29 de maio de 2014

PRONTO, O OUTONO!

Pronto
Parece que outro outono bateu ponto
Nas folhas mortas da velha canção francesa
Lá fora a chuva fina
As nuvens densas
A encobrir o Corcovado o Pão de Açúcar
Alguma pressa em retirar do armário
As peças do vestuário que possam prevenir
Qualquer evento mais fresco deste tempo
Tão propenso às alergias e às corizas
O outono e seu descontentamento
O outono e seus problemas de sempre
A nos lembrar que a vida é roda viva
De estações e medos
De ansiedades e sonhos
De coisas assim que são tocadas
Com a dolência do gado a caminhar na estrada

Pronto
O outono bateu ponto!

Baía da Guanabara, a partir de Icaraí, Niterói (foto do autor).

24 de maio de 2014

PSA NA VEIA


Acordou cedo no sábado para o exame do PSA. A próstata andava saliente há alguns meses, e o médico foi taxativo:

- Só dou mais essa chance. Se continuar assim, teremos de fazer uma raspagem em sua próstata.

O médico tinha verdadeiro pavor de taxa de PSA alta, embora a biópsia anterior tenha dado negativo para câncer. Não gostava daquilo. Para ele, não era bom indício. Próstata é bicho arisco, traiçoeiro. Quando menos se espera, aplica sua peça de mau gosto no paciente. Como ocorrera com um amigo dele, médico, que sofreu o diabo com aquela minúscula glândula. Não queria que ele também passasse por isso. Então era a última chance que lhe dava.

Por isso é que estava indo para o laboratório bem cedo para um sábado aposentado. Raramente acordava àquela hora. Assim não sabia dos acontecimentos da manhãzinha. Apesar de a vida nunca deixar de correr solta em todos os horários e em todos os sentidos, só tomava conhecimento dela após as nove, e olhe lá!

Naquele momento, não havia muitas pessoas nas ruas. Até chegar ao laboratório, não andaria mais que seiscentos/oitocentos metros. E começou a reparar que jovens bonitas também acordam cedo. Até mesmo no sábado. E vieram algumas em direção contrária. A cada uma que lhe passava próximo, era um suspiro, uma contrição, uma invocação aos céus:

- Ai, meu Deus! Nossa Senhora! Arf!

Tudo baixinho, inaudível para os outros, mas bem nítido para ele, como que para dizer que permanecia vivo, apesar de todas as suspeitas. E veio uma morena de cabelos longos, calça legging de ginástica coladinha em seus contornos exuberantes. A seguir, uma lourinha de saída de praia (Há gente que acorda cedo para pegar sol – coisa impensada para ele.), a deixar entrever seu biquíni minúsculo. Também outra morena, tipo mignon, com uniforme de trabalho e um andar cadenciado pelo salto alto, espalhando no ar um agradável perfume.

Até chegar ao destino, foram rezas, exclamações e suspiros profundos de admiração pela beleza feminina, como a sustentá-lo nesse tipo de vicissitude por que tivesse de passar. Embora incréu empedernido, Deus o socorresse nesses momentos, para que não enfartasse antes mesmo de saber o resultado da maldita próstata.

Não havia clientes no laboratório. Foi atendido de imediato e, sem que se levantasse da cadeira, a vampira da vez chamou por ele:

- Seu fulano!

Levantou-se e se dirigiu até ela, corrigindo a pronúncia errada que dera para seu nome. Ela sorriu e se virou em direção à saleta. Era uma vampira jovem, bela e com um derrière de fazer francês esquecer o acento grave. Começou achando que já estava valendo a pena o sacrifício dos Andradas.

Solícita e bonita, a moça foi preparando o material e indicava sua procedência, o caráter de descartável, a etiqueta com seu nome no tubo. Mas tudo começava a perder um pouco do sentido. É que a cada movimento dela, jaleco aberto, a blusa curta subia e ele vislumbrava a calcinha cor-de-rosa um pouco abaixo do cós da calça jeans suavemente surrada. Passou, então, a fingir que prestava atenção ao braço e à veia de onde se recolheria o sangue para o exame, só para ficar de olhos atentos para aquele espetáculo matinal, não previsto pelo plano de saúde. Assim que a jovem lhe fincou a agulha numa veia distraída, o sangue jorrou forte, ao ver o sulco descendente que, a partir do quadril, corre em direção à virilha e ao triângulo de Vênus. Sentiu, então, que derramava o sangue por uma boa causa.

Ao sair da saleta - um tanto tonto pela visão e não propriamente pelo sangue derramado -, esparadrapo vedando o buraquinho na veia, viu, sentada na mesma cadeira em que estivera cinco minutos antes, uma bela morena esguia, cabelos fartos e vestidinho vaporoso curto a revelar suas pernas bem torneadas. Era muita visão beatífica para uma manhã de sábado despretensiosa. Saiu à rua atordoado, sem saber o que fazer com aquela próstata desgraçada, que já lhe estava tirando do sério.

O mundo, a vida, as belas mulheres estavam ali a dizer que tudo continua lindo, ininterruptamente. Ele é que anda um tanto capenga, precisando tomar mais conta da glândula traiçoeira do que das outras glândulas corporais. Se quiser continuar admirando, por mais alguns anos, toda a beleza espalhada por aí.

Imagem em unb.br.

19 de maio de 2014

MEUS MORTOS

Alguns dos meus mortos vivem em mim
Uns mais outros menos
Uns com mais intensidade
Outros mais pacificamente
Uns com marcas viscerais
Outros com pequenas sardas psíquicas
Uns há muito mortos
Outros mortos recentes
Todos diligentes
A compor o que eu sou
Com seus modos de vivos permanentes
A não morrer assim tão facilmente
Enquanto eu continuar a ser
O que venho sendo
Desde que me entendo por gente
Ou me desentendo
E assim para sempre


Cemitério de Carabuçu-RJ (foto do autor).

15 de maio de 2014

MULHERES BRASILEIRAS (VII) - RUIVAS

Encerro esta série de textos em louvor à mulher brasileira com as ruivas. Meu parco conhecimento da mulher é bem menor que a admiração que por ela tenho. Assim, é de bom alvitre - como se dizia no tempo de Machado de Assis - que eu não me meta mais a procurar outros padrões de beleza feminina. 

Vamos ao texto.

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As ruivas sempre me intrigaram. Nunca soube com segurança de onde vêm as ruivas. Da Polônia? Da Ucrânia? Da Bielo-Rússia? De Israel? Isso porque toda ruiva tem um sobrenome difícil de guardar e escrever.
Mas essa intrigante questão também interessa às mulheres. Não é incomum se encontrarem pelas ruas ruivas de todas as cores de pele, desde negras até branquelas, passando por morenas e mulatas. O que comprova a atração quase fatal que essa cor de cabelo exerce sobre a psique feminina. Minha irmã, morena, acaba de me confessar isso. E haja tintura!
Para ser realmente natural, no entanto, a ruiva tem de ter sardas, aquelas manchinhas sensuais que lhe enfeitam as faces. Nessas circunstâncias, ela passa a ser uma sedutora de marca maior. Até mesmo porque, junto a essas duas características, vêm também os olhos claros. Reparem: ruiva, cheia de sardas e olhos azuis! É a própria composição de anjos das cortes celestes a arrebatar nossos corações imprudentes.
O problema é que as ruivas não se mostram com frequência, não andam de coletivos, em ônibus apinhados de gente, em vagões de trem de subúrbio ou de metrô. Raramente vão ao Maracanã lotado. Elas só se manifestam onde o ambiente permita, porque sua ruivice ocupa mais espaço que o comum dos mortais costuma ocupar. Certa vez, na estação de Queimados, inadvertidamente, uma ruiva, com seus olhos de jade e suas sardas de âmbar, vaporosa num vestidinho verde-água, embarcou num vagão ainda vazio naquela hora. Ninguém mais ousou compartilhar o vagão com ela. Ninguém se sentiu à altura de dividir espaço com a ruiva, o que gerou grave problema de acomodação nos outros vagões. Foram quinze estações de soberania total até a Central do Brasil, onde banda de música e fogos de artifício a aguardavam.
Quando uma ruiva viaja ao estrangeiro – e elas viajam amiúde, sobretudo ao estrangeiro –, as autoridades de imigração sempre desconfiam da veracidade de seu passaporte brasileiro. O Brasil não é pródigo em ruivas, mas tem as suas, que se rivalizam com quaisquer outras das mais diversas nacionalidades. No entanto, com duas palavras e uma piscadela de olhos, ela resolve tudo. Disso fui testemunha no aeroporto Charles De Gaulle. Na minha vez de passar pela alfândega, quase tive de mostrar que não levava dinheiro na cueca, tal era o rigor do policial de La Douane em serviço.
Tenho uma concunhada ruiva, assim como sua descendência, até o netinho mais recente. Porque ruiva é assim: projeta a ruividão para além de si, como a marcar território. Mas dela, pelo menos, sei a origem: vem de uma família francesa de muitos anos atrás, aqui chegada do interior sul da França, todos eles descentes de Hugo Capeto, que reinou naquele país no século X e foi o fundador da famosa Dinastia Capetíngia, detentora do poder por mais de oitocentos anos. 
Como veem, não é pouca coisa. Talvez isso explique razoavelmente tudo o que se pode perceber das características das ruivas.

Marina Ruy Barbosa e sua ruivice (em vilamulher.com.br).

10 de maio de 2014

MULHERES BRASILEIRAS (VI) - ORIENTAIS

Antes de aprender a gostar de peixe cru, aprendi a admirar a beleza das orientais. O problema é que, no Brasil, todas são japas, não importa de que país venham, ou que ancestrais tragam em seu sangue e na sua história.
Assim as japonesas, com toda a graduação de descendência – issei, nissei, sansei, yonsei, etc.  –, passaram a ser hegemônicas. Quando nos deparamos com qualquer mulher de olhos puxados pelas ruas, julgamos sempre ser uma japa.
Em alguns lugares do Brasil, sua presença é maior, mais efetiva. Noutros, quase não se vê. Mas não há como não se encantar com o jeito mimoso, o olhar que parece sempre sorrindo, das orientais. Renato Teixeira compôs belíssima canção – Terumi – em homenagem a uma sua prima japa.
Numa viagem que eu, minha mulher e amigos fizemos pelo hoje famoso Cone Sul, na década de 70, tive oportunidade de testemunhar a magia que as orientais exercem sobre os demais. Conhecemos, no trem que nos levava de São Paulo a Corumbá, uma bela nissei paulistana, que passou a compartilhar conosco alguns momentos da viagem. Com sua presença no grupo, conseguíamos atenção redobrada de bolivianos, peruanos e chilenos, para as nossas necessidades. Ela, inclusive, se sentia incomodada por chamar tanta atenção, sendo a menorzinha entre nós.
Muito tempo depois é que apareceram em rede nacional nisseis do volume e da extensão de Sabrina Sato e de Danielle Suzuki, que, convenhamos, são de fazer chinês errar na massa do pastel, né não?
Entretanto, antes de essas duas se tornarem as preciosidades que são hoje, já mourejava, se é que se pode assim dizer, pelos corredores da repartição pública onde trabalhei por trinta e oito anos, uma linda proprietária de dois olhos amendoados, que despertavam o interesse de toda a gente. Por uma dessas fatalidades benéficas que a vida nos reserva, ela foi trabalhar exatamente no setor em que eu estava lotado. E só então pude descobrir que, sobre a beleza nissei que tinha, produto da mistura de japonês com espanhola, ela encantava também por suas qualidades interiores. Trabalhar ao seu lado, além de se constituir em deleite, era uma tranquilidade, pois ela estava sempre disposta a colaborar. Pouco tempo depois, um brasileiro distraído foi enredado por seus encantos.
Limitado em minha admiração a essas quatro nisseis que citei, certa vez fui a São Paulo, por ocasião da Bienal de Artes do Ibirapuera, quando, então, levei minha mulher e minha filha para conhecerem o Bairro da Liberdade. Ora, a quantidade de orientais bonitas, elegantes e modernas que vimos era de assombrar olhos redondos. E foi com essa convicção que voltei ao trabalho, na semana seguinte, oportunidade em que disse à minha colega:
- Pode baixar sua bola, que no Bairro da Liberdade há um monte de japas bonitas como você!
Ela sorriu, apertando mais os olhos, e fez aquela cara de fingido desgosto que só as orientais sabem fazer.



Sabrina Sato (em redeto.com.br).

5 de maio de 2014

MULHERES BRASILEIRAS (V) - NEGRAS

As negras foram a maior aquisição da cultura brasileira para todo o sempre. Se os portugueses, por cobiça, não tivessem trazido para cá alguns povos negros da África, hoje seríamos uma nação completamente distinta. Somos muito diferentes de todos os nossos hermanos sul-americanos como povo, graças à miscigenação aqui produzida. E, por conta disso, um povo mais tolerante, mais receptivo ao estrangeiro. Se comparados aos europeus e asiáticos, aí a distância aumenta, o fosso fica mais amplo.
Na história do povo brasileiro, o papel da mulher negra é preponderante. Ainda que tenham sido trazidas para cá como escravas, partilharam da criação do sinhozinho e da sinhazinha, os quais com frequência amamentavam, criando assim uma das instituições que até hoje perdura em nossa sociedade: a mãe de leite. Assim, direta ou indiretamente, somos quase todos filhos de negras.
Sendo quem são e tendo a origem que têm, as negras estão para as demais brasileiras num patamar mais seguro, porque têm atrás de si a proteção de todos os orixás africanos. E ai de quem se meter com uma delas, no intuito de tirar partido e sair de fininho! Não se brinca com quem é possuidora de tal proteção.
Certas negras, inclusive, se prevalecem do poder que têm sobre nós e fingem não saber o estrago que produzem. Se você não tiver o corpo fechado, é melhor se precaver.
Mesmo que algumas não tenham consciência desse seu poder, elas o exercem no dia a dia com assustadora simplicidade. Os desavisados podem quebrar a cara com elas. Com um muxoxo, incorporam a força telúrica dos ancestrais e podem causar dependência de todos os graus, tirando do fundo do seu ser arrebatamento incapaz de ser confrontado com mandinga de brancos e amarelos.
Nos idos de 60 e 70, eu e mais dois primos ficamos encantados por uma mesma jovem negra que disseminava sua beleza nas imediações do prédio onde morávamos. Seu sorriso franco iluminava os circunstantes com uma aura de felicidade. Era impossível não se encantar. Um dia, porém, ela sumiu, levada pela vida, como um meteoro de luz fulgurante. Foi maravilhar, com certeza, outras paragens.
E as muitas outras negras com que deparamos nas ruas, nas revistas, nas telas grandes e pequenas, com todos os seus tipos de cabelos, com seus sorrisos e lágrimas, com seu andar cadenciado, com seus projetos e sonhos, sua postura e determinação, a conquistar, com decisão, mais e mais espaço na sociedade e no coração dos homens?
Agora, quem não me deixa mentir é Jorge Ben Jor (quando ainda era Jorge Ben):
“Essa menina mulher da pele preta, Dos olhos azuis, do sorriso branco Não está me deixando dormir sossegado.” (Menina mulher da pele preta)


Thalma de Freitas, que, além de bonita, é atriz e cantora (em ppaberlin.com).