5 de agosto de 2022

TALVEZ MINHA MÃE FIQUE ORGULHOSA DE MIM

 

Cara, eu ando muito emotivo por esses dias. Está-se aproximando o aniversário de morte de minha mãe, e a saudade dela aperta gentilmente meu coração. Foram muitos anos partilhando a vida com ela – quase setenta e cinco -, para que tudo caia no esquecimento. É impossível isso se dar!

[Minha mãe me deixa ler, tão logo aprendi, Canção do exílio e outras poesias, de Casimiro de Abreu.]

Além de tudo, cara, resolvi, não sei por que motivos, rever vídeos – diversos deles – de Scott Mckenzie cantando seu sucesso, San Francisco (Be sure to wear flowers in your hair), de 1967, em que se sucedem imagens da linda geração hippie presente ao festival de Woodstock, em agosto de 1969. E isso só piorou a situação.

Ah! Você não conhece as imagens? Procure, então, o documentário sobre o festival, que compreenderá o que digo.

Julgo-me uma pessoa razoavelmente racional, quase nada saudosista, que imagina controlar suas emoções sem muitas dificuldades. Mas devo confessar, cara, que rever aquelas imagens de jovens que tinham como proposta maior um mundo de paz e amor aprofunda ainda mais minhas emoções. Juntaram-se as duas coisas, para que a emoção fervilhe dentro de mim.

[Sempre que me escrevia, no final de suas cartas, minha mãe destacava a frase: “Que Nossa Senhora de Fátima te proteja!”]

E veja bem: nunca fui hippie, no sentido pleno do termo, embora tenha cultivado barba e cabelos longos durante alguns anos, tenha sido abduzido pelo som revolucionário do rock and roll e tivesse acreditado que aquela música poderia mudar o mundo, por seu poder de reunir pessoas numa grande confraternização. Eu cria nisso de verdade, cara!

[Minha mãe redobra as orações, ao saber que eu perdera a fé.]

Mas jamais fui hippie realmente. Eu necessitava trabalhar para me manter. E não era fazendo artesanato. Nem tive pais ricos que sustentassem aquele comportamento desinteressado do sistema, a não ser para bombardeá-lo. Também nunca precisei de “fazer a cabeça”, como se dizia então, para curtir um som e viajar na pancada do rock. Eu era um careta esclarecido.

[Minha mãe sempre apoiou minhas escolhas, até quando resolvi vir para Niterói cursar Letras, em detrimento de um emprego estável no Banco do Brasil.]

Mas aquelas imagens, que são minhas contemporâneas, deixaram ainda mais vivo o sentimento de frustração pela derrota das propostas de paz e amor surgidas na cidade californiana, como se pode perceber pelo mundo em que vivemos até hoje.

[Minha mãe vivia orando pela paz no mundo.]

Embora o movimento hippie fosse extremamente positivo quanto a essa proposta, a prática de então se perdeu no consumo de drogas e numa prostração infrutífera em fazer valer aqueles postulados. Sobraram as imagens. Sobraram as tocantes, sensíveis, belas e bem-humoradas imagens de uma geração que alterou o comportamento das que vieram posteriormente.

Por isso, cara, estou aqui, agora, bastante emotivo, digitando essas bem-traçadas linhas, numa tentativa de alimentar um papo com você, ou pelo menos esperando que você me ouça, e lamentando que todo aquele sonho deu em nada. Não se conseguiu nem mais paz, nem mais amor. Aliás, muito ao contrário. É só olhar à nossa volta e ver o que acontece.

[Quando nasceu meu primeiro filho, minha mãe veio em meu apoio: eu deixava de ser apenas filho e me tornava pai.]

E, para agravar o que sinto, mais para o fim de agosto, fará um ano que minha mãe se foi. Então vou procurar me comportar como um menino grande, que já entende a vida, que sabe os desígnios da natureza, o jogo sujo dos interesses geopolíticos, para aceitar numa boa essa pequena tragédia pessoal: a perda da mãe e a ruína dos sonhos de um mundo melhor. Vou controlar minha emotividade, ser um pouco mais racional. Parar de chorar como um bebê abandonado.

Talvez minha mãe fique orgulhosa de mim, cara.



Árvore ao pôr do sol (foto do autor).

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Caso queira assistir ao vídeo da música citada, é só clicar sobre seu título no terceiro parágrafo.