30 de abril de 2011

À MINHA MÃE

(À minha mãe Zezé, pelos seus 85 anos hoje.)

ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração?
não só, mas também?
não tanto, mas, porém
é ter além da dor do parto
a obrigação de encher o prato,
lavar o prato,
enxugar o prato.
além disso e além daquilo,
revelar no trato diário
uma disposição de enfrentar
o restante do dia:
lavar a roupa,
enxaguar a roupa,
passar a roupa.
depois, rouca do calor do engomador
misturado a um copo d’água fresca da talha de barro,
convocar o filho moleque ainda
ao banho, ao uniforme, à escola.
preparar a matutagem na sacola
que ele, menino, leva ao passeio.
ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração?
não só, mas também!
é fingir que não chora quando está chorando,
porque o filho se apavora com lágrima de mãe.
é pegar no chinelo e, entre um ou outro sorriso amarelo,
esfregar a bunda do arteiro,
enquanto o outro, matreiro, a um canto,
espera sua vez.
ser mãe, dirão talvez, é desdobrar fibra por fibra o coração!
então ser mãe é padecer no paraíso,
ser mãe é ter o avental todo sujo de ovo.
será ser mãe só isso?
e o compromisso próprio do ser mãe?
e as vicissitudes próprias do ser mulher?
e o ter de fazer pé de moleque para a venda
(outra mãe diversa talvez não entenda!),
ao preço de um cruzeiro (dos antigos)?
o verificar o amigo do filho?
o preparar o milho cozido
para se tomar com café?
é... ser mãe não tem nada a ver com o poeta!
mas quantas mães, como agora,
perdem a sua hora, lendo algumas bobagens,
no seu dia, no seu aniversário,
e se deixam enganar?...
e se deixam enganar porque amam, por certo,
naquele amor sentido
cada vez que o filho parte,
mesmo para perto, ou para longe.
ser mãe é padecer no paraíso?
mas e as mães com esquistossomose,
com trombose, arteriosclerose,
pielite, colite, nefrite,
poliomielite, coqueluche,
caxumba, sarampo, catapora,
difteria, aerofagia, blenorragia,
coisas assim que o filho,
durante a vida sonhada,
pode oferecer-lhe em troca?
mas e as mães cujo seio murcho
não sacia a sede vária do menino
que apresenta os intestinos constipados
por falta de alimentação, bucho inchado
por bichas em quantidade?
ser mãe, mãe,
é ser mão e pé, ventre e coração
do filho.
é ser viço e feitiço quando há tristeza,
é ser va-ve-vi-vo-vu quando há livro,
é ser vivo, sempre-viva,
é ser vida, quando há comida.
ser mãe é serviço, serva, servida,
assim um objeto de mil e uma utilidades.

(Obs. Este poema foi escrito na década de setenta, por ocasião do Dia das Mães, e enviado à destinatária a quem está oferecido acima. O verso final é alusão a uma frase de meu pai, ao observar quanto os filhos exigiam de sua mãe: "Mãe é um objeto de mil e uma utilidades, como o Bombril.")

Minha mãe Zezé, cercada pelos filhos, no lançamento de
seu livro de poemas Reino dos sonhos, em Bom Jesus do
Itabapoana, em agosto/2010, durante a Festa de Agosto.
Foto de Lívia Portes.

29 de abril de 2011

BOI BRAVO NÃO MANDA RECADO

Em algum dos escritos aqui postados, afirma-se que um dos maiores medos a assolar a vila de Carabuçu, antiga Liberdade, era o de boi bravo.
Ao passar um boi bravo pelas ruas, era como se, de imediato, fosse decretado feriado nacional, com luto fechado pela morte de alguém importante: todas as casas, de família e de comércio, cerravam suas portas.
Na minha casa, lembro-me muito bem, inclusive a janela lateral era fechada. Penso que minha mãe tinha medo até do bafo do boi, que parecia uma coisa pestilenta a feder a enxofre, aparentado do capiroto.
Normalmente o animal era levado para o matadouro, que ficava do outro lado do valão e cujo acesso se dava exatamente pela rua onde fica a casa em que morávamos. Viesse ele dos lados do Jacó ou da Fazenda da Liberdade, necessariamente passaria por aquela rua.
Sempre sabíamos que viria bicho com tal comportamento. É que um burburinho progredia como uma ola, até chegar ao ponto onde estávamos. Um dia, no entanto, calhou de não  haver qualquer aviso de que mais um boi iria cruzar as ruas até o matadouro.
Por isso é que, na maior compunção, seguia em direção ao cemitério, numa tarde de primavera, cortejo levando o caixão do Zé Rufino, que tinha dado baixa nas contas terrestres, por motivo de uma pontada forte na aba do peito, de não dar tempo nem de tomar o copo de aguinha fresca da talha trazido pela mulher.
Quando o cortejo virou a esquina e entrou na rua Cel. Antônio Olimpio de Figueiredo, saindo da rua Cel. Alfredo Portugal, deu de cara com um bovino de mau temperamento e já por demais estressado, que manifestava pelas ventas todo o ódio contra o gênero humano.
Naquele momento, os carregadores do caixão, como que coreografados, arriaram a peça recheada no chão de paralelepípedos e, juntamente com os demais acompanhantes, correram a se esconder em portas ainda abertas das vendas, das quitandas, barbearias e casas de família que por ali ficam.
Em oblogdoroberto.zip.net.
O boi imediatamente começou a cheirar o caixão, a girar em torno dele, raspando as patas no chão, bufando ferozmente, dando cabeçadas, como querendo desalojar daquele invólucro seu habitante abandonado à própria sorte.
Com muito trabalho, os boiadeiros que o conduziam jogaram-lhe o laço nos chifres e o arrastaram dali, a fim de que Zé Rufino, antigo magarefe chefe do matadouro da vila, pudesse enfim descansar na paz do cemitério.
O boi sentiu ali que aquele defunto já havia mandado muitos irmãos seus para as panelas e frigideiras dos moradores da vila, em forma de acém, costela, pá, alcatra, contrafilé, peito, rabo, mocotó, chã, lagarto, músculo, paleta, aba de filé, maminha, patinho, picanha, etc. e tal.

(Agradeço ao primo Roberto Assis, por me lembrar este sucedido da vila.)

28 de abril de 2011

POESIA ALIENADA


Praia de Ipanema, em rcvb.com.br.


da areia da praia sob um sol escaldante
o suor correndo em bicas
avista-se no mar ao longe
um navio de bandeira liberiana
cortando as águas
em direção a não se sabe onde.
porém o que mais intriga
nesse desconhecimento
é não saber para onde sopra o vento
se para ipanema ou para o leblon
onde os inocentes se bronzeiam
pois a fumaça das caldeiras é quase nuvem.


27 de abril de 2011

LÁ E AQUI

no verão
as águas descem das serras às cachoeiras
aos borbotões
inundando as vargens e os taboais
no verão
o sol a pino incendeia os corações
das morenas seminuas na praia do pepino

Praia do Pepino, por Lucíola Villela,
em flickr.com (http://www.rocinha.org/)
e ninguém diz nada
ninguém fala nada
apenas há no ar um certo clima
de tudo em cima
é isso aí bicho
qualé a tua

26 de abril de 2011

VOU ESCREVER UM LIVRO DE SUCESSO!


Em qualquer visita às livrarias da cidade, por mais descuidados que sejam nossos olhos - e lá eles nunca se descuidam tanto -, evidencia-se a profusão de livros em cujos títulos está a palavra menina e, em vários deles, a fórmula sintática a menina que.
Imagem em livrosepessoas.com.
O uso reiterado desse recurso tem-me chamado a atenção há algum tempo. Por este motivo, empreendi pesquisa no sítio eletrônico da Livraria Saraiva, onde encontrei 36 páginas, com 354 títulos que lançam mão de uma ou de outra forma. É uma quase uma biblioteca!
Evidentemente isso não ocorre de modo aleatório. É que este se tornou um dos mais rentáveis filões editoriais do momento. Sabemos muito bem que as editoras são empresas que visam ao lucro e que têm lá seus recursos de marketing para alcançar tal objetivo. E esse recurso específico é comum a publicações de várias delas.
Sabemos, também, por exemplo, que há nos Estados Unidos cursos que ensinam a se produzirem sucessos editoriais. As editoras, por vezes, encomendam obras com determinada temática a escritores de seu catálogo. Sempre no intuito de aumentar seu lucro, o que, certamente, contribui para a proliferação de títulos nesta linha.
Podemos, inclusive, verificar nas lojas, neste momento, bancas organizadas pelos seguintes temas: best-sellers, autoajuda, vampiros e livros cujo título tenha a palavra menina.
Há pouco, os romances históricos (que sempre me pareceram também um tipo de esperteza editorial), livros com tema sobre como ganhar dinheiro e se dar bem na carreira, livros na linha cientista ensandecido, tipo Erich Von Daniken, e obras psicografadas pelos mais diversos espíritos tinham seu espaço garantido.
Aliás, quanto a estes últimos, devo confessar que tenho muita dificuldade de acreditar em vida após a morte, em espíritos - e, caso (in)existam, sua presumida boa vontade para com os vivos -, em psicografias, em deuses e astronautas, bem como em seus  autonomeados representantes na Terra. E aproveito a oportunidade que se me oferece para incluir, nessa descrença generalizada, também boa parte das autoridades constituídas, nas quais às vezes voto, com o consequente arrependimento tardio.
Esse meu futuro e exitoso livro vai trazer alguns problemas. O primeiro deles será para os catalogadores bibliográficos. Como classificá-lo: ficção brasileira, romance histórico, autoajuda, esoterismo, epistolografia, mercado de capitais, ou, pura e simplesmente, embromação?
Após, virá a segunda dificuldade, esta já para os arrumadores das bancas nas diversas livrarias: em que lugar colocá-lo? Aqui, ali, lá, acolá, algures ou alhures? Por dúvida das vias, verão que será melhor colocar um exemplar em cada.
Por outro lado, porém, com certeza, ele terá inúmeros compradores: todos os que se dispõem a gastar seu rico dinheirinho com este tipo de literatura.
Já tenho até o título desta grande obra, a ser gerada com a finalidade de se tornar um estrondoso sucesso. Fico até com receio de causar melindres aos campeões de venda do momento. Eis o nome portentoso de meu livro: A verdadeira história da menina-vampira que psicografava livros de autoajuda, pelo espírito de Paulo C, em cartas ao padre Fábio M, para aumentar seu capital espiritual e pecuniário, com base na astrologia catastrófica maia.
Assinarei a obra sob um quase pseudônimo: Saint C. Mello. Fiquem de olho. Serei eu o autor. Os desavisados acharão que sou parente de um e outro citado no título. Tenho cá também meus truques de marketing.
Quando estiver nas livrarias, avisarei a todos vocês através deste blog. De início, as vendas serão limitadas a dois exemplares por freguês, a fim de que todos possam adquirir o seu.
Quem viver lerá!

25 de abril de 2011

N Ó S

somos todos defeituosos aleijados
e não o sabemos
somos todos impotentes covardes
e não o sentimos
somos todos aproveitadores egoístas
e não o publicamos
somos todos inescrupulosos corruptos
e não o assumimos
somos todos facínoras pervertidos
e não nos prendemos
somos todos miseráveis famintos
e nos recusamos
somos todos humanos sentimentais
mas nos odiamos.

Pieter Brueghel, O triunfo da Morte, 1562.

24 de abril de 2011

JUSTIFICATIVA


meu verso não tem a transcendência
dos versos dos poetas vastos
que abrigam em seu peito a infinita dor do tempo
vive e se nutre do vão momento
Vladimir Kush, Alaways togheter, em
vladimirkush.com.
– por isso rápido –
do pequeno caso
 – por isso pobre –
da furtiva imagem
 – por isso pálido.

22 de abril de 2011

PENSAMENTOS BEM-PENSADOS III (ESSE TROÇO NÃO TEM FIM?)


Em anseiosdaalma-etc.
blogspot.com.

Aí vão mais alguns “pensamentos bem-pensados”. Acho que daqui mais um pouco poderei enfeixá-los num livro como O livro vermelho, do glorioso Mao Tsé-Tung, ou O livro vermelho dos pensamentos do Millôr, de Millôr Fernandes, ou Máximas, pensamentos e reflexões, do renomado Marquês de Maricá, ou mesmo Palavras essenciais, do mago magro Paulo Coelho. Nunca se sabe! Desgraça pouca é bobagem.


A – FILOSOFIA POPULAR E CONSELHOS GRÁTIS
1.      Marítimo, quando bebe muito, fica mais na água que os demais bebuns?
2.      A situação anda tão esquisita, que deu cupim n'O Último Pau-de-arara.
3.      Trocar o certo pelo duvidoso pode, às vezes, até dar certo, mas será sempre duvidoso.
4.      O primeiro sinal de que algo arriscado que você esteja fazendo não vai dar certo é quando começa parecendo que vai dar certo.
B – POLÍTICA E SOCIEDADE
5.      O Brasil é um país de dimensões sentimentais. Nós nos achamos os maiores em tudo, até em falcatruas e rapinagens.
6.      O político que promete ao povo, antes da eleição, que fará algo por ele e, depois, só faz o povo de palhaço pode considerar que cumpriu sua promessa, pelo menos em parte?
7.      A política educacional brasileira anda tão deseducacional, que já está formando analfabetos a nível municipal, estadual e, por que não dizer, federal.
C - COMPORTAMENTO
8.      Folheava, na banca de jornal, revista em que a repórter jovem e loura elogiava o lado sedutor de Carlinhos Brown, que jogou charme o tempo todo para ela, durante a entrevista. Se ele não fosse a personalidade que é, certamente seria taxado apenas de afrodescendentezinho folgado: “Veja lá se eu te dou confiança?!”.
9.      Um dos mitos urbanos, suburbanos e rurais mais badalados é o tal do orgasmo múltiplo, espécie de trevo de quatro folhas, um troço que dizem que existe, mas que ninguém conseguiu atingir, salvo os mentirosos recalcitrantes.
D – HISTÓRIA, LITERATURA E ARTES EM GERAL
10.  Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, escreve sempre sobre os mesmos temas, as mesmas personagens e a mesma cidade, mas com tal criatividade de linguagem, que um só miniconto seu vale mais do que toda a obra de certos arrecadadores de direitos autorais que andam por aí.
11.  Karl Marx, quando escreveu Das Kapital, andava muito descapitalizado e só se tornou comunista depois de escrever o Manifesto do Partido Comunista em parceria com Friederich Engels. Porque, se escrevesse sozinho, seria individualista. Antes disto, ele era tão somente karlista e não marxista.
12.  Quando um escritor diz, metaforicamente, que seu último livro foi um parto difícil, não sabe o que é ser mãe de uma ninhada de porco-espinho.
E – CARNAVAL
13.  No carnaval da Bahia, o trio elétrico percorre o longo circuito Barra-Ondina; no carnaval de Minas Gerais, o curto-circuito é que percorre o trio elétrico.
E1 – CARNAVAL E RELIGIÃO
14.  No retiro do centro espírita, durante o último carnaval, apareceu tanto espírito desacorçoado, que dava para fazer um bloco de sujo, ou melhor, um bloco de ectoplasmas diáfanos.
F – RELIGIÃO E CRENDICES EM GERAL
15.  Quando chegar o final dos tempos, quero só ver como ficará esse pessoal que ganha a vida alardeando o final dos tempos. Vai ficar sem seu ganha-pão.
16.  O primeiro ser humano Deus fez do barro. O segundo, de um osso da costela. Já Paulo Maluf foi feito de Eucatex. Por isso é que ele não consegue ser o maior cara de pau do país. Mas faz um esforço danado!
17.  Será que as pessoas vazias estão mais propensas às possessões demoníacas ou às incorporações espirituais de toda sorte do que as pessoas cheias de si?
G – ATUALIDADES, ESPORTES E PERSONALIDADES INFLUENTES
18.  Ninguém, em sã consciência, aceita, de livre e espontânea vontade, ser goleiro de time de várzea. Isto é sempre o que sobra para o perna-de-pau.
19.  A despeito do que as torcidas dos clubes de futebol dizem das mães dos juízes durante as partidas, algumas, senão a maioria, são senhoras de ilibada reputação. Às vezes, seus filhos é que não fazem por merecê-las.
20.  Se o Botafogo não fosse esta centenária instituição admirável do desporto nacional, porém regida por superstições, mandingas e despachos, certamente poderia ser uma promissora casa de orixás.
H – MOMENTO ÍNTIMO, IMPRESSÕES PESSOAIS OU FRESCURAS MESMO
21.  Há algum tempo, parei de dar boas referências de minha sogra: uns julgavam que eu estava troçando; outros, que eu era um mentiroso desavergonhado. Agora minto sobre ela, que continua a mesma pessoa adorável de antes, mas todos me levam a sério. Que sina a da sogra!
22.  Certa vez, meu pequeno sobrinho-neto, ao responder a uma pergunta minha, disse que “um dia, ficou mais de um mês” sem ver seus avós, o que comprova que o tempo é uma medida meramente psicológica, com muito pouca relação com o calendário.
23.  Nunca aceitei convites para associar-me a sociedades secretas. Se são secretas, não venham querer mostrar-me seus segredos.

20 de abril de 2011

TRÊS CAUSINHOS DE MINAS, SÔ!

Minha dileta amiga Cleia, mineira das quatro costeletas de porco, ou melhor, dos quatro costados, companheira das horas amargas e alcoólicas (jiló com pinga e cerveja), contou-me estas histórias que repasso a vocês.

Depois de morar algum tempo em Niterói, Cleia voltou a sua terra natal nas Minas Gerais, Visconde do Rio Branco, às margens do Rio Xopotó.
A folhinha debulhava os anos oitenta; mais bem mirado, o de 1988.
Como se habituara às coisas da beira mar, se desabituara das coisas das alterosas, até mesmo do jeito peculiar e bonito de o mineiro falar. Hoje retomou tudo o que tinha esquecido, durante o período em que frequentou as praias e as maravilhas do Rio de Janeiro e derredores, aí incluídos a buchada de bode e o baião de dois da barraca do Gostosão, em Duque de Caxias. Está com a vida novamente devotada à galinha com quiabo, ao tutu com torresmo e ao chouriço frito.
Funcionava à época em sua terra, a pleno vapor, o Cine Brasil, hoje desativado e, segundo minha amiga, ainda felizmente não transformado em igreja. Tinha a divulgar as películas que levava à sua tela de causar inveja a Guiricema, São Geraldo, Guidoval, Divinésia e até Ubá, terra de Ari Barroso, um jipe velho apetrechado de uma parafernália sonora, que anunciava as sessões regularmente, com as informações necessárias a que os cinéfilos se desvencilhassem de qualquer preguiça e acorressem à sala de projeções.
O locutor que gravava a propaganda fazia questão de caprichar na voz grave e na pronúncia clara, de forma a não deixar dúvidas a quem o ouvisse.
Certo dia, lá vai o jipe a percorrer as ruas da cidade, despejando no ar o chamariz para mais uma superprodução de Hollywood, naquele jeito familiar a todos:
- Fãs da Sétima Arte, não percam hoje, no Cine Brasil, às vinte horas, mais uma superprodução cinematográfica de ficção científica que mistura ação e suspense: O Exterminador do Futuro, magistralmente estrelado por Arnoldo Suasnega*.
Atualmente, com o advento da doutrina do politicamente correto, o locutor talvez tivesse dificuldades para pronunciar o diabo do nome do ator. Vai ser complicado assim no raio que o parta!
De outra feita, comandava ela o programa Tempero Brasileiro de música popular na rádio local, a Cultura. Sua programação primava pela excelência, já que levava ao ar, na potência dos cinquenta quilos da antena da emissora, a nata da MPB, área de seu grande conhecimento. Não obstante isso, uma ouvinte malcriada rabiscou-lhe bilhete dizendo que “ela (Cleia) pensava que a rádia era dela, mas ela não era dona da rádia”. Outra ouvinte, das roças próximas da cidade, enviou-lhe carta de protesto, escrita numa folhinha de caderno Avante já amarelada, na qual dizia: "Num vô gastá pia do meu rádio pra ovi essas porcaria que ‘ocê toca aí. Si ainda tocasse a Moda da mula preta ou Tião Carrero e Pardinho eu perdia meu tempo com ‘cê. Do jeito que tá, num dá!".
E condenou de Alceu Valença a Zé Ramalho, passando por Elis Regina e Djavan, por Chico Buarque e João Donato, tudo taxado de porcaria. Inclusive os mestres Pixinguinha e Tom Jobim.
Outra envolve seu pai, já falecido, Francisco, de batismo, popularmente conhecido com Chico Tristão. Era ele carpinteiro e carapina conceituado na região, fazedor de carro de boi, dentre outras obras de menor e maior vulto, muito requisitado por suas habilidades.

Lá uma vez, o prefeito da vizinha cidade de Guiricema encomendou-lhe um carro de boi novo para sua propriedade. No entanto não lhe pagou a entrada para o início do trabalho, como o combinado e a praxe.
Passado um mês, chega o ilibado homem público a sua oficina de madeiras e formões e o encontra na feitura da mesa de um carro. Julga que é a sua e já vai indagando se o prazo da entrega será cumprido. Como ouve, em resposta, que se trata de outra encomenda e que a dele estava aguardando pagamento do sinal, para seu início, toma aquilo como ofensa à autoridade pública e passa a destratar seu Chico.
E para não deixar dúvidas no ar, diz para o artesão, em alto e bom som, em feitio de arremate à sua diatribe:
- Eu sou o prefeito de Guiricema!
Seu Chico, homem sistemático do interior, que tinha a palavra como valor, soprou seu curto pavio e gritou nas fuças da autoridade:
- Prefeito de Guiricema e merda, pra mim, é a mesma coisa!
Carro de boi, com os
fueiros fincados na mesa
(imagem em overmundo.com.br).
E passou a mão num fueiro ao lado e investiu contra o alcaide, que fugiu assim que recebeu as primeiras bordoadas na cacunda. Sua Excelência aproveitou a oportunidade também para se esquecer da encomenda indigesta.
Vai mexer com quem está quieto!

(*Arnold Schwarzenegger.)

19 de abril de 2011

MINHA ESCOLA PRIMÁRIA

(Para Délbio, Zé Fábio e Zé Biquinho, primos e colegas de turma do curso primário.)

Avante, camaradas!
Ao tremular do nosso pendão...”
Cantamos o hino antes da aula

Sobre o morro entre extintas árvores
- hoje descampado –
Ergue-se a escola

No sol a pino do meio-dia
O troca-troca de alunos
No azul e branco do uniforme

Nada passa sem ser notado
Nada é mais importante

Nunca compreendi bem por que estudava pela manhã
Assim como não me lembro das manhãs de frio
Ou de chuva
- que as houve nos seis anos do primário –

Lembro-me até das dificuldades por que passei
Como aluno
Como colega
Como pessoa
Lembro-me também dos dias ensolarados
Das brincadeiras de bandeirinha
De bola botão pião
Da fila para ganhar laranja pelo aniversário do Carleitor
Da peteca jogada com mestria por nós moleques
Dos pitos da professora
Dos castigos coletivos
Do auxílio do Zito para a confecção do trabalho manual

Mas não me lembro de um único dia frio
De um único dia de chuva

Na minha memória
Só havia sol e festa na minha escola primária

Imagem em eb1-figueiredo-alva.rcts.pt.

18 de abril de 2011

SEPARAÇÃO


Separated couple, por Gabe Palmer/CORBIS
é só um pouco de café na xícara
o que sobra dos tais anos.
não há o que separar:
nem joio nem trigo.
os dois, filhos pródigos
a retornar à paterna casa do abrigo.
os dois sozinhos
comendo as bolotas do engano.

17 de abril de 2011

JUREMA

Jurema foi passar uma temporada em casa de Marlúcia, que fazia fronteira seca com um terreiro de macumba mal gerenciado, e voltou para casa, duas semanas depois, com uma pombagira de frente instalada em sua pessoa.

O desembestamento que se apossou de Jurema, no quesito saliência, foi de tal envergadura, que nem o borracheiro da esquina, seu noivo apalavrado há mais de cinco anos e com sérias intenções de casamento, teve competência para segurar as necessidades da moça, motivo pelo qual desistiu da oficina de remendos e vulcanizações, para nunca mais ser referido por fofocas e diz que diz.

A mãe de Jurema, ao tomar pé da situação da filha, ligou para Marlúcia, para saber o que houvera, a fim de providenciar a melhor conduta no intuito de pôr cobro naquilo. Contou, com todas as minudências, como a filha se comportava, após voltar do interstício em sua casa. Muito preocupada, a amiga disse à mãe de Jurema que iria ter conversa séria com o dono do terreiro, para levantar as prováveis causas do comportamento da amiga, ele pai de santo de certo conceito nas redondezas. A mãe, dona Carmosina, que tentasse segurar Jurema por dois ou três dias, pois, tão logo tivesse aconselhamento, passaria tudo para ela. Foi o que disse Marlúcia, ao final da conversa.

Marlúcia foi até o terreiro, apenas na condição de vizinha, sem marcar consulta de búzios e guias. Tudo o que dona Carmosina lhe disse repassou ao pai de terreiro. Ciente da situação em todos os seus detalhes, ele foi conclusivo:

Colhido em bolsademulher.com.
- Então foi isso que aconteceu! Jurema pegou a pombagira. Dei por falta dela aqui em minha casa, sem saber seu paradeiro. Nunca poderia imaginar que ela tivesse incorporado em sua amiga, que nem aqui veio. Acho que estou meio descalibrado nos artifícios. Mas traz a moça aqui, o mais rápido possível, que preciso fazer um trabalho de peso, pior que ordem de despejo lavrada por juiz togado.

Num prazo de menos de vinte e quatro horas, Jurema estava diante do homem. Manifestado pelos sete lados, mais cercado que aposta de jogo do bicho, invocou as potestades mais poderosas para desencastoar a pombagira da moça. E, só após virar duas garrafas de pinga e fumar outro tanto de charutos, a poder de defumadores e amarrados de comigo-ninguém-pode e cipó-mil-homens, é que conseguiu esconjurar a possessão inconveniente, instalada nos frontispícios dela. No momento exato em que a incorporação se desfez, a moça caiu desfalecida sobre um desenho do cinco Salomão inserido num círculo no chão do terreiro.

Depois de um canecão de água fria no rosto, Jurema recobrou o tino das coisas e indagou que lugar é esse, o que faço aqui. Marlúcia a levou para casa, onde a cientificou de tudo, do princípio ao fim das artimanhas que aprontara a partir do momento em que fora possuída. Jurema caiu em pranto convulso, até que tudo sossegou entre soluços e sonos. Dormiu durante bom tempo e, ao acordar, era outra pessoa, capaz até de tirar novo cepeefe, novo erregê.

Voltou para casa e comunicou à mãe que, doravante, era evangélica dos quatro costados, decidida a pagar dízimo a pastor espertalhão, para ter direito a quinhão no céu para toda eternidade e se ver protegida de tais incômodos.

No ex-cinema, convertido em local de cultos e descarregos, conseguiu noivo devoto, após dar seu depoimento diante de toda a assembleia reunida. O rapaz encantou-se com sua história, porque vivera experiência semelhante. Só que sua possessão foi um tal de Zé Pelintra, do qual jamais tinha ouvido falar, e também nas imediações do mesmo terreiro, no momento em que tomava uma cervejinha inocente no botequim do lado oposto ao da casa de Marlúcia.

Jurema contou para a amiga o que acontecera com seu recém-noivo, Odir, e achou perigoso para ela a vizinhança com o terreiro. Marlúcia deveria tomar cuidado, porque os orixás estavam desgovernados naquele local.

Sem querer correr maiores perigos, Marlúcia voltou ao pai de santo e comunicou essa outra novidade, exigindo dele que calafetasse sua casa de santo contra qualquer tipo de extravasamento. Usasse o que fosse necessário, mas não queria acordar um dia possuída por espírito mal-vindo. Senão iria até a delegacia pedir reforço policial, a fim de sustar qualquer possibilidade de uma invasão indesejada em sua pessoa ou em sua casa.

Como nada foi feito no prazo estipulado por Marlúcia, Jurema e Odir levaram toda a irmandade, para fazer uma limpeza em regra do ambiente, a poder de exorcismo e abraço evangélico no território dos exus, tudo sob a coordenação do pastor Jeremias Muzenza, também recentemente convertido na fé de Cristo. Saravá!

16 de abril de 2011

TEU CORAÇÃO

Teu coração apanha mais que tamborim,
E bate surdo aos repiniques da dor
Que o chacoalha, faz cambalhotas,
Arma ciladas, soa marota, brinca de dia,
Como se a noite que se anuncia
Trouxesse alento.
Tudo ilusão de momento
Tudo matéria irreal:
Alegria irrisória de um fugaz carnaval.


Imagem em proxtytutuz.blogspot.com.


15 de abril de 2011

LADAINHA DO DESESPERADO

Vigiai-me, São Romualdo,
O céu está enfarruscado.
São Prudêncio, Santo Urbano,
As chuvas já vêm chegando.
Consolai-me, Santo Expedito,
Ando um tanto quanto aflito.
Valei-me, meu São Francisco,
Pois moro em área de risco.
Salvai-me, Santa Hermengarda,
Já lá vem a enxurrada.
Protegei-me, Santo Higino,
Minha casa está caindo.
Atendei-me, São Patrício,
Porque não mereço isso.
Querida Santa Martinha,
Esta culpa não é só minha.
Olhai-me, Santa Luzia,
E também minha família.
Socorrei-me, Santo Hermógenes,
Tal incúria não é de hoje.
Mostrai-lhes, Joana D’Arc,
Que isto aqui não é parque.
Santa Júlia Billiar,
Ensinai-me a votar.
Imagem em budhachannel.tv.
E na próxima eleição,
Meu querido São João,
Que eu não eleja ladrão.
E, por fim, São Serafim,
Cuidai muito bem de mim.
Por toda esta vida, amém,
Santo Alberto de Jerusalém.

14 de abril de 2011

GARÓFALO PELACANI

Rembrandt, pintor holandês,
séc. XVII.
Garófalo Pelacani mandou publicar nos classificados do jornal O Fluminense, de Niterói, aviso de que estava disposto, a partir daquela data, a encerrar as funções de mancebo recalcitrante que vinha exercendo há quarenta e três anos, com uma pretensa folha corrida de dar inveja a muito Dom Juan afamado.
Chegara à conclusão de que lhe faltaria, na velhice, quem cuidasse dos achaques da idade a que todos se sujeitam, desde que não se abotoe o paletó com antecedência. Mas não queria ninguém de suas relações, porque essas, na verdade, se não recomendaria para os amigos, muito menos para si mesmo.
Na publicação, que mandou destacar em negrito, exigia, dentre outras qualidades, que a candidata ao cargo de cara-metade fosse mais nova do que ele, no mínimo, dez anos, bem apessoada, razoavelmente culta e inteligente, falasse a língua de Dante com fluência e gostasse do cinema italiano, sobretudo de Rossellini, De Sica, Visconti, Fellini e Antonioni. Cartas para a redação. E ficou esperando.
É claro que não achou, porque mulher assim não anda dando sopa na praça. As poucas com tais requisitos que, hipoteticamente, ainda estivessem por aí de bobeira, por certo, teriam um bando de marmanjos a seus pés e não teriam tempo de buscar este tipo de coisa em jornal.
Ele queria que uma pepita de ouro reluzente pulasse das profundezas de uma mina e fosse parar sobre sua cama? Era um pretensioso!
Garófalo passou toda a sua vida em fuzarcas e folias, esqueceu-se de procurar parceira conveniente e agora julgava que fosse encontrar tal joia com um mísero classificado barato, numa página escondida, de um jornal de circulação limitada? Era um grande pretensioso!
Mas não é que, após um mês da publicação, já moribunda a esperança, foi-lhe enviada pelo jornal carta manuscrita de pretendente ao posto!
Em letra caprichada, a candidata se mostrou: "Querido Garófalo - permita-me tratá-lo assim -, vi seu anúncio sentimental no jornal O Fluminense que veio embrulhando um quilo de aipim que papai comprou na feira, no último fim de semana (Mamãe ia preparar vaca atolada.). Fiquei surpresa como um homem requintado como você ainda não tenha encontrado a pessoa ideal. Não sei se estarei à altura de suas exigências, mas creio que me aproximo bastante. Sou solteira e disponível. Gostaria, se não for inconveniente, marcar encontro, para que possamos nos conhecer melhor. Arrivederci." E se assinou Francesca,  acrescentando um PS: "Meu filme preferido é Ladri di biciclette, do grande De Sica", mais endereço eletrônico e número de celular.
Garófalo foi aos céus e voltou!
Já ouviram falar de sopa no mel? Pois foi exatamente isto que ele pensou.
- Não serei o famoso Garófalo das mulheres, se não conseguir o que quero. Eu sou mais eu!
Combinou tudo com ela, pelo endereço eletrônico: gatasonhadora@hotmail.com, depois de trocarem algumas mensagens. O local seria a praça de alimentação do Plaza Shopping, o pior possível, pela muvuca que sempre se forma ali.
No dia aprazado, na hora marcada, lá estava Garófalo a aguardar a chegada de sua pretendente. Para fingir tranquilidade, tomava água mineral sem gás.
Conforme o combinado, identificou a criatura de amarelo canário, livro à mão, espaço físico duplamente ocupado por uma só pessoa, que andava em passos gangorreados, a vir em sua direção. Não era velha, nem nova: naquela idade incerta, em que se pode ser qualquer coisa. Não era feia, nem bonita; mas aquilo que não agrada, nem desagrada. Só era um tanto gorda, nitidamente.
Ela, por sua vez, o olhou com um misto de frustração e condescendência. Num átimo, imaginou sua vida cuidando daquele coroa metido à besta, cavanhaque grisalho, unhas com verniz, pose de gay enrustido. E passou direto pela sua mesa, como se não o tivesse visto.
Porque ela, Francesca Minardi Souza, preferia, mil vezes, ver seus filmes do neorrealismo italiano sozinha a passar o resto da vida cuidando de gente cheia de manias.
E Garófalo ficou na praça de alimentação, a alimentar as caraminholas de sua cabeça, no afã de entender por que, raios, aquela gordinha jeitosa passou batida, fingindo não o ver.
Teria de repetir o anúncio, ou recolher-se ao asilo, quando chegasse a hora.