca célere tão logo aflora

Igreja de Santo Antônio, Carabuçu-RJ (foto do autor).

13 de outubro de 2014

TERNO MARROM


Esta história se deu na Paróquia do Senhor Bom Jesus, na cidade de Bom Jesus do Itabapoana, nos anos tais, com as pessoas quais, cujos nomes alterei, que não estou aqui para ser processado por calúnia, injúria e difamação. Mas é tão verídica, quanto qualquer outra que já contei ou posso vir a contar, para fazer a crônica da minha cidade natal. Para o bem ou para o mal.
Zé de Lina é corno. Lina é a que o fez ser corno. Mas ele se conforma: não leva para o lado da ofensa pessoal o comportamento deletério da mulher. É corno sem vergonha naquela cara estanhada, bexiguenta, de homem desmoralizado. Lina não chega a ser essa belezura toda. Mas tem ancas largas, cabelo preto comprido penteado em grossa trança, que desce até a vertente da popa. E uns seios estofados de fazer platibanda sobre a barriga já um tanto redonda. E não se esconde atrás de nenhuma dessas posturas falsas, fingindo-se dona de virtudes peregrinas, como estampa sempre A Voz do Povo, o jornal local, ao se referir às damas da sociedade. Conta para as vizinhas suas reinações e a bonomia de Zé, que a tudo assiste impávido, como convém a um corno conformado. Ele não desconfia, mas é a vergonha da rua do cemitério, onde mora. Todos ali sabem de sua condição vexaminosa. E ele continua a jogar sua sinuca e a tomar sua cerveja com os parceiros, com a mesma cara como se fosse o mais amado dos maridos das senhoras de respeito.
Dentre os casos de que detinha a posse, Lina tinha certa predileção por Zinho Mateus e seus mimos. Homem de muitos alqueires de terra e de centenas de cabeças de gado, conduzia seu caso com Lina nas mesas dos bares por onde ia bebericar nas noites de calor, com os amigos parecidos com ele. Na cidade pequena, boa parte da população conhecia a história.
Zé sabia de Zinho, que pensava que o corno fosse inocente. E Zinho tinha até alguma comiseração pelo papel do marido, sem desconfiar de que o sujeito era de caráter mais frouxo que precata velha.
Certo dia, Zinho vinha chegando sem se dar conta de que Lina não pusera na janela da esquina a toalha vermelha, indicativa da ausência do marido. E foi contando os passos quintal adentro, ultrapassando o portão de madeira, que fechou com um golpe seco no trinco de ferro. Até o cachorro de Zé tinha o amante como pessoa das intimidades da casa.
Lina, pega então de surpresa, disse apreensiva para o marido que o amante estava chegando de supetão. Sem tempo para se escafeder dali e deixar o pasto livre para o cavalo pastar, Lino se atirou sob a cama do casal, já que o armário era acanhado demais para sua pessoa.
Com a sem-cerimônia dos amantes estabelecidos, Zinho foi entrando, enquanto Lina corria a se preparar para os embates que se anunciavam, como de hábito. O homem senta-se à beira da cama e começa a tirar as botinas, enquanto fala algo até então impensável para ela:
- Lina, ando com pena do Zé, coitado! Estou botando chifre nele há tanto tempo, que isso já está me deixando com remorso. Estou até pensando em comprar um corte de linho azul e dar de presente para ele mandar fazer um terno novo. Até pago o feitio para ele lá no Branco Alfaiate.
Embaixo da cama, Zé ouve a ponderação daquele que lhe aplica os chifres sobre a cabeça, futuca a mulher, já deitada ao lado com as lingeries do dia, e lhe diz baixinho para não ser ouvido:

- Pede marrom, que azul eu já tenho.

Imagem em mercadolivre.com.br.

8 de outubro de 2014

CHEIRO DE MOLEQUE


Tirante o cheiro normal do moleque que não gosta de banho e vive jogando bola só de calção, lá no meu interiorzão todos os moleques tinham três cheiros característicos, se não me falha a memória olfativa: mexerica, jenipapo e jaca. Todas elas são frutas de odor pronunciado e aderente.

Se não tivesse um cheiro, tinha o outro, quando não os três juntos, o que, então, era praticamente insuportável para os mais velhos.

Para mim, porém, não fazia a mínima diferença: quando fiquei mais velho já não morava lá. Lá eu só fui menino. E, quando adolesci, cacei rumo na vida e tentei usar Vitesse e Lancaster, perfumes que todo jovem quebrado usava. Assim, lá, eu também era um dos portadores de um daqueles cheiros.

Aqui na cidade grande as crianças recendem outras fragrâncias.

Quando a van escolar que trazia meus filhos de volta à casa, no final da tarde, abria a porta, liberava um cheiro de frango molhado. O odor era terrível! Tanto que milha filha, ainda pequena, pediu encarecidamente que não viesse mais naquela horrível câmara de tortura. Ela mesma não suportava.

Pois não é que hoje comprei numa quitanda de luxo perto de casa, dentre outras frutas, um pedaço de jaca!

Jaca, que naturalmente Proust não devia conhecer (imagem em baixaki.com.br).

Na hora em que escolhia a porção adequada a consumo único – minha mulher disse que não iria querer –, ainda troquei ideias com um casal do outro lado da bancada. A esposa do freguês, inclusive, era especialista em jaca, pois ponderou, com dois pedaços não mão, que um era de jaca pau e o outro, de jaca manteiga.

Nunca tive preconceito contra jaca. Pau ou manteiga, eu iria comê-la de qualquer jeito, pois, se há um método infalível de se voltar no tempo – e Marcel Proust está aí para não me deixar mentir –, este passa pelos sentidos do corpo. E o cheiro daquela jaca esquartejada da quitanda me incentivou a isso.

Escolhi o meu pacotinho de jaca cortada, que comportava cerca de oito favos, trouxe-o para casa e comi com a mão, isto é, sem uso de talher, que é a única forma civilizada de se comer jaca. E fiquei com o cheiro impregnado em minhas mãos até agora, momento em que dedilho estas bem traçadas.

Então voltei à infância em que ia para os quintais e os pomares de Carabuçu comer frutas no pé.

Nos quintais da minha avó Maína e do tio Alcides Almeida, eram as laranjas e mexericas que faziam a festa: lima, baía, seleta, coroa de rei, serra d’água, lima-da-pérsia. Na serra, onde moravam meus tios Herson e Alda e meus nove primos, eram abundantes a manga, a jaca, a graviola, o biribá e diversos tipos de laranja. Mais acima, já no topo, casa dos tios Aldany e Neusa e mais quatro primos, eram as bananas: prata, nanica, ouro, maçã. O jenipapo, a gabiroba, o maracujá e a goiaba, comia-os na fazenda dos tios Aurélio e Toninha, acompanhado dos primos. E vinham, do quintal do tio Tatão, cajás e jabuticabas. A cana era apanhada dos caminhões que a transportavam para a usina de açúcar próxima ou tirada dos canaviais à beira dos caminhos. No pequeno quintal da minha casa, meu pai plantou um pé de jamelão, que logo, logo, começou a produzir, contra todo o meu medo de que aquela árvore fosse demorar a crescer. O jamelão deixava a boca, os dentes, as mãos e as roupas com uma nódoa roxa difícil de sair.

E, agora, estou eu aqui a reavivar minha memória proustianamente, dezenas de anos depois, por um simples cheiro de jaca manteiga. Ou jaca pau, sei lá! O que vier eu traço!

Aliás, já tracei, e estava muito boa!

3 de outubro de 2014

DUELO TITÃS

(Para Romeu Pimentel do Carmo.)


Cartaz do faroeste clássico (livrariascuritiba.com.br).

Por causa de uma bobagem, uma discussão besta, meteu o taco na cabeça do parceiro de jogo. A turma do deixa-disso conseguiu apaziguar os ânimos, tomar o taco da mão do agressor e providenciar um curativo na cabeça do agredido. Embora amigos de longa data, indefectíveis parceiros de sinuca, naquele sábado chegaram à agressão. Esse o motivo para que os dois deixassem de se falar. O agredido, inclusive, prometeu forra, vingança. Daria um tiro no meio da cara do outro.

Os dois, então, anunciaram-se com um trabuco na cintura. Conhecessem os dois e saberiam que isso não passava de conversa fiada. Eles, na verdade, dois poltrões, de ninguém levar fé. A ameaça, porém, estava lançada. Pairava no ar a hipótese de um homicídio qualificado. Bom Jesus do Itabapoana estava prestes a ver derramamento de sangue.

Por via das dúvidas, os dois procuraram passar por vias distintas, a fim de evitar um confronto decisivo. Sem, contudo, imaginar que tal oportunidade ocorresse tão de imediato, acabaram por se encontrar em frente ao Cine Monte Líbano, na Praça Governador Portela. Ao se notarem, cada um levou a mão à cintura, para sacar uma arma de fogo. À distância de uns oito metros um do outro, permaneceram imóveis, na posição de saque, durante alguns segundos, como num fotograma congelado na tela do cinema. Não fossem eles, pareceriam Kirk Douglas e Anthony Quinn em Duelo de titãs.

Como nenhum dos dois se dispusesse a puxar a arma, porque não a possuíam – tudo uma encenação só! – correram ambos para trás das grossas pilastras de sustentação do prédio do cinema. E ficaram aguardando que o desafeto atirasse.

A cena atingiu o ridículo, chegando mesmo a comédia de pastelão, a bangue-bangue à italiana, quando, dentre os espectadores, Romeu falou em voz alta que não deixasse dúvidas:

- Aí, seus frouxos, vamos parar de palhaçada, que ninguém aí está armado! Vocês se cagam de medo de revólver, como é que vão estar com um na cintura? O máximo que vocês têm é uma garrucha de feijão!

Vergonhosamente os dois saíram de seus abrigos e cruzaram caminho, cabisbaixos, sob a risadaria geral.

E ninguém falou mais em dar tiro em ninguém! Naquele dia Bom Jesus foi dormir tranquila.